Recentemente, o presidente Fernando Henrique Cardoso contestou a aplicabilidade do qualificativo “neoliberal” ao seu governo, e proclamou que a sua política tem, na verdade, um caráter “neo-social”. Como os analistas da política governamental devem reagir a essa auto-definição? A análise desse tipo de declaração contribui para esclarecer as vicissitudes da luta ideológica (esmaecida, porém não extinta), que ainda obriga os governantes das sociedades capitalistas atuais a fabricarem fórmulas que ocultam, se não os seus verdadeiros propósitos, pelo menos a orientação objetiva das suas políticas.

É claro, entretanto, que o conhecimento da orientação política de um governo só pode ser obtido através do exame de medidas, propostas e iniciativas políticas que, no seu conjunto, compõem a estratégia governamental. Portanto, para sabermos se o governo Fernando Henrique Cardoso tem um caráter neoliberal devemos deixar de lado as declarações do presidente ou dos seus ministros – por mais sinceras que elas sejam – e nos concentrar na análise objetiva da estratégia governamental.

O que é a política estatal neoliberal?

A análise da política governamental implementada nas sociedades capitalistas atuais não pode se limitar a aferir o nível de proximidade existente entre os princípios doutrinários do liberalismo econômico e o conteúdo da política estatal; e, a seguir, deduzir dessa aferição que uma política governamental qualquer tem, ou não, um caráter neoliberal, conforme se detecte uma total identidade entre princípios econômicos liberais e política governamental ou, inversamente, algum desvio da segunda com relação aos primeiros.

As políticas neoliberais implementadas pelos Estados capitalistas atuais não podem coincidir integralmente com a doutrina do liberalismo econômico que, em geral, inspira-as. Tais políticas não podem concretizar incondicionalmente os princípios econômicos liberais, já que elas não são implementadas num espaço social vazio, destituído de qualquer historicidade, e sim em sociedades capitalistas históricas, onde a política estatal repercutia, há décadas, a influência de outros princípios econômicos. Nessas condições históricas concretas, as políticas estatais inspiradas no neoliberalismo econômico têm necessariamente de: (a) ser vazadas em termos gradualistas (é politicamente inviável uma radical “revolução liberal” dentro das sociedades capitalistas atuais); (b) configurar-se como ação reformista afirmativa de desmonte da política estatal anterior.
Uma análise política que leve me consideração tais ponderações não reservará o qualificativo “neoliberal” tão somente às políticas estatais que se conformarem integralmente com os princípios econômicos defendidos por outros autores como Friedrich Hayek ou Milton Friedman. Será considerada neoliberal toda ação estatal que contribua para o desmonte das políticas de incentivo à independência econômica nacional, de promoção do bem-estar social (welfare state), de instauração do pleno emprego (keynesianismo) e de mediação dos conflitos sócio-econômicos.

Concretamente, esse desmonte passa pela implementação de três políticas estatais específicas. A primeira delas é a política de privatização das atividades estatais – não só a desestatização de empresas públicas, geradoras de produtos industriais ou serviços pessoais, como até mesmo a desestatização de atividades administrativas, tais como o serviço penitenciário, o Banco Central, a receita federal etc… A segunda delas é a política de desregulamentação, isto é, a redução da atividade reguladora e disciplinadora do Estado no terreno da economia (em geral) e das relações de trabalho (em particular). A última dessas políticas é a de abertura da economia ao capital internacional: eliminação incondicional das reservas de mercado e do protecionismo econômico. A implementação de tais políticas implica seguramente uma mudança do padrão de intervenção do Estado capitalista na economia; mas não necessariamente – ao contrário do que se poderia apressadamente pensar – a retração radical de toda espécie de atividade estatal ou a redução drástica do volume global do gasto público. Toda a “operação de desmonte” tem custos nada desprezíveis. A desativação das políticas de independência econômica nacional, de bem-estar social, de pleno emprego e de mediação dos conflitos sócio-econômicos tende a suscitar a hipertrofia da ação desregulamentadora do Estado e, correlatamente, a montagem de uma infra-estrutura específica de apoio a essa modalidade de ação.

