O fim da União Soviética não é o fim do comunismo
No último mês de abril, o presidente do Conselho Nacional do Partido Comunista Português visitou o Brasil a convite do Centro Cultural 25 de Abril, para comemorar com os brasileiros e a colônia portuguesa o vigésimo primeiro aniversário do movimento popular militar que passou à história como Revolução dos Cravos.
Álvaro Cunhal fez, em nosso país, inúmeros contatos políticos, proferiu palestras, realizou reuniões com ativistas sindicais, debateu com intelectuais e estudantes questões candentes do mundo contemporâneo. Entre esses encontros, destacamos a reunião com a direção nacional do PCdoB, ocasião em que os dois partidos fizeram uma profícua reflexão conjunta sobre problemas políticos e ideológicos de grande atualidade, e reafirmaram a convicção nos valores e idéias socialistas.
Nesta entrevista, o veterano dirigente comunista português faz um balanço do processo revolucionário vivido em seu país a partir de 25 de abril de 1974, destacando seu caráter democrático e popular, o alcance de suas conquistas e o papel desempenhado pelo Partido Comunista Português.
De grande interesse são as suas análises sobre os componentes e vertentes inseparáveis da democracia e sobre a defesa da soberania nacional portuguesa, hoje seriamente ameaçada pela integração na União Européia, “dominada e comandada supranacionalmente”, na opinião de Cunhal, “pelos países mais poderosos e pelas transnacionais”.
Nas páginas que seguem, o leitor conhecerá também a opinião do dirigente comunista português sobre as causas que levaram à derrota as primeiras experiências de construção do socialismo na União Soviética e no Leste europeu, uma análise crítica que não perde de vista o inestimável valor histórico da Revolução de Outubro de 1917, da criação da União Soviética e da construção do socialismo. No texto, Cunhal reafirma enfaticamente sua noção de que “o século XX não é, como proclamam alguns, o século da morte do comunismo, mas o século em que o comunismo nasceu”.
Em tempos de abjuração e apostasia, encontramos nas declarações de Álvaro Cunhal uma firme defesa da identidade comunista do Partido, do socialismo e das idéias de Marx, Engels e Lênin.
As ilustrações desta matéria são fragmentos dos Desenhos da prisão do artista Álvaro Cunhal.
José Reinaldo Carvalho Princípios – Duas décadas depois, como se pode avaliar o processo revolucionário que liquidou a ditadura fascista em Portugal?
Cunhal – A revolução portuguesa dos anos 1974 e 1975 constitui um glorioso empreendimento libertador do povo português e um momento imorredouro na história da nação portuguesa.
A questão colocada utiliza muito corretamente a expressão “processo revolucionário”. De fato a revolução democrática portuguesa não foi, como alguns afirmam, um golpe militar e popular que transformou profundamente a sociedade. O levante militar conduzido pelos “capitães” do Movimento da Forças Armadas (MFA) levou à rendição o governo fascista e foi imediatamente seguido de um levante popular em nível nacional, fundido numa mesma e impetuosa corrente revolucionária o povo e as forças armadas. Isso imprimiu uma nova dinâmica e objetivos mais avançados ao processo da conquista, instauração e institucionalização do novo regime democrático.
“Reconhecido o direito à imediata independência aos povos das colônias portuguesas no mundo”
Princípios – Quais as principais conquistas da revolução?
Cunhal – Conforme o Partido Comunista Português (PCP) definiu no seu VI Congresso, realizado na clandestinidade em 1965, a ditadura fascista era o governo terrorista dos monopólios (associados ao imperialismo estrangeiro) e dos latifundiários. Além dessa natureza de classe, uma característica específica da situação era o fato de Portugal, com império colonial na África, ser um país efetivamente colonizado na Europa. Dessa situação decorriam os objetivos definidos pelo PCP para a revolução antifascista: a conquista da liberdade como primeiro e central objetivo, do qual dependiam todos os outros; a liquidação do poder dos monopólios e o desenvolvimento econômico geral; a reforma agrária com a liquidação dos latifúndios e a entrega da terra a quem trabalha; a elevação do nível de vida das classes trabalhadoras e do povo em geral; a democratização da instrução e da cultura; a libertação de Portugal do imperialismo; o reconhecimento do direito à imediata independência aos povos das colonias portuguesas; e uma política de paz e amizade com todos os povos. Esses objetivos foram comprovados como necessidades concretas no processo revolucionário.
