A situação das mulheres frente às temáticas do trabalho e da pobreza, a partir de sua contextualização na conjuntura internacional deste final de século, leva à discussão de alguns dos impactos da chamada “nova ordem” sobre as relações sociais de gênero.

A questão que se coloca é saber em que medida a reestruturação da economia e as mudanças políticas profundas por que o mundo tem passado afetam as mulheres e suas demandas. A resposta não é muito animadora, e talvez seja esta a arena na qual retrocessos no âmbito de políticas sociais se apresentam de forma mais transparente e imediata na nova conjuntura econômica e política mundial, marcada pelo discurso neoliberal da centralidade do mercado e da “ineficiência” do Estado.

É paradoxal observarmos o crescimento da presença feminina em diversas áreas, bem como os avanços internacionais em termos da legislação, mais igualitária e menos discriminatória em relação aos direitos da mulher, e ao mesmo tempo verificarmos que, no cerne da reestruturação da economia capitalista mundial e da “nova ordem”, isto parece não se traduzir em melhorias nas suas condições de vida. Ao contrário, percebe-se uma deterioração de sua situação, particularmente em relação ao trabalho e aos encargos familiares – deterioração que atinge especialmente as mulheres das camadas mais pobres.

É importante colocar, no entanto, que este não é um fenômeno particular apenas nos países ditos “em desenvolvimento” ou do Leste europeu; ocorre também nos chamados países centrais, embora os efeitos sobre os dois primeiros se manifestem de forma mais incisiva.

De maneira geral, pode-se afirmar que existem certos fatores estruturais que respondem por esta situação. Um vincula-se à própria (in)capacidade de um sistema econômico e social balizado fundamentalmente pelas relações de mercado de garantir a superação das discriminações e a incorporação plena das mulheres ao mercado de trabalho em condições de equivalência. Como sugere Off (1989), a existência de um “mercado” de trabalho pressupõe uma situação de exclusão de parcelas ao lado da oferta (leia-se trabalhadores – pois, se houvesse um equilíbrio constante entre oferta e demanda, a lógica e a essência da mercadoria “força de trabalho” deixariam de existir). A exclusão, crescente nas últimas décadas, uma vez que o desemprego passa a ser estrutural, possibilita que, no âmbito do mercado, o capitalista (leia-se demanda) negocie em condições mais favoráveis visando à manutenção de seus lucros.

Para Off, as mulheres são parte integrante das parcelas de exclusão mais vulneráveis, portanto negociam o seu trabalho em condições bem menos favoráveis. Pode-se aqui argumentar que este raciocínio é idêntico ao que considera as mulheres como “exército industrial de reserva” do capitalismo, tese que vem sendo bastante questionada, principalmente em razão do crescimento expressivo do percentual de mulheres que ingressam no mercado, mesmo fora dos períodos de crise, e da tendência mundial à absorção da mão-de-obra feminina. Não é o caso aqui de entrarmos neste debate. Mas pode-se considerar válido o argumento de Off se se ponderar que, de fato, o ingresso das mulheres tem sido feito a partir de sua condição de “desigual”, mesmo para vender a sua força de trabalho.

De fato, como afirma Castro (1990), o capital não é sexista e, se ele absorve homens ou mulheres, o faz a partir de uma análise de custo/benefício dentro de suas necessidades. Entretanto, ao fazê-lo, seu interesse não é, absolutamente, o de garantir o “direito” da mulher ao trabalho ou o da promoção de sua plena capacidade. A superação dessa situação exigiria políticas e ações que tomassem outros parâmetros que não o do lucro como referencial central. Mas uma organização social e econômica marcada pela exclusão como necessidade intrínseca ao seu funcionamento e às suas estratégias de lucro não se mostra capaz de ir contra a sua própria essência. As tendências expostas mais adiante pretendem demonstrar isso. As reivindicações básicas, materiais, dos movimentos de mulheres que têm como objetivo estabelecer as condições para um outro tipo de relação social de gênero dirigem-se centralmente ao Estado. Isto porque, em realidade, boa parte das atividades domésticas desenvolvidas pelas mulheres é , de fato, atividades que dizem respeito a toda a sociedade, são atividades da esfera pública e, portanto, deveriam ser geridas pelo Estado através de políticas sociais. Do mesmo modo, tem-se claro que, sem políticas amplas que visem a enfrentar no plano cultural e ideológico toda a carga de estereótipo e distorções, se torna bastante difícil construir em outras bases as relações entre homens e mulheres. A quem cabe a promoção de tais políticas? É este um dos mais importantes aspectos da discussão sobre as esferas públicas e privada e a condição da mulher. Em outras palavras, o debate sobre o que deve ser o papel do Estado, que políticas e para quem este deve se voltar, tem importância crucial para o feminismo, uma vez que uma de suas demandas é exatamente a de socializar, no sentido amplo de tornar público e social, o que vem sendo assunto, pelas mulheres, no espaço privado doméstico.