Ela tende igualmente a provocar a expansão de certos itens do gasto público e, no limite, a expansão do próprio volume global do gasto público: se a implementação global da política estatal neoliberal leva ao aumento regular do contingente de desempregados, é inevitável que os governantes neoliberais ampliem – caso queiram preservar minimamente a estabilidade social conquistada no período histórico anterior – os gastos assistenciais com desempregados (1).

Mas o desvio das políticas estatais neoliberais concretas com relação à doutrina do liberalismo econômico, na sua expressão mais radical, tem uma segunda causa. Por mais que os agentes condutores da política estatal nas sociedades capitalistas se inspirem na doutrina econômica liberal, e por maior que seja o apoio social conquistado pelas idéias econômicas liberais, é inevitável a emergência de resistências – mais ou menos localizadas (e emanadas, variavelmente, de certos setores do capital, da classe média ou das classes trabalhadoras) – a certos aspectos da política estatal neoliberal. Essas resistências também contribuem para que se estabeleça uma certa distância entre o liberalismo econômico dos manuais e as políticas estatais concretas inspiradas nos princípios aí contidos. Ou seja: os Estados capitalistas atuais praticam o “neoliberalismo possível” nas condições sócio-econômicas e políticas vigentes.

Os governos dos Estados capitalistas atuais diferem em êxito na busca de metas neoliberais

É claro que, variando tais condições de país para país, varia, consequentemente, o grau de aproximação das políticas estatais concretas com relação ao modelo de política estatal neoliberal por nós proposto (privatizações, desregulamentação, abertura econômica). Só alguns poucos governos encontram condições favoráveis à implementação simultânea dessas três políticas específicas; boa parte dos governos escalona no tempo a implementação das diferentes medidas de orientação neoliberal, ou então se vê obrigado a renunciar a alguma frente de atuação e a se concentrar na implementação das demais políticas. Além disso, o ritmo de implementação de qualquer uma dessas políticas pode ser mais ou menos acelerado, conforme as condições sócio-econômicas e políticas encontradas por cada governo.

À vista disso, é possível dispor os governos dos Estados capitalistas atuais numa escala, conforme a amplitude de seu êxito na perseguição das metas específicas da política estatal neoliberal. Anderson situa no topo dessa escala não só os governos conservadores da Inglaterra, a partir do primeiro ministério Thatcher em 1979, como também – significativamente – os governos trabalhistas da Austrália e da Nova Zelândia, a partir da década de 1980. Tais governos teriam sido aqueles mais capazes de implementar medidas representativas de todos os aspectos da política neoliberal, e os mais bem sucedidos no enfrentamento de eventuais resistências sociais ao projeto neoliberal. Por nossa conta, situaríamos num ponto bem mais modesto dessa escala governos conservadores como o da França (gestão Balladur sob a presidência de Mitterand) na década de 1990 e o da Alemanha (gestão Helmut Kohl) nas décadas de 1980-1990. A despeito de estarem movidos pelo projeto neoliberal, tais governos acabaram se deparando com poderosos obstáculos econômicos e políticos, capazes de dificultar a concretização de seu programa.

Na França, a política de desregulamentação foi dificultada – embora não derrotada – pela resistência das classes trabalhadoras (e isso, a despeito do considerável enfraquecimento, desde os anos 1980, do movimento sindical); quanto à política de privatizações, ela acabou tendo um caráter moderado por obra inclusive da vigência de um “clima político” (a tradição de luta dos trabalhadores franceses) capaz de afugentar eventuais investidores estrangeiros. Na Alemanha, a resistência ao processo de privatização das empresas estatais tem partido de dentro do próprio Estado. Mais especificamente: alguns governos estaduais, poderosos financeiramente, têm se apresentado como compradores de empresas postas à venda pelo governo federal. Nesses casos, o processo de “devolução” de empresas estatais ao capital privado é substituído por um processo de “circulação” de empresas por entres esferas diversas (regional, federal) do aparelho do Estado. Sintetizemos as nossas ponderações anteriores. Muitos governos – para não dizer taxativamente a maioria – dos Estados capitalistas atuais se inspiram num projeto político neoliberal e põem em execução uma estratégia neoliberal. Todavia, tais governos frequentemente não logram conferir um caráter integral e radicalmente neoliberal à política de Estado, em razão da vigência de condições históricas desfavoráveis a qualquer “política de choque” ou da emergência de resistências sociais localizadas. Esse quadro deve ser levado em conta ao se analisar a orientação política – neoliberal ou “neo-social”? – do governo Fernando Henrique Cardoso.