Foi instaurado um regime político democrático avançado, com reconhecimento das liberdades e direitos dos cidadãos; órgãos de poder independentes e responsabilizados; poder municipal descentralizado e ligado às populações; leis eleitorais com o princípio da proporcionalidade; formas de democracia representativa; formas diversas e criativas de democracia direta e participativa.
“As forças reacionárias procuram sabotar as mudanças democráticas, organizar provocações”
Foram liquidados os grupos monopolistas com a nacionalização da banca e das empresas e setores básicos da economia. Uma reforma agrária expropriou os latifúndios e constituiu cerca de 550 Unidades Coletivas de Produção (UCPs/Cooperativas), que asseguraram um rápido desenvolvimento agrícola, o fim do desemprego na região e o melhoramento das condições de vida das populações. Trabalhadores, mulheres, jovens e idosos tiveram seus direitos fundamentais reconhecidos, e a situação das camadas desfavorecidas melhorou. O ensino e a cultura se democratizaram. A criminosa guerra colonial teve fim, reconhecendo-se aos povos submetidos ao colonialismo português o direito a imediata autodeterminação e independência. O isolamento internacional foi rompido, com o estabelecimento de relações com numerosos Estados de todos os continente.
Essas transformações revolucionárias se realizaram no curto período de um ano e meio. Desde 1976, sucessivos governos tentaram destruí-los sem sucesso – o que comprova o quanto tais mudanças correspondiam às necessidades objetivas e aspirações profundas do povo português.
Princípios – As forças revolucionárias têm investido contra essas conquistas. Como está essa situação?
Cunhal – As forças reacionárias procuraram, logo a partir do primeiro dia da insurreição, sabotar as transformações democráticas, organizar provocações, golpes de Estado, golpes militares, ações terroristas, para abafar o movimento popular, subjugar os movimentos progressistas ao MFA e assaltar o poder. Deve-se ter em conta uma particularidade da revolução portuguesa: a Junta de Salvação Nacional, inicialmente instituída pelos militares, era composta e dominada por generais reacionários, tendo como presidente o general Spínola. Este foi, nos anos 1974 e 1975, o promotor direto de sucessivos golpes e tentativas de golpes contra-revolucionários, sem êxito. Os Governos Provisórios, com a participação do PCP, eram constituídos por partidos e forças muito contraditórias. As grandes conquistas democráticas (a começar pelas liberdades fundamentais, a legalidade dos partidos, a libertação de presos políticos e a extinção da criminosa polícia política) não foram concedidas pelo poder (Junta de Salvação Nacional e Governo Provisório), mas conquistadas pela ação revolucionária dos trabalhadores e das massa populares, aliados aos setores progressistas do MFA. A revolução portuguesa mostrou que, num processo revolucionário, as massas populares podem realizar profundas transformações da sociedade, mesmo não dispondo de poder político. Mas, por outro lado, confirmou também que as grandes conquistas ficam comprometidas e podem acabar por perder-se, se o poder não for alcançado e continuar ocupado por forças contra-revolucionárias.
Assim foi de fato. A partir de 1976, depois de um processo irregular e acidentado que levou à liquidação do MFA (novembro de 1975), sucessivos governos empreenderam passo a passo a liquidação de grandes conquistas da revolução democrática, perseguindo o objetivo estratégico de reconstituição e restauração de poder dos grande guros monopolistas e dos grandes latifundiários. Tais governos foram do Partido Socialista (PS) sozinho, do PS coligado com o Centro Democrático Social (CDS), do PS coligado com o Partido Social-Democrata (PSD), do PSD coligado com o CDS, e do PSD sozinho.