Ocorre que as modificações políticas e econômicas no mundo parecem apontar para uma direção oposta, operando como retrocesso e restrição aos espaços das mulheres, tanto no campo econômico como social.

“A política neoliberal traz a crise dos Estados de bem-estar social e programas orientados pelo FMI”

Dois processos internacionais que marcaram as duas últimas décadas contêm elementos agravantes e emblemáticos desta situação. A difusão e o crescimento da política neoliberal trazem como contrapartida a crise dos chamados Estados de Bem-Estar Social – e a débâcle dos Estados socialistas do Leste, com a posterior integração ao capitalismo – e a adoção de programas de estabilização e ajustes estruturais orientados pelo Fundo Monetário Internacional. Em ambos, a crítica ao Estado, entre outras, se pauta pela defesa da transferência, para a esfera privada ou da família, de serviços sociais básicos que antes eram públicos (Molyneaux, 1993) e pela completa regulação do mercado sobre as políticas e a oferta de empregos. Em ambos, as mulheres tendem a ser diretamente atingidas, com consequências visíveis já em curto prazo.

Países industrializados que aplicaram programa de estabilização de corte neoliberal apresentam redução de serviços nas áreas de educação, previdência e assistência, ao mesmo tempo em que os indicadores mostram o aumento do trabalho parcial para as mulheres, retrocessos em benefícios trabalhistas, aumento dos encargos domésticos, acompanhados de um discurso oficial de reforço ao papel da família e das mulheres em seu interior. A Inglaterra pode ser considerada o paradigma dessa situação. Mas países que pareciam incólumes a esse ideário, como Dinamarca e Suécia, por conta do processo de reestruturação global da economia e das tendências políticas mundiais, já começam a promover cortes e redefinir os seus gastos públicos. Estes Estados, onde a política do Bem-Estar foi mais avançada, têm como resultado a participação de cerca de 80% das mulheres na força de trabalho, e 33% dos parlamentares dinamarqueses pertencem ao sexo feminino.

Nos países ex-socialistas, o quadro tende a se apresentar de forma mais dramática, com a supressão de importantes serviços básicos, desemprego em massa de mulheres, retrocessos até na legislação, acompanhados por uma brutal desestruturação das instituições. Só para dar um exemplo, estudo realizado na ex-Alemanha Oriental, e divulgado no Jornal do Brasil em abril de 1994, indica que os casos de esterilização cresceram 2.000% em apenas quatro anos e os nascimentos diminuíram mais de 50%. Nesse estudo, as autoras indicavam a insegurança social, o desemprego e a recessão entre os principais responsáveis pelo fenômeno. Os custos humanos têm sido altos, com o declínio dos índices de saúde, educação, extinção de creches públicas e aumento da pobreza. Maxine Molyneaux (1993) observa existirem “amplas evidências que mostram que os efeitos acumulados deste processo se abatem de forma bastante desproporcional sobre as mulheres”.

“Países do norte e do sul defendem a relocação das mulheres à família e às tarefas tradicionais”.

Analisando a difusão das políticas neoliberais no mundo, esta mesma autora constata que a defesa da relocação das mulheres à família e às tarefas tradicionais é observada tanto em países industrializados do Norte como nos países pobres do Sul, que têm implementado políticas de estabilização ou ajuste estrutural, as quais têm maiores impactos sobre a provisão de serviços básicos. Muitos desses serviços, se não são oferecidos pelo Estado, têm na mulher o elemento provedor, viabilizador ou o suporte para a execução. Observa ainda essa autora que, nas negociações entre o Banco Mundial e os governos, tem prevalecido a proposta de que estes serviços sejam oferecidos na própria família, e não em nível público.