O governo FHC e o programa político neoliberal

Fernando Henrique Cardoso foi eleito presidente por uma ampla frente política conservadora, da qual participavam: (a) os segmentos diversos (na sua maioria, porém não na sua totalidade) das classes dominantes; (b) a maioria da classe média; (c) um contingente importante das classes populares. Essa frente política apresentava um duplo aspecto: de um lado, era orientada pelo objetivo principal de derrotar eleitoralmente a esquerda; de outro, era dirigida pela corrente política neoliberal. Tal corrente exercia a hegemonia no seio da frente política conservadora, o que significa que a aglutinação de todos os setores conservadores – burgueses, pequeno-burgueses ou populares – da sociedade capitalista brasileira, com vistas a derrotar eleitoralmente a esquerda, fazia-se em torno do programa político neoliberal.

A política estatal desde logo anunciada pelo novo governo, recém-empossado, exprimia claramente essa hegemonia. Era visível que o governo de Fernando Henrique Cardoso buscaria implementar, por múltiplas vias (medidas do executivo, iniciativas políticas do Congresso, declarações oficiais, negociações com governos estrangeiros) uma estratégia neoliberal. Essa orientação era evidenciada por um conjunto de atitudes. Em primeiro lugar, o novo governo fixou um extenso programa de privatizações. Em segundo lugar, ele assumiu, dentro do Parlamento, a condução da luta por uma ampla reforma constitucional de feitio claramente neoliberal: quebra de monopólios estatais (como os do petróleo e telecomunicações), “saneamento” da previdência social e administração pública (implicando a liquidação de direitos conquistados, respectivamente, pelas classes trabalhadoras e pela massa do funcionalismo público) etc. Em terceiro lugar, o governo FHC tomou medidas conducentes à abertura da economia ao capital internacional, como a assinatura perante a Organização Mundial do Comércio, de protocolo que, na prática, abre o sistema financeiro nacional a novos bancos estrangeiros.

Mas sustentar que a estratégia do governo FHC é neoliberal não equivale a afirmar que os resultados da política governamental coincidem inteiramente com os propósitos da equipe dirigente. Na verdade, o ritmo de implementação da estratégia neoliberal no Brasil é muito mais lento do que aquele projetado por essa equipe; ou – para recorrer a um termo objetivo de comparação – muito mais lento do que aquele alcançado pelo governo Menem na Argentina.

A moderação do ritmo de execução do programa político neoliberal no Brasil se deve, antes de mais nada, aos altos custos financeiros – dada a reduzida capacidade arrecadatória do sistema tributário brasileiro – da “operação de desmonte” do intervencionismo estatal anterior, não obstante o caráter incipiente de intervenção do Estado capitalista brasileiro nas condições de vida e de trabalho das massas. Ao dar os primeiros passos – a colocação de todo um contingente de funcionários públicos federais em “disponibilidade remunerada” – para “saneamento” da administração pública, o governo Fernando Collor havia sido criticado até mesmo por setores conservadores da opinião pública (segmentos da classe média e das classes dominantes) por estar “desperdiçando” recursos orçamentários. No governo atual – para tomarmos apenas um exemplo – a “devolução” integral e imediata dos serviços previdenciários ao capital privado é descartada, não por ferir a um eventual direito “universal” de idosos e doentes à proteção estatal, e sim em razão dos elevados custos financeiros de qualquer fórmula de transição de um regime previdenciário para outro (2). Ao abordarmos tais dificuldades, tangenciamos um fenômeno político de ordem mais geral: na periferia do capitalismo, os Estados são geralmente dotados de baixa capacidade extrativa – dada a dificuldade política de se tributar as classes dominantes, em particular os seus segmentos mais arcaicos –, propriedade fundiária, especuladores urbanos; portanto, são maiores as dificuldades financeiras encontradas na implementação de “operações de desmonte” de um certo intervencionismo estatal.

