A Teoria estética é a última obra de Adorno (1), publicada logo após sua morte, em agosto de 1969. O texto, de leitura extremamente difícil, solicita uma atenção permanente do leitor. Construído basicamente por fragmentos que vão se somando até formar um imenso conjunto, ele expõe de forma inequívoca a concepção da obra de arte do autor.

Uma de suas características mais marcantes é o fato de ela ser uma versão modificada da teoria crítica desenvolvida por Marx, que faz a análise da sociedade a partir das forças produtivas e das relações sociais de produção. Aqui, há um deslocamento do interesse teórico, uma vez que a análise da sociedade é realizada mediante uma reflexão centrada na obra de arte.

Esse deslocamento da esfera econômica para a esfera cultural decorre do ceticismo que percorreu a Europa no pós-guerra. Na verdade, há um descrédito por parte de Adorno e da maioria dos pensadores da Escola de Frankfurt de que as forças produtivas pudessem modificar o sistema capitalista. Em consequência, ele centraliza sua atenção na esfera cultural, identificada como instância de manipulação da consciência.

Para Adorno, a estética é a única forma que nos resta para criticar o sistema social, uma vez que o sistema como um todo está dominado pela falsidade, expressão de uma pretensa harmonia que a ideologia burguesa finge existir: “é aqui, na obra de arte, que se preserva uma pequena área de verdade, aqui a crítica ainda é possível e é aqui que ela precisa ser feita” (Freitag, 1988: 81).
Adorno inicia a construção da Teoria estética afirmando ter se tornado manifesto que nada relativo à arte, nem mesmo o seu direito de existir, ainda seja óbvio: “tornou-se manifesto que tudo o que diz respeito à arte deixou de ser evidente, tanto em si mesma como na relação com o todo, e até mesmo o seu direito de existência” (Adorno, 1970: 11). Essa afirmação decorre do fato de ele acreditar que a autonomia artística (2) se virou contra a própria arte. A autonomia acaba fazendo o jogo da ideologia dominante, levando a arte ao circuito das mercadorias. A arte deixa de ser o que é para se transformar em mercadoria, deixa de ser cultura para se tornar valor de troca (3).

Para não entrar no circuito das mercadorias, a arte deve ser crítica, deve ser protesto contra a sociedade. A tentativa de toda a Teoria estética será a de recuperar o caráter crítico da arte, único meio de ela continuar existindo, único meio de ela deixar de ser mercadoria, passando a ser o que era antes: manifestação cultural.

Adorno critica as teorias estéticas que partem da análise da origem da obra para aí deduzirem a sua essência. A essência da obra artística não é dedutível da sua origem, uma vez que a arte se modifica qualitativamente ao longo da história: “muitas obras, por exemplo, representações culturais, metamorfoseiam-se em arte ao longo da história, quando não o tinham sido: e muitas obras de arte deixaram de o ser” (Adorno, 1970: 13). A arte, portanto, não se define pelo que ela é, mas pelo que ela não é, a partir do seu outro – a sociedade.

A crítica às teorias da origem contém uma idéia que será a base de toda a Teoria estética: a crítica à categoria da identidade, uma categoria matemática que sempre tenta reduzir o diferente ao idêntico. No plano artístico, essa categoria desenvolveria uma concepção da arte que Adorno tenta combater: a concepção segundo a qual a obra é vista como uma mera imitação da realidade, cópia da realidade – idéia de mímesis. A mímesis é um processo social de identificação perversa, onde o sujeito, ao se identificar com o objeto, perde a sua distância crítica. A categoria da identidade, enquanto categoria essencial da arte concebida como mímesis, impossibilitaria pensar na arte como algo crítico, característica essencial para o pensamento adorniano.

Para restituir à arte o seu caráter crítico, Adorno introduz na categoria da mímesis a noção da dialética, permitindo desenvolver uma nova concepção: a mímesis crítica. Recorre à noção de mediação – à dialética – para permitir que o sujeito se diferencie do objeto, para permitir que a arte se diferencie da realidade (para daí criticá-la).