“Lutamos para afastar a direita do poder e por uma alternativa mais democrática”
Num escandaloso processo de privatizações desenvolvidas num pântano de ilegalidades e corrupção nas mais altas esferas do poder, esses governos entregaram e entregam as empresas, os setores básicos da economia e tudo o que é rentável aos grupos monopolistas associados às transnacionais. Isto tem significado, em muitos casos, o domínio estrangeiro sobre as alavancas fundamentais da economia portuguesa. A reforma agrária foi liquidada, restaurando-se os latifúndios e o poder dos latifundiários, o que significa a eliminação de 50 mil postos de trabalho, desemprego em massa, terras abandonadas, emigração desertificação de regiões inteiras. A exploração, o desemprego e o trabalho precário se agravam, e muitos dos direitos vitais dos trabalhadores foram suprimidos. A ação desses governos diminuiu drasticamente as obrigações do Estado, no domínio da saúde, da educação e da habitação, e perverteu anticonstitucionalmente o funcionamento das instituições, com vista a um poder absoluto e impune.
É uma situação de desastre nacional a que é imperioso pôr fim. É nesse sentido que lutamos. As eleições para a Assembléia da República que terão lugar no dia 1º de outubro de 1995 têm um significado particularmente importante. Lutamos para afastar a direita do poder e por uma alternativa democrática, certos de que o PS sozinho no poder continuaria a mesma política de direita, e que não é possível uma alternativa democrática à política atual sem a participação do PCP.
“A associação da luta institucional e da luta de massas é objetivo constante do Partido”
Princípios – Qual o papel do Partido Comunista Português no processo revolucionário de 25 de abril, em 1975 e nos anos seguintes?
Cunhal – Logo nas primeiras horas do levante militar, antes da rendição do governo fascista cercado pelas forças do MFA e pelas massas populares, as nossas organizações e militantes intervieram ativamente, promovendo grandes manifestações de massa, aparecendo com as bandeiras e a afirmação corajosa do Partido. Com as massas populares, contrariamos as decisões dos generais da Junta de Salvação Nacional, que queriam obrigar o povo a se recolher às suas casas, impedir a legalização dos partidos, manter a sinistra polícia política (PIDE-DSG), atrasar e excluir os comunistas da libertação dos presos políticos. Poucos dias depois de 25 de abril, no dia 1º de Maio, uma gigantesca manifestação e comício em que interviemos marcou a poderosa participação da classe operária e do PCP no processo revolucionário. Na luta contra a ditadura, no processo revolucionário e no atual enfrentamento da política reacionária a ação de massas foi – e continua sendo – uma direção fundamental e prioritária da ação do partido.
Ao mesmo tempo, participamos ativamente nas instituições: em 1974 e 1975, nos quatro primeiros Governos Provisórios; em 1974 e 1975, nas eleições para a Assembléia Constituinte, elegendo 30 deputados; na elaboração e aprovação da Constituição da República, com papel destacado; nos órgãos municipais provisórios e na direção dos municípios em vastas regiões onde ganhamos as eleições. Elegemos deputados para o Parlamento Europeu, e eu próprio fui muitos anos (1982-1992) membro do Conselho do Estado.
A associação da luta institucional e da luta de massas é uma constante da nossa intervenção e ação da vida nacional.
Princípios – O último Congresso do Partido Comunista foi realizado sob o lema “Socialismo e Democracia em Portugal”. Aprovaram-se resoluções e um Programa que apontam para a luta pelas cinco vertentes da democracia em Portugal. Poderia o camarada discorrer sobre o assunto?
Cunhal – Quando se definem as grandes linhas de uma política democrática, são geralmente referidas as áreas política econômica, social e cultural. Nossa experiência na luta contra o fascismo, na Revolução de Abril e instauração do novo regime democrático e na resistência à contra-revolução, conduziu-nos a um aprofundamento dessa problemática.
Ao contrário do que afirmam as forças do capital, reacionárias e conservadoras, não são quatro áreas que possam ser consideradas independentes, e sim quatro componentes ou vertentes inseparáveis da democracia, e também quatro componentes inseparáveis de uma política contra-revolucionária ou antidemocrática.