Alguns setores resistem ao projeto neoliberal de FHC, dentro da própria frente conservadora

Mas a lentidão do governo FHC na execução no programa neoliberal não se deve apenas ao solo histórico em que ele está implantado; ela decorre igualmente do fato de certos setores sociais resistIRem à concretização desse projeto. Não nos referimos aqui a uma eventual resistência popular ao projeto neoliberal: por ora, a oposição popular e de esquerda se vê globalmente colocada numa postura bastante defensiva – tanto no plano sindical quanto no plano político-partidário – diante desse projeto. Também não estamos aqui aludindo a um eventual constrangimento imposto à execução do programa neoliberal pelo caráter clientelístico e cartorialista de um dos partidos integrantes da coligação governamental: o PFL. Se, no plano do discurso, há contradição entre neoliberalismo e clientelismo/cartorialismo, no plano político prático a relação entre ambos é harmoniosa. Em vários países capitalistas avançados – como França, Itália e Japão, para citar tão somente os casos mais conspícuos –, a corrente política neoliberal tem se acomodado a práticas partidárias de cunho clientelístico e cartorialista com vistas a se viabilizar eleitoralmente. O neoliberalismo implica a mudança de padrão de intervenção do Estado capitalista na economia; mas isso não equivale a “racionalizar” o Estado capitalista, eliminando do seu seio o desperdício, a improdutividade e a corrupção. O “parasitismo” – como nos indica Marx em O 18 Brumário – não é um traço aleatório do Estado capitalista. Ao contrário: ele se configura como uma prática inerente a esse tipo histórico de Estado, bem como funcional para a reprodução da dominação política capitalista.

Após esses esclarecimentos, emerge a questão: qual é, então, o principal problema político enfrentado até agora (escrevemos este texto no final de 1995) pelo governo FHC na implementação da estratégia neoliberal? Tal problema consiste no conjunto de resistências opostas à estratégia neoliberal na própria base de apoio do governo FHC. Este é, portanto, o aparente paradoxo da atual conjuntura política: o governo FHC encontra dificuldade dentro da própria frente política conservadora que o elegeu.

O campo político conservador e o neoliberalismo

Dissemos anteriormente que, na conjuntura eleitoral de 1994, múltiplos setores sociais se aglutinaram para derrotar eleitoralmente a esquerda, e que foi a corrente política neoliberal quem dirigiu o processo de formação dessa frente política conservadora.

Agora, a análise deve dar um passo adiante: a corrente política neoliberal representa, antes de mais nada, os interesses do capital financeiro internacional, já que tais interesses coincidem com a realização integral do programa neoliberal.

Mais especificamente: ao capital financeiro internacional – representado internacionalmente pelo FMI, pelo Banco Mundial e por governos como dos Estados Unidos – interessa a implementação de uma política ampla e profunda de desestatização, de desregulamentação e de abertura da economia brasileira. A execução conjugada dessas três políticas significa, para o capital financeiro internacional, a abertura de novas oportunidades de investimento no espaço capitalista periférico (oportunidades essas que não são desprezíveis, dado o recrudescimento da guerra econômica e comercial dentro do espaço capitalista central).

Sendo o capital financeiro internacional o setor econômico, ideológica e politicamente mais poderoso do campo político conservador, ele logrou impor aos demais adversários da candidatura presidencial de esquerda o programa político neoliberal. Na conjuntura eleitoral de 1994, parecia aos setores subalternos da frente política conservadora que a adesão incondicional ao neoliberalismo era a única tática eficaz de luta ideológica e política contra a esquerda.

Ora, o problema político que se coloca para o governo FHC está em que, uma vez encerrada a conjuntura eleitoral, tais setores tendem a um outro modelo de comportamento político. Mais especificamente: cada setor social subalterno da frente política conservadora tende a apoiar tão somente a execução daqueles aspectos específicos do programa neoliberal que correspondem aos seus interesses; ou, na melhor das hipóteses, a apoiar as medidas neoliberais que lhe pareçam não interferir nos seus interesses. Tal postura implica, portanto, resistir, de modo mais ou menos aberto, conforme o caso e as circunstâncias, à execução daqueles pontos do programa neoliberal que se chocam com os seus interesses específicos.