No que tange aos países capitalistas pertencentes ao denominado Terceiro Mundo, por serem alvo central destes programas, os resultados se manifestam através do crescimento dos indicadores de pobreza, gerando demonstrações populares de revolta. De acordo com Young (1993), estudos desenvolvidos em dez países que aplicaram estes programas indicaram que, em seis deles, os efeitos foram extremamente perversos, verificando-se um aumento de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza, tanto em números absolutos como proporcionais, verificando-se também um aumento da mortalidade materna e da anemia em mulheres grávidas, bem como maior redução na renda das mulheres pobres. Em relação aos outros quatro, apenas um país, a Coréia do Sul, indicou um declínio da pobreza, enquanto nos três restantes as evidências não eram claras. De acordo com Young, pelo fato de as mulheres e, particularmente, as chefes de família predominarem entre os pobres, terminam por ser, juntamente com as crianças, as que mais sofrem com a redução da comida, com a infra-estrutura, corte de empregos e serviços públicos.

“Aumenta a exploração de mão-de-obra nas multinacionais, onde cresce o número de mulheres”.

Estas políticas têm afetado as mulheres em diversos caminhos, através de mudanças na renda, na redução dos gastos públicos e de seu redirecionamento e, também, da deterioração das condições de trabalho. Em verdade, elas parecem não afetar apenas uma parcela das mulheres privilegiadas.

O neoliberalismo para os países em desenvolvimento tem como consequências a quebra da soberania e a subordinação completa aos interesses dos mercados centrais. Um dos impactos ocorre na política de emprego, com a deterioração das condições de trabalho e o aumento da exploração de uma mão-de-obra barata por parte das empresas estrangeiras, nas quais crescentemente encontram-se as mulheres. O próprio caso do México é emblemático dessa situação. De acordo com Le Doaré (1986), as montadoras e as fábricas subcontratadas de montagem que se estabeleceram no México nas últimas décadas dão preferência para as mulheres. Estas constituem cerca de 85% a 95% da mão-de-obra e concentram-se na linha de montagem. Segundo Le Doaré, “para aumentar a taxa da mais-valia, as empresas, não mascarando os lucros extraídos desse sistema de produção, oferecem salários baixíssimos e impõem condições de trabalho que permitem o aumento máximo de taxa de rentabilidade” (p. 53). Esse tipo de empresa chamada “maquiladora”, que se fez presente na economia mexicana, tem sua presença nos países em desenvolvimento, inclusive no Brasil. Le Doaré observa que “manter os salários ao nível mais baixo possível é uma política constante da empresa que possui um capital fixo muito reduzido (…) tão leve que, no México, várias dessas empresas ‘fugitivas’ puderam carregar as máquinas à noite, deixando as oficinas vazias, para não terem de indenizar ou mesmo pagar salário às operárias” (p. 54). Essa situação foi observada na primeira metade da década passada! É possível imaginar como se encontram as operárias mexicanas hoje, após a perda completa da soberania de seu país!

Nesse quadro econômico e político internacional sucintamente explicitado, pode-se sugerir que a garantia de direitos iguais, luta tão longa e importante, se confronta com a realidade e, muitas vezes, mostra-se formal. A batalhada conquista econômica por parte das mulheres e a tão divulgada independência e liberdade individual parecem estar acompanhadas de uma imensa vulnerabilidade à exploração e ao abuso, em que a divisão de papéis na família continua a funcionar como elemento inibidor-chave.

Como sugere Brenner (1993), em uma economia capitalista a família não é apenas arena de privacidade, intimidade e prazer social, mas, antes de tudo, a unidade básica de sobrevivência. Esta unidade, que ainda tem na mulher a responsável e executora, coloca-a concretamente numa posição desvantajosa no mercado e interfere em sua capacidade de negociação.

Isto ocorre mesmo nos centros capitalistas mais avançados. Analisando a situação das norte-americanas na atualidade, Brenner afirma que, pela inexistência de um Estado de Bem-Estar, às famílias cabe toda a negociação com o mercado, com as mulheres traçando suas estratégias baseadas na divisão sexual do trabalho e em seus encargos. Às que possuem um nível de renda e qualificação que lhes permite pagar a terceiros a realização de certas tarefas domésticas, estas estratégias garantem a obtenção de ganhos e vantagens nas negociações. Já para a maior parte, as estratégias implicam considerar empregos parciais, mal pagos e sem chance de qualificação.

“Mulheres de camadas favorecidas e bom nível profissional negociam livremente seu trabalho”.