“Política democrática exige não só democracia política, mas social e cultural também”
A reconstituição e restauração do capitalismo monopolista, processo de centralização e acumulação do capital, tem como componentes a maior exploração dos trabalhadores e das massas laboriosas em geral; o elitismo no domínio da cultura; as limitações, discriminações e perversões das liberdades e direitos dos cidadãos e do regime político sujeito a alterações que garantam a continuidade das forças no poder.
Ao contrário, uma política verdadeiramente democrática exige não só democracia política, mas democracia econômica, social e cultural.
No programa do nosso Partido, aprovado no XIV Congresso, são indicados e desenvolvidos quatro objetivos ou componentes fundamentais inseparáveis: um regime de liberdade com um Estado democrático; um desenvolvimento econômico com um forte setor do Estado nas empresas e ramos estratégicos; uma política social que garanta o melhoramento das condições de vida do povo; e uma política cultural que assegure o acesso à livre criação e fruição culturais.
No caso português, acrescentamos ainda um quinto componente e objetivo: o nacional. A integração de Portugal na União Européia é um obstáculo usado pelas forças reacionárias a uma opção política verdadeiramente democrática no país. A União Européia é dominada e comandada supranacionalmente pelos países mais poderosos e pelas transnacionais, o que significa a perda de elementos fundamentais de soberania e independência nacional portuguesa.
Princípios – Como está Portugal no quadro da integração à União Européia?
Cunhal – Dada a natureza da União Européia e a política de capitulação nacional de sucessivos governos, Portugal está sendo tratado como um país periférico, cujos interesses vitais são sacrificados aos interesses dos países mais ricos e poderosos. O Tratado de Maastricht, de objetivos federalistas, estabelece a obrigatoriedade de uma “política comum” da União Européia, à qual se devem submeter as políticas dos países-membros. Isso diz respeito às diferentes políticas: econômica e financeira, orçamentária, industrial, agrícola e de pescas, de defesa e segurança e, também, externa e militar. Quem decide a política comum são as instâncias supranacionais, em que as decisões acabam por ser impostas pelos três mais ricos e poderosos – Alemanha, França e Grã-Bretanha.
“Não somos a favor de isolamento nem de soluções autárquicas. Somos pela cooperação”
Os resultados estão à vista. Por imposição da União Européia e pela orientação antinacional de sucessivos governos de Portugal, leva-se a cabo um processo sistemático de desindustrialização, arruínam-se a agricultura e a pesca, o mercado interno é invadido por produtos importados, agravam-se os déficits energéticos, agroalimentar e tecnológico. Em tal situação, atinge as raias do crime o envio para Portugal de fundos para pagar a agricultores para não produzirem, ou para enterrarem os produtos, sob pretexto de não estarem estes em conformidade com as normas comunitárias.
Não somos partidários do isolamento internacional nem de soluções autárquicas. A internacionalização dos processos produtivos, a divisão internacional do trabalho, a cooperação científica e tecnológica e os sistemas de integração são necessidades objetivas do desenvolvimento neste final de século. Mas devem desenvolver-se no quadro da cooperação de Estados livres e iguais, e não em situação de dominação e exploração dos mais atrasados e mais fracos pelos mais poderosos. Em relação ao nosso país, consequentemente, defendemos que o governo lute na União Européia pelos interesses portugueses, invocando a aplicação de princípios que, em termos de tratado, são reconhecidos mas não têm sido respeitados, como os interesses vitais de Portugal, a característica específica da agricultura, os prazos de aplicações das medidas decididas, a necessidade de não contradizer a proclamada coesão econômica e social etc.
Princípios – Como pôde o Partido Comunista Português sobreviver a quarenta e oito anos de perseguições do regime fascista e ainda emergir do processo revolucionário como uma organização de vanguarda influente e estruturada?