Vejamos como esse modelo de comportamento político se concretiza nos diferentes segmentos da frente política conservadora. A grande burguesia industrial, congregada em organizações como FIESP e CNI, vem fazendo campanha, desde a Constituinte de 1988, a favor de um aspecto específico da desregulamentação: liquidação dos direitos sociais e trabalhistas conquistados, a partir de 1930, pelas massas brasileiras. O empresariado industrial brasileiro assume, além disso, uma posição oficial favorável ao programa de privatização e lamenta, inclusive, que o ritmo de execução de tal programa não seja mais acelerado. É importante assinalar que esse segmento social assume tal postura a despeito de não ser o grande beneficiário do programa de desestatização: as privatizações, na medida em que implicarão a eliminação dos subsídios estatais, poderão encarecer insumos e serviços que as empresas industriais consomem, elevando, desse modo, os seus custos de produção (elevação essa cujo repasse integral para o preços finais pode se converter, conforme a conjuntura, em problema político). Ocorre entretanto que a burguesia industrial, não obstante o apoio às políticas de desregulamentação trabalhista e de desestatização, mostra-se reticente – para dizer o mínimo – com relação à promoção de uma abertura total e incondicional da economia brasileira ao capital internacional.

A razão dessa reticência é evidente. A política de abertura econômica incondicional pode, no limite, levar ao desaparecimento do empresariado industrial e à conversão dos antigos industriais em importadores de similares estrangeiros (processo esse que se iniciou, durante o governo Collor, no setor de informática; que se manifesta hoje – embora em escala ainda reduzida – na indústria automobilística, onde as filiais importam crescentemente unidades das suas próprias matrizes).
Vejamos agora a posição dos grandes bancos nacionais. Também eles são – como, de resto, todos os segmentos das classes dominantes – favoráveis à desregulamentação das relações de trabalho. São além disso favoráveis ao programa de privatizações, já que tal programa, além de estar conectado a uma das principais bandeiras da luta ideológica contra o socialismo, pode eventualmente lhes proporcionar : (a) novas oportunidades de negócios (compra, a preço vil, de empresas estatais rentáveis); (b) a sua eventual “ancoragem” na esfera produtiva; e, consequentemente, a sua transformação em capital propriamente financeiro. Mostram-se entretanto contrários à abertura do sistema financeiro nacional a novos bancos estrangeiros, acomodando-se nesse terreno específico à idéia antiliberal da legitimidade de certas “reservas de mercado”. Dentro dessa perspectiva, a FEBRABAM passou a atuar como grupo de pressão em prol da manutenção do dispositivo constitucional (artigo 52 das “Disposições Transitórias” da Constituição de 1988) que proíbe a entrada de capital estrangeiro novo no setor financeiro. A resistência da burguesia bancária nacional à proposta de abertura incondicional do sistema financeiro ao capital estrangeiro levou, de resto, o governo FHC a optar por um caminho mais curto para alcançar esse objetivo: a assinatura, junto à Organização Mundial do Comércio (OMC), do protocolo já mencionado, sem esperar pelos resultados do processo parlamentar de reforma constitucional.

Segmentos da classe média e das classes trabalhadoras são atraídos pela modernização neoliberal