Em uma economia considerada desenvolvida, e na qual a democracia liberal encontra-se consolidada, verificando-se um leque de conquistas de combate à discriminação de sexo, teoricamente as mulheres acham-se mais livres para negociar com os empregadores e com os homens. Segundo Brenner algumas efetivamente o fazem, ou seja, uma significativa parcela das camadas mais favorecidas e com bom nível profissional. Porém, a maior parte negocia a partir de uma posição subordinada, desvantajosa e limitada pela ausência de serviços públicos coletivos. Esta autora ilustra sua análise mostrando que, embora tenha crescido a parcela de mulheres que ganham mais e obtêm ascensão funcional, esta não é a realidade da mulher norte-americana em geral. Comparativamente, para as mais pobres as condições de trabalho teriam se deteriorado: 18% das que trabalham em tempo integral ganham menos de US$ 10.000 anuais, a mesma proporção do início da década de 1970, enquanto 28% das que trabalham em tempo parcial ganhavam em média um terço do que ganham as trabalhadoras de tempo integral.

Brenner chama a atenção para as diferenças entre as vantagens e ganhos obtidos pelas mulheres americanas pertencentes às camadas médias e altas em contraposição à maior parte, as de menor poder aquisitivo. Em outras palavras, megatrends, a imagem da mulher executiva, vendida pela mídia como modelo de emancipação, parece estar longe de corresponder à realidade da parcela feminina norte-americana. Para a autora, a realidade “indica que a situação não pode ser resolvida apenas com o aumento de uma legislação antidiscriminatória. Requer soluções: uma significativa redistribuição da saúde; reordenamento nas prioridades e expansão dos gastos governamentais em algumas áreas; e crescente regulação das práticas empregatícias”, questões que, segundo ela, “ameaçam diretamente poderosos interesses capitalistas” (p. 103).

As desigualdades em relação às mulheres também têm sido um fator de preocupação dos organismos internacionais há algumas décadas. A tentativa de integrar as mulheres aos processos de desenvolvimento (entendimento na acepção oficial do termo) já foi alvo de cinco deferentes políticas. A primeira é conhecida como política de bem-estar: as mulheres eram vistas muito mais como mães e responsáveis pelos cuidados com os outros do que como atores econômicos; a segunda é a da igualdade, ou seja, tratava-se de ajudá-las a ganhar acesso à arena pública nas mesmas condições que os homens; a terceira, no início da década de 1970, era a de combate à pobreza: o objetivo era minimizar a pobreza, visando a minorar seus efeitos e garantir às mulheres melhor acesso aos recursos produtivos; a quarta era a de eficiência: tratava-se de melhorar a contribuição que as mulheres poderiam dar ao mercado e ao desenvolvimento, uma vez que assim, acreditava-se, elas avançariam na igualdade; a quinta, e atual, é a do empowerment (dar poder): esta já é uma visão mais crítica, fruto de maior articulação das mulheres frente a estes organismos internacionais, e visa a capacitá-las a participar das decisões políticas, a ter controle sobre as suas vidas, a decidir o que querem e como querem.

“Embora avançada, a política do empowerment também não se traduziu em ações concretas”.

Embora esta última tenha um conteúdo avançado, o fato é que estas políticas parecem não ter conseguido muitos resultados, não se traduziram em ações e iniciativas reais, tornando-se evidente que os compromissos assumidos pelos países que integram estes organismos internacionais se situam, em geral, no plano da retórica. Isto se deve tanto à ausência de uma vontade política destes países quanto à predominância de um tipo de desenvolvimento já bastante constatado como excludente e centrado em padrões capitalistas tidos como universais e impostos como paradigmas. O problema de fundo é que estes organismos, mantidos e dominados principalmente pelos países capitalistas centrais, não possuem poder real. Tornam-se, cada vez mais, uma maneira de os governos, através de declarações de intenções, diluírem as origens e as causas das desigualdades, e não locais para pensar a sua resolução. Assim é que, como saídas concretas, indicam-se constantemente iniciativas particulares, incentivos aos pequenos empreendimentos domésticos, flexibilização dos horários de trabalho das mulheres. Mas está ausente a redefinição de qualquer problema que implique mudanças na essência das relações econômicas e sociais. No fundo as saídas deverão ser buscadas nas próprias mulheres!

Em suma, o que vários estudos parecem indicar, quando se referem ao Leste europeu, aos modelos norte-americanos ou do welfare-state ou aos países do chamado Terceiro Mundo, é que as transformações da situação das mulheres e das relações de gênero também estão relacionadas a soluções políticas de fundo. E é nesta perspectiva que se deve pensar uma política de gênero relativa à questão da pobreza e do trabalho no Brasil.

“Busca de identidade e independência, além de necessidades econômicas determinam mudanças”.