A categoria da mímesis será utilizada com um toque dialético: por algo tentar fazer-se igual, já se mostra como não igual. O fato de a obra de arte tentar se assemelhar à realidade já pressupõe que ela seja diferente. Portanto, não haverá uma subordinação da arte em relação àquilo a que ela tenta se
assemelhar; ela é um outro do que ela mimetiza: é a negação determinada da categoria da identidade.

Apesar de se definirem pelo que elas não são, pelo seu outro, as obras de arte não se reduzem à realidade, pois, se assim fosse, elas não seriam críticas. A arte verídica é aquela que não consegue se identificar à realidade, tanto mais se torna um diferente. A obra de arte é aparência de uma realidade que ela própria não é. Ao querer se assemelhar à realidade, a arte torna-se um outro, aparência daquilo a que ela tentou se assemelhar.

A categoria da aparência, o fato de a arte ser aparência da realidade, é de extrema importância para a Teoria estética, pois recupera o caráter autônomo da obra: é exatamente porque a arte é aparência da realidade, um outro diferente da realidade, que ela é autônoma.

Utilizando a noção de mímesis crítica, Adorno resolve dois problemas: reafirma o caráter autônomo da arte, ou seja, o fato de ela ser algo em si mesma, e integra a arte nos mecanismos sociais. A autonomia artística não é algo separado do mundo, fechado em uma redoma de vidro. A arte é autônoma exatamente porque tenta se assemelhar à realidade, fazendo-se diferente, aparência da realidade, e portanto criticando e deformando a própria sociedade a que tenta se assemelhar. É por isso que a arte tem um caráter ambíguo – ela é, ao mesmo tempo, autônoma e um fato social. As obras de arte são mônadas sem janelas:

“que as obras de arte, como mônadas sem janelas, representem o que elas próprias não são, só se pode compreender pelo fato de que sua dinâmica própria, a sua historicidade imanente enquanto dialética da natureza, não é da mesma essência que a dialética exterior, mas se assemelha sem a imitar” (Adorno, 1970: 16).

A Teoria estética reúne em uma mesma análise a investigação da forma artística e o juízo da crítica social. Isso só é possível porque a análise da obra artística é realizada através de um método imanente. A obra de arte não se confunde com a sociedade, ela é diferente da sociedade, mas ela só é passível de definição através do seu outro, da sociedade que ela própria tenta criticar. Aqui é dissolvida uma idéia tradicional nas teorias estéticas: a dicotomia entre forma e conteúdo. A forma da obra de arte é conteúdo social sedimentado: os problemas não resolvidos da realidade, as contradições do real, entre força produtiva e relação social de produção, em suma, os antagonismos da sociedade “retornam às obras de arte como problemas imanentes da sua forma”, inscrevem-se na estrutura interna da obra artística como problemas imanentes a serem resolvidos. Nesse sentido, o que faz de Guernica, de Picasso, uma obra de arte autêntica não é o fato de tematizar a Guerra Civil Espanhola, mas o fato de ter representado a guerra através de formas fragmentadas.

A arte é crítica porque contém em sua própria estrutura o antagonismo existente na sociedade

A partir dessas definições, há algumas consequências: em primeiro lugar, nenhuma obra de arte poderá ser conservadora, já que ela é, em si mesma, crítica da realidade empírica, forma onde se objetivam as contradições e antagonismos da realidade. Por outro lado, se toda obra contém, na sua estrutura interna, uma crítica à realidade, não haverá qualquer sentido para a arte engajada; não há necessidade de explicitar o que está contido de maneira imanente na obra. Adorno ainda criticará a idéia da “arte pela arte”, pois ela afasta a arte do seu outro: “se a arte é percebida de modo estético, ela não o é de uma maneira correta” (Adorno, 1970: 17). Por outro lado, reduzir totalmente a obra a seu outro significa abdicar do caráter essencialmente estético da arte: “alguém que não compreende o aspecto puramente musical de Bethoven compreende-o tão pouco como alguém que aí não percebe o eco da Revolução Francesa” (Adorno, 1970: 384).