Esclareça-se, agora, que o campo político conservador, no Brasil atual, não é integrado apenas por segmentos das classes dominantes. Segmentos da classe média e das classes trabalhadoras também são atraídos pelo projeto neoliberal de “modernização” da sociedade brasileira. Sublinhe-se, entretanto, que é uma postura crítica com relação a certas práticas vigentes no Estado capitalista que impele tais segmentos para a esfera ideológica neoliberal. Mais claramente: esses setores sociais vêem na política neoliberal o caminho para a liquidação do Estado parasitário, cartorial e empreguista, que absorve, através do sistema tributário, os precários recursos financeiros do povo, e os coloca à disposição de uma casta de privilegiados destituídos de qualquer utilidade social: os burocratas e os políticos profissionais. Portanto, tais setores sociais, ignorando a acomodação regular – no mínimo, para se viabilizar eleitoralmente – do neoliberalismo à “fisiologia”, supõem que a liquidação do parasitismo estatal passe pela redução do raio de intervenção do Estado na vida econômico-social (o que implicaria privatizações, fim do protecionismo econômico e as reservas de mercado etc.) Mas a adesão de segmentos da classe média e das classes trabalhadoras a esse “neoliberalismo de oposição” não implica apoio incondicional a todo programa neoliberal. Por mais incongruente que isso possa parecer aos cultores da doutrina econômica liberal, tais segmentos exigem do Estado intervenção e proteção, quando o que está em questão é a sua condição de vida e de trabalho. Vale dizer, esses setores sociais se opõem à liquidação dos direitos sociais e trabalhistas – de restos, modestos – vigentes no Brasil; e, nessa medida, resistem a propostas governamentais como a reforma da previdência social e a reforma administrativa. A atuação política das centrais sindicais conservadoras (Força sindical e CGT) reflete essa “consciência neoliberal dilacerada” de parte da classe média e das classes trabalhadoras do Brasil atual.

Para finalizar, mencionemos os grandes proprietários fundiários, congregados em organizações como SRB e a UDR. A classe fundiária manifesta-se, geralmente, a favor da maioria do programa neoliberal: privatizações, desregulamentação, abertura econômica. Ela se opõe, entretanto, àquele aspecto do programa neoliberal que não convém aos seus interesses econômicos: a liquidação dos subsídios estatais à produção agrícola, o fim do tratamento especial dado ao Estado aos agricultores endividados etc. Quando essa modalidade específica de intervenção do Estado capitalista na economia está em perigo, os proprietários fundiários protestam contra o governo e organizam “caminhonaços”.

A estratégia neoliberal e o regime político

Seria improvável que essas resistências à estratégia neoliberal, oriundas do campo político conservador, se manifestassem apenas no plano da ação corporativa. Na verdade, tais resistências se exprimem também dentro dos partidos que compõem a base de sustentação políticas do governo FHC: PSDB, PMDB, PFL. Em muitas votações no Congresso, ou por ocasião de certas iniciativas do Executivo, tais partido se têm cindido em dois campos: o de defesa e o de ataque à proposta neoliberal. É o que ocorreu, por exemplo, no debate parlamentar sobre questões como a do monopólio estatal do petróleo e das telecomunicações, e das reformas da previdência social e da administração pública ou a da fixação de um teto anual para juros.

Mais ainda; tais resistências se exprimem até mesmo dentro do governo federal (exemplo: as divergências, no início de 1995, entre os ministérios da Fazenda e do Planejamento, a propósito do ritmo de execução do programa neoliberal), ou no relacionamento entre governo federal e governos estaduais situacionistas (exemplo: a divergência entre Banco Central e governo estadual de São Paulo quanto ao modo de abordar a crise financeira do BANESPA).

As resistências sociais ao programa neoliberal constituem um dos elementos explicativos do ritmo cadenciado – e não acelerado – de execução, no Brasil atual, da estratégia neoliberal. Esse ritmo é seguramente mais lento do que aquele alcançado por outros governos neoliberais da América Latina (Argentina, México, Chile etc.) Tais resistências, agregadas à lentidão que elas contribuem para impor à execução da plataforma neoliberal, explicam conjuntamente, por sua vez, a atual tendência do governo federal a conduzir um processo de fortalecimento do Poder Executivo e dos sistemas presidencialistas, em detrimento das prerrogativas políticas do Congresso. Essa tendência pode ser detectada em outros países latino-americanos, onde governos neoliberais devem enfrentar resistências de natureza semelhante. O exemplo mais conspícuo dessa tendência é o governo Fujimori, no Peru; mas podemos agregar-lhes sem dificuldades outros exemplos, como o do governo Sanchez de Lozada na Bolívia e o do governo Carlos Menem na Argentina.

No Brasil atual, a operação dessa tendência é comprovada por um fato bastante conhecido: o instrumento fundamental de definição da política de Estado, sob o governo FHC, é a edição ininterrupta de Medidas Provisórias do executivo, e não a ação deliberativa do Congresso. Através da edição de Medidas Provisórias, o governo FHC contorna a questão das competências dos Poderes; e logra até mesmo transformar certos temas da reforma constitucional em matérias a serem exclusivamente tratadas – pela via da “regulamentação” – pelo Executivo (é o que ocorreu na abordagem da questão da abertura do sistema financeiro nacional a novos bancos estrangeiros, como já mencionamos anteriormente).