É fato por demais constatado e conhecido as profundas transformações operadas na realidade da mulher brasileira, sobretudo nos últimos vinte anos. A maior parte das análises indica também que tais mudanças, mesmo para as mulheres das camadas mais pobres, não se verificaram apenas por necessidades econômicas, mas também por fatores culturais relacionados à busca de identidade e independência.

Indicadores estatísticos relativos à educação demonstram crescimento da escolarização feminina, que supera a dos homens, o aumento da parcela de mulheres que ganham salários mais altos, e verifica-se até mesmo uma ligeira redução dos diferenciais de salários entre homens e mulheres em geral. Assim, também o Brasil acompanha uma tendência geral de modificação no perfil e na posição das mulheres nos âmbitos econômico e social e a redução de discriminações mais clássicas e explícitas entre homens e mulheres.

Ocorre que esta tendência, por si, não nos conduz a perspectivas muito animadoras de inversão, em curto ou médio prazo, do quadro dramático que se apresenta. Embora tenha havido uma grande mudança no perfil e no acesso ao trabalho, esta tendência não parece estar conduzindo a uma inversão da posição e dos recursos a que as mulheres têm acesso, uma vez que o fosso é considerável e a própria legislação brasileira era até há pouco bastante restritiva. Trabalho igual continua não significando salário igual, assim como direitos iguais não significam acessos iguais. A questão que se coloca não é se a situação das mulheres está pior ou melhor. É se esta melhora corresponde, ao menos de longe, ao grau de inserção e de contribuição destas à sociedade. Em nosso caso, trata-se de um país marcado por profundas desigualdades sociais, nas quais a maior parte das mulheres responde por indicadores dramáticos, situando-se em grande proporção na base da pirâmide. Especialmente as chefes de família (20% das que trabalham) que, muitas vezes, além de responsáveis únicas pelo sustento dos filhos, não têm acesso a nenhum bem previdenciário (Botelho, 1994). Têm-se 62% das mulheres ganhando até dois salários mínimos e 10% que trabalham sem remuneração. Quase 50% sem carteira assinada, e um ganho médio de menos de 60% dos salários dos homens. Em pesquisa recente, Aguiar (1993) comprova que, no Rio de Janeiro, mulheres com a mesma idade e mesmo nível educacional recebem salários 60% menores que o dos homens. Num país onde os salários já são aviltantes, pode-se imaginar o significado desses dados.

A reversão desse quadro torna-se emergencial não só pelos efeitos econômicos e sociais que ele gera, mas também pelos políticos. Há décadas, no Brasil, uma parcela significativa da população vive em condições precárias, abaixo da chamada linha de pobreza, que em 1960 correspondia a 41,3% da população e, em 1988, ou seja, 28 anos depois de uma industrialização considerável, corresponde a 39,3% (Reis, 1993). Temos uma população – maior que a da Inglaterra, da Espanha e de muitos países europeus – que não pode consumir, não tem acesso a nenhum tipo de bem e não é ouvida e considerada. Reis chama a atenção para o fato de que “a persistência da pobreza pode contribuir para elevar a taxa de alienação diante da política”, uma vez que, “para os milhões que vivem à margem da sociedade, privados do acesso a bens e serviços e experimentando toda sorte de privações materiais, a política perde o sentido”. A perda de sentido em relação à política tende a significar abstenção, descrédito e ausência de opinião e de busca de interferência nas questões conjunturais e estruturais.

“O emprego em domicílio e os subcontratos sociais têm crescido como parte das estratégias do capital”.

Nesse quadro, cabe refletir, principalmente, sobre a situação da maior parte das mulheres, uma vez que, além de se encontrarem nesta condição, seu papel na família e as tradições culturais dificultam a sua ação política. Donde pode-se também supor que os efeitos políticos tendem a ser mais perversos para a parcela feminina. Perversos até para dificultar o enfrentamento das estratégias montadas pelo capital, com o objetivo de aumentar a margem de lucro, ou no mínimo mantê-las, quando conquistas sociais garantem a regulação de certos direitos mesmo quando toda a ação governamental se volta para a subordinação desses direitos aos interesses do mercado. Na América Latina, o emprego em domicílio e os subcontratos industriais têm crescido como parte dessas estratégias. Em várias dessas novas modalidades introduzidas nos processos e relações de trabalho, as mulheres têm sido incluídas como mão-de-obra preferencial. Assim, se do ponto de vista da economia dominante mundial o arcabouço jurídico não discriminatório tende a contrastar com a ausência e chances reais de uma negociação livre e igualitária, particularmente para as mulheres, no Brasil da exclusão tais chances tornam-se ainda mais reduzidas, a não ser em situações de pressão e organização política. E os ganhos registrados até o momento, quer na legislação, quer nos acordos, devem-se a corajosas mobilizações das trabalhadoras, que não poucas vezes declararam ter de enfrentar não apenas o patrão, mas a cobrança doméstica.