É por isso que a Teoria estética contém uma crítica à estética de Lucáks, apesar de partilhar com ele da consideração da arte como agente da crítica social. A arte não é, como em Lucáks (4), um documento sociológico, um reflexo da sociedade, mas sim o negativo da sociedade.

Como diz Merquior: “é difícil resistir à tentação de comparar alguns aspectos da negatividade dialética (5) com o negativo fotográfico (…), a arte crítica põe escuro aquilo que a sociedade vê como claro, e põe como claro o que era oficialmente apontado como sombra – a margem de angústia e infelicidade da vida contemporânea” (Merquior, 1969: 63). A arte é crítica não porque se assemelha ao gesto público, como pensava Lucáks; e o critério de avaliação da obra artística não deve ser um critério sociológico, isto é, uma arte será tanto melhor quanto mais engajada for, quanto mais tematizar sobre questões críticas à sociedade. O critério de avaliação da obra deverá ser simplesmente estético, pois o que faz uma obra de arte ser crítica não é o que ela tenta tematizar, mas é o fato de ela conter, na sua própria estrutura, os antagonismos sociais existentes. O que é social na arte não é a sua tomada de posição manifesta, mas o fato de ela se identificar de maneira imanente da realidade: “[as obras de arte] exprimem, negativamente, um estado outro daquilo que é – a realidade –, dizendo o que este deveria ser em uma sociedade liberada da barbárie” (Jimenez, 1977: 138).

A obra de arte mostra o avesso da sociedade sem conter a solução para os antagonismos

A arte não será, como em Hegel, a explicitação do conceito do belo, entendendo o belo como um momento espiritual. Para Adorno, o espírito é somente mais um momento da obra artística. Por outro lado, a beleza na arte não será definida, como em Kant, a partir de uma concordância universal subjetiva. Aliás, a beleza – seja entendida conceitualmente, como em Hegel, ou através de um juízo do gosto, como em Kant – não exprime a arte essencialmente, não exprime o que a arte é: “a idéia de beleza evoca algo de essencial na arte sem que, no entanto, o exprima imediatamente” (Adorno, 1970: 65). Se o belo diz respeito ao aspecto formal da obra, e se a obra artística é o conteúdo social sedimentado, então o belo na arte será o fato de ela conseguir exprimir a realidade histórica e os antagonismos sociais de forma crítica.

Enquanto Hegel utiliza a dialética nas diferentes fases da história da arte, exteriormente à estrutura interna da obra artística, Adorno utiliza a dialética dentro da própria obra. A obra de arte critica o conteúdo que lhe é imanente, e é exatamente por essa crítica que a obra se diferencia da realidade. Ao fazer a crítica à sociedade, a obra sugere a possibilidade de ser diferente do seu outro, apontando para uma possível resolução dos antagonismos sociais existentes. Contudo, não indica os caminhos para essa diferença. Por isso ela é enigmática: ela nunca contém a resposta para o problema que aparenta resolver.

Este é o conteúdo da verdade das obras: mostrar o avesso da sociedade sem conter a chave para a solução de seus antagonismos. Ao criticar a sociedade, aparentando ser um diferente dela, a obra de arte torna-se promessa de um ente possível, torna-se promessa de um mundo diferente, libertado da barbárie.

É por isso que a obra de arte é utópica:
“pela recusa intransigente da aparência de reconciliação, a arte mantém a utopia no seio do irreconciliado, consciência autêntica de uma época, em que a possibilidade real de utopia, o fato de a Terra, segundo o estado das forças produtivas, poder ser aqui e agora o paraíso, se conjuga num ponto extremo com a possibilidade da catástrofe total” (Adorno, 1970: 46).