Cunhal – A luta e o desenvolvimento do PCP nas duras condições de clandestinidade tiveram um processo muito difícil e acidentado. Nos quarenta e oito anos de resistência ao fascismo e de luta pela liberdade, foi praticamente o único partido que, através da dedicação e coragem de gerações de militantes, fez frente à repressão e desenvolveu permanentemente uma atividade política. Perseguições, torturas na polícia por vezes até a morte, pesadas condenações, camaradas que chegaram a estar presos mais de vinte anos, assassinatos de militantes, não impediram a atividade constante do Partido. Entre os elementos que permitiram ao PCP tornar-se, nas duras condições de clandestinidade, um grande partido nacional, contam-se um forte núcleo dirigente inteiramente dedicado; um aparelho e organização clandestinos; a publicação de imprensa clandestina, principalmente do órgão central do Partido (Avante!) sem interrupções nos últimos trinta anos de ditadura; uma ação política constante; a iniciativa de movimentos unitários; a associação de atividade ilegal, semilegal e legal. Mas o elemento fundamental e determinante foi a criação de profunda ligação e indestrutíveis raízes na classe operária, nas massas trabalhadoras, e isso significa a criação não apenas de apoio à ação do partido, mas participação e empenho, desenvolvimento constante da luta de massas em todas as frentes, reforço e renovação do próprio partido e da sua direção por militantes vindos dos locais de trabalho, das massas, com rica experiência.
Assim foi a revolução democrática e nas conquistas revolucionárias, e assim tem sido na situação atual.
“O século XX é o período do nascimento e vida do comunismo”
Princípios – Como analisar as causas que levaram à derrota as primeiras experiências de construção do socialismo – União Soviética e Leste europeu?
Cunhal – Antes de mais nada, é necessário confirmar e afirmar que a revolução socialista de 1917, as transformações, conquistas e realizações na construção da sociedade socialista, a criação da União Soviética e o poderoso impulso dado à luta libertadora dos trabalhadores e dos povos do mundo ao longo do século XX constituem acontecimentos históricos, que os comunistas, as forças revolucionárias e os trabalhadores têm justo motivos de considerar as grandes aquisições do patrimônio revolucionário. Temos afirmado que o século XX não é, como proclamam alguns, o século da morte do comunismo, mas o século em que o comunismo nasceu, pois foi, e é, no século XX que pela primeira vez em milênios de história, o sentimento de injustiça, a revolta, o sonho e a utopia se tornaram um projeto político, uma luta revolucionária, e o ser humano empenhou-se concretamente na construção efetiva da nova sociedade.
“Maior rigor na definição de perspectivas do projeto de socialismo”
Em nosso entender, a grande derrota da construção da nova sociedade na União Soviética e no Leste da Europa não significa derrota e fracasso de um “modelo” que, numa evolução complexa, se afastou desse ideal e desses objetivos.
Ainda antes de derrocada da União Soviética, o nosso Partido realizou, em maio de 1990, um Congresso extraordinário (o XIII) em que procedeu a uma primeira análise dos graves acontecimentos no Leste da Europa. É um tema que necessita de aprofundamento, e sobre o qual estamos sempre interessados em conhecer as análises de outros partidos, como contribuição para nossa reflexão. Temos como certas, entretanto, até hoje, algumas das conclusões acerca das grandes derrotas na construção do socialismo.
Assim, o poder político dos trabalhadores e a democracia política “mais rica que a mais democrática das democracias burguesas” acabaram por dar lugar a um poder e a um Estado altamente centralizado, cada vez mais distantes da intervenção e da vontade das massas populares, e tendendo, como norma, a substituir soluções políticas por decisões administrativas e processos repressivos. Acabaram por dar lugar a uma estatização excessiva da economia, a uma planificação decidida longe das realidades do aparelho produtivo e da experiência dos trabalhadores e indiferente ao mercado como realidade objetiva. No Partido o centralismo democrático acabou por ser concebido e praticado com o enfraquecimento de intervenção democrática da massa de militantes e com uma centralização democrática e intolerante da direção, com esta distanciando-se cada vez mais da base e dos sentimentos e aspirações das populações. A cristalização e dogmatização do marxismo-leninismo, impostos como ideologia do partido e do Estado, incapacitou uma análise objetiva das novas situações, dos novos fenômenos, das novas realidades.
Os acontecimentos são para nós uma advertência de que a repetição de traços negativos de um tal “modelo” poderá conduzir, no futuro, a semelhantes derrotas.
As conclusões nesta matéria não são apenas importantes em termos de análise histórica. São importantes também em termos de experiência, de ensinamentos, de maior rigor na definição de situações, das perspectivas e do próprio projeto da sociedade socialista, que nós, comunistas portugueses, continuamos a ter como objetivo.