Emerge, portanto, nos países latino-americanos submetidos a governos neoliberais, um autoritarismo civil, mais ou menos pronunciado conforme o país. Esse novo autoritarismo – distinto do Estado militarizado, peculiar à etapa anterior do capitalismo latino-americano – corresponde à construção de um presidencialismo invulgarmente forte, cujo limite superior é a “ditadura presidencialista” implantada por Alberto Fujimori no Peru. É incumbência desse autoritarismo civil emergente não propriamente sufocar um poderoso movimento de oposição popular (cuja ascensão, no futuro, poderia eventualmente levar a um novo surto de militarização do Estado), e sim neutralizar as resistências conservadoras – de caráter localizado e não genérico, como já vimos – diante do programa neoliberal.

Mais claramente: o fato de os governos neoliberais da América Latina enfrentarem, por ora, reticências conservadoras, e não o movimento de massas, implica em parte que tais governos se inclinem para práticas autoritárias de cunho ainda moderado (novo autoritarismo civil), e não radical (ditadura militar).
Para finalizar, deve-se chamar a atenção para a causa histórica geral da complexidade da “operação desmonte” do intervencionismo estatal anterior, de espoucar de resistências burguesas conservadoras ao programa neoliberal e, em última instância, do ritmo cadenciado de execução dese programa. A economia capitalista brasileira é – a despeito dos índices desprezíveis de “desenvolvimento social” aqui registrados – bem mais poderosa que a de países latino-americanos igualmente sujeitos a governos neoliberais, como Argentina, Chile e México.

É preciso que a oposição popular e de esquerda, na construção de uma alternativa política ao projeto neoliberal, analise com cuidado esse quadro histórico geral; e aproveite os espaços políticos abertos pelas reticências conservadoras para fortalecer a frente política antiliberal. O desempenho da tarefa histórica de organização dessa frente política depende, enfim, da capacidade de a esquerda propor táticas que explorem essa “brecha”.

* Professor titular de Ciências Política da UNICAMP.

Notas

(1) O caráter aparentemente paradoxal das políticas neoliberais dos Estados capitalistas atuais é detectado por Eric J. Hobsbawn, em Estratégias para uma esquerda racional, Paz e Terra, RJ/SP, 1991, especialmente o capitulo IV (“Com vistas ao ano 2000: política de declínio?”); e por Perry Anderson no texto “Balanço do neoliberalismo”, constante no livro de Emir Sader (org.), Pós-neoliberalismo – As políticas sociais e o Estado democrático. Paz e Terra, RJ/SP, 1995. Hobsbawm chama a atenção para a hipertrofia do intervencionismo estatal durante o governo ultra-neoliberal de Margareth Thatcher na Inglaterra, hipertrofia esta que, longe de ser ocasional, configura-se como uma das implicações da operação neoliberal de desmonte da política estatal anterior. Anderson demonstra que, a despeito das políticas neoliberais, a proporção do PNB médio dos países da OCDE, consumida pelo Estado cresceu de (46% para 48%) ao invés de decair, ao longo dos anos 1980. Isso se deve ao aumento dos gastos sociais com desempregados e com aposentados, politicamente incontornáveis no atual contexto das sociedades capitalistas avançadas. Sobre esse ponto, ver Perry Anderson, op. cit., p. 15-16.
(2) Uma vez privatizada a previdência social, o Estado continuaria, entretanto, a pagar as pensões dos contribuintes do antigo regime previdenciário, sem contar com os recursos financeiros gerados pelos novos contribuintes, pois tais recursos já estariam sendo canalizados para o sistema previdenciário privado. Em entrevista recente, o ministro José Serra esclareceu que esta era a preocupação predominante do governo federal ao evitar o receituário liberal mais radical (“privatização integral imediata”) na abordagem da questão previdenciária.

EDIÇÃO 40, FEV/MAR/ABR, 1996, PÁGINAS 11, 12, 13, 14, 15, 16