Ela também é utópica porque, embora se oponha à sociedade, não é capaz de obter um ponto de vista que lhe seja exterior, na medida em que só consegue opor-se ao identificar-se com a sociedade.
Dizer que a arte é utópica significa dizer que ela contém em si mesma o gérmen da sua própria destruição, uma vez que ela nega o seu próprio conteúdo:

“as obras de arte são negativas a priori em virtude da lei de sua objetivação, causam a morte do que objetivizam ao arrancá-lo à imediatidade da vida. A própria vida alimenta-se da morte” (Adorno, 1970: 154).

Quanto mais criticam o seu conteúdo, ou melhor, quanto mais matam os antagonismos sociais que lhes são imanentes, tanto mais elas se fazem críticas, tanto mais elas se tornam arte, tanto mais elas morrem. Lutam constantemente contra a imanência da sua lei formal e tentam enlouquecidamente viver através da sua morte. Essa é a única possibilidade de existência para a arte…

Há, portanto, uma contradição crescente no pensamento adorniano. Quanto mais se abre a possibilidade da arte na sociedade burguesa, mais ela se torna impossível; a possibilidade da arte acaba virando-se contra ela mesma. Ao introduzir o caráter crítico no interior da estrutura artística, Adorno acaba produzindo uma tendência suicida na própria arte.

Se no início da Teoria estética há um questionamento da possibilidade da arte em virtude da sua autonomia, que leva a arte a fazer parte do contexto das mercadorias, no final é a própria autonomia artística, enquanto crítica desse caráter mercadológico, que impede a existência da arte. Adorno nos coloca num beco sem saída, e aquilo que deveria ser crítico acaba se tornando uma atitude pessimista.
* Formada em Filosofia pela USP (Universidade de São Paulo). Atualmente, é mestranda do Programa de Comunicação e Semiótica, da PUC/SP (Pontifícca Universidade Católica de São Paulo), desenvolvendo projeto na área de Estética.

Notas

(1) Theodor Wisengrund Adorno, juntamente com Hokhehiemer, Marcuse, Walter Benjamim, Habermas, entre outros, é um dos integrantes da Escola de Frankfurt. Essa Escola, que desde o início procurou assegurar um vínculo acadêmico – no caso, com a Universidade de Frankfurt –, foi fundada em 1922-1923 por um grupo de pesquisadores preocupados com a análise crítica do sistema capitalista.
(2) O conceito de autonomia artística supõe que a esfera artística é separada da esfera da práxis vital; a finalidade da arte é ela mesma, ela é independente de qualquer idéia que lhe seja exterior. No plano artístico, essa concepção ganha forma no final do século XIX, com o esteticismo. De acordo com alguns pensadores, os movimentos de vanguarda que tiveram início nos primórdios do século XX (futurismo, dadaísmo, surrealismo, entre outros) teriam como objetivo central negar esse caráter de autonomização da obra.
(3) A crítica da arte como mercadoria está extremamente ligada à crítica que Adorno realiza à indústria cultural.
(4) George Lucáks desenvolve uma estética marxista, explicando a relação da obra de arte e da realidade através da categoria reflexo/reflexão, vale dizer, a obra de arte reflete o mundo e, ao mesmo tempo, reflete sobre o mundo; a arte reproduz o real. Nesse sentido, Lucáks faz da representatividade sociológica o critério da avaliação da obra; o instrumento de julgamento da obra de arte não é algo estético, mas sim sociológico.
(5) A característica básica da dialética negativa (conceito desenvolvido sobretudo no livro Dialética negativa, de Adorno) é a crítica à categoria da identidade: “o sujeito não é só sujeito, o objeto não é só objeto e também não há uma separação ou independência total entre ambos” (Kothe, 1978: 198). A negação é o cerne da dialética, é o elemento básico que impulsiona o movimento dialético.

EDIÇÃO 40, FEV/MAR/ABR, 1996, PÁGINAS 78, 79, 80, 81