O Brasil é signatário de compromissos internacionais em relação aos direitos da mulher. No entanto, um balanço mínimo mostra que também aqui estes compromissos situam-se no plano eminentemente formal. De fato, mesmo em se tratando de iniciativas paliativas e limitadas, o Brasil encontra-se bem mais atrasado que muitos países latino-americanos.

As lutas e as experiências das mulheres indicam que, devido às características das discriminações de gênero, mesmo políticas públicas exigem um grau de compromisso do Estado que ultrapasse a esfera dos direitos formais. Sair do nível da simples regulação ou compensação das disparidades geradas pelas relações capitalistas significa ir além da garantia da igualdade. Implica intervir na lógica que gera as disparidades e as assimetrias entre homens e mulheres. Questão complexa e desafio que mesmo as experiências socialistas que se pautaram pela busca da chamada emancipação e por políticas compensatórias ficaram longe de enfrentar em toda a sua plenitude.

Ao mesmo tempo, o enfrentamento da questão da desigualdade no país coloca a necessidade de se contar com um Estado comprometido, econômica e politicamente, com esse objetivo, com políticas sociais e que não seja mero avalizador dos interesses do mercado. Em outras palavras, trata-se de um amplo espectro de transformações, em caminho contrário às alternativas de corte neoliberal e programas recessivos, ou seja, em direção oposta à via de reestruturação econômica definida para os países capitalistas em desenvolvimento e que é hoje a meta central do atual governo.

“O Estado é visto como ente abstrato, como se não existissem classes e grupos que detêm o seu poder”.

Do ponto de vista de uma política que pretenda, de fato, incorporar a questão de gênero, as propostas necessitariam superar o plano liberal predominante até o momento e indicar caminhos capazes de construir as condições concretas para o exercício da igualdade, o que requer “intervir desigualmente em relação aos desiguais”.

Entretanto, à medida que o balanço da situação é feito, verificam-se que as crises do capitalismo agravam sobremaneira as adversas condições de vida da maioria das mulheres. A chamada globalização tem como um dos pontos constantemente abordados o argumento de que em um uma economia internacionalizada, de mercados transnacionais, o Estado vai perdendo sua razão de ser, assim como o próprio conceito de soberania. A estratégia é alardear a ineficiência e incapacidade do Estado. Este, por sua vez, torna-se um ente abstrato, como se não existissem classes e grupos que detêm o seu poder e respondem pelas políticas implementadas. Sem entrar no debate mais global, o fato é que as diferentes realidades expostas indicam que – em se tratando de direitos da mulher e de políticas de gênero – a existência de um Estado de fato democrático e dirigido por interesses sociais, voltado para atender às necessidades dos trabalhadores e trabalhadoras, é essencial. A ideologia neoliberal é, portanto, contrária à própria essência das reivindicações materiais das mulheres, que dependem de iniciativas de cunho social. O que há de comum entre as diferentes realidades expostas anteriormente é o fato de em todas elas ou inexistirem políticas públicas e sociais ou terem sido drasticamente cortadas. E todas as mulheres tornaram-se mais sobrecarregadas e exploradas.

Embora a conquista dos direitos formais, inscritos na Constituição e nas leis, tenha a sua atualidade e a sua importância para a luta das mulheres, fica claro que a superação das desigualdades entre os espaços de homens e mulheres é uma questão política – e só com este ponto de vista é que se pode, de fato, abrir novos caminhos. O discurso sobre os direitos da mulher, sua integração à economia, é hoje generalizado. Resta saber com que perspectiva isto vem se dando. Assim, definir o papel do Estado e defender o modelo que queremos é hoje tema central para a agenda dos movimentos de mulheres. Retomando Brenner, “a quebra da divisão por gênero irá requerer a reorganização de como nós, mulheres e homens, nos organizamos e realizamos as necessidades humanas”.

* Socióloga e coordenadora da área de trabalho do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Rio de Janeiro.

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EDIÇÃO 37, MAI/JUN/JUL, 1995, PÁGINAS 37, 38, 39, 40, 41, 42