“Há princípios provados pela vida, mas sua validade exige mais criatividade”
Princípios – Que significa a cristalização da teoria, e como se luta contra ela? Como relacionar, por exemplo, o combate ao dogmatismo com a defesa e renovação dos princípios?
Cunhal – Confirmar o marxismo-leninismo como teoria revolucionária dos comunistas não pode significar que se considerem como válidas, neste fim de século XX, todas as análises e conclusões teóricas de Marx e Lênin na época. Passaram-se 150 anos desde a realidade do capitalismo em que o Manifesto Comunista e O Capital foram editados, e 100 anos desde a nova realidade do capitalismo analisada criativamente por Lênin na sua célebre obra O imperialismo, estágio supremo do capitalismo. Desde então, houve profundas transformações econômicas, sociais, científicas e tecnológicas. Não se pode substituir a análise das novas realidades pela citação acrítica dos textos que respondiam a realidades diferentes e distantes, e tomadas como “princípios” de validade intemporal. E isso foi feito com frequência no movimento comunista ao longo do século, numa cristalização e dogmatização que limitaram, e por vezes incapacitaram, a análise e a compreensão de novos fenômenos e realidades, e uma resposta criativa e correta, teórica e prática. A teoria tem um desenvolvimento próprio, produto da inteligência de sucessivas gerações. Mas nasce da realidade e a ela responde.
Há “princípios” comprovados pela vida. Mas a sua validade exige, ao mesmo tempo, desenvolvimentos criativos acompanhando as mudanças da realidade.
Assim, por exemplo, são válidos e comprovados pela ciência e pela vida o materialismo dialético e a idéia de que o sobrenatural é criação do homem, produto de seu insuficiente conhecimento da realidade. É válido o materialismo histórico, e neste o papel das estruturas sócio-econômicas e da luta de classes como determinantes da evolução das sociedades e da natureza do Estado. São válidas as teorias do valor e da mais-valia, assim como a definição da natureza exploradora e agressiva do capitalismo e do imperialismo atuais. São válidos e comprovados pela história do século XX o projeto revolucionário e o empreendimento da construção de uma sociedade libertada de exploração, desigualdades, injustiças e flagelos sociais do capitalismo – uma sociedade socialista.
“A convicção e coragem comunistas são mais necessárias e podem ser determinantes hoje”
Mas, em todas e em cada uma dessas áreas do conhecimento e da teoria, a análise da realidade, a resposta teórica e o desenvolvimento da ação não devem estar condicionados à idéia de que já se é senhor de verdades eternas. A criatividade é um elemento intrigante da teoria revolucionária dos comunistas.
Princípios – Em que termos se pode afirmar a atualidade e a vigência da luta pelo socialismo no quadro político e ideológico do mundo contemporâneo?
Cunhal – A luta pelo socialismo, neste final de século XX, oferece novas dificuldades, com o desaparecimento da União Soviética, a resultante alteração radical da correlação de forças e a nova ofensiva do imperialismo para recuperar e impor a hegemonia mundial. Algumas realidades são, porém, incontestáveis. O capitalismo mantém a sua natureza exploradora e agressiva, e não só não resolve como agrava os grandes problemas da humanidade. A luta contra a exploração, a opressão, as cada vez mais gritantes desigualdades e injustiças sociais, as agressões, intervenções e guerras contra a liberdade e a opção dos povos não só é necessária, como o seu desenvolvimento é inevitável.
As contradições e as crises do capitalismo geram os fatores de sua própria destruição. O capitalismo não é um sistema. Os comunistas continuam a indicar o justo caminho para a solução dos grandes problemas da humanidade. E com os comunistas novas forças nascem e se desenvolvem. É tarefa intensificar a cooperação e a solidariedade e, sempre que possível, a ação comum de todas essas forças. A convicção e a coragem dos comunistas são particularmente necessárias e podem ser determinantes no momento atual.
EDIÇÃO 38, AGO/SET/OUT, 1995, PÁGINAS 42, 43, 44, 45, 46, 47