O próximo passo, livro de Ciro Gomes e Mangabeira Unger, recentemente lançado, aparece, basicamente, como uma crítica à política neoliberal hoje em voga no mundo e sua aplicação no Brasil. Apresenta-se, em subtítulo, como "uma alternativa prática ao neoliberalismo". Entrevistas de Unger e artigos, em periódicos brasileiros, ajudam a compreender melhor as idéias desse carioca de estirpe baiana que ensina em Harvard.

O programa neoliberal, aquele do "consenso de Washington", é revisitado pelos autores e sintetizado em quatro pontos: a estabilização monetária, a liberalização econômica, a privatização e as compensações sociais. A estabilização é definida como ancorada "sobretudo na contenção da despesa pública"; a liberalização é basicamente "entendida como a aceitação da concorrência internacional"; a privatização é "vista como o abandono pelo Estado de atividades produtivas"; e as compensações sociais são aquelas "destinadas a suavizarem os efeitos sociais dos reajustes econômicos".

A "idéia definidora do neoliberalismo"a de que "o Estado deve abandonar atividades produtivas e estratégicas" – é estigmatizada pelos autores, que mostram não ter ela prevalecido em nenhum país que se desenvolveu, ou se desenvolve. O programa neoliberal, caracterizado como "devaneio do colonialismo econômico e cultural", é tido como projeto de "adesão às instituições dos países ricos do Atlântico Norte". A publicação está vazada em linguajar contundente.

Na verdade, esse "devaneio" tem sido imposto ao mundo pelos centros internacionais de poder, com variações localizadas. E tem ocorrido espantosa unidade doutrinária entre os principais organismos de coordenação financeira e comercial do mundo, o que leva Ciro e Unger a chamarem o FMI, o Banco Mundial e a recente Organização Mundial do Comércio de "agentes do ideário neoliberal e dos interesses das potências dominantes".

A critica às idéias gerais do neoliberalismo não deixa escapar as especificidades de
sua aplicação, notadamente na América Latina. Aí, acentua-se sua "renúncia a uma estratégia própria de crescimento econômico" e o apelo "duradouro" ao que seriam "expedientes temporários de juros altíssimos e câmbio sobrevalorizado". E enfatiza-se o traço comum a todas as aplicações latinas do neoliberalismo, "a desestruturação do Estado como agente de uma estratégia própria de desenvolvimento econômico".

O político Ciro Gomes e o cientista Mangabeira Unger não se limitam à crítica da economia política neoliberal. Examinam alternativas a esse caminho. Falam da necessidade de uma perspectiva nova, da importância de se "reinventar ( … ) a rebelião nacional contra um destino que nos seria imposto pelas forças cegas da evolução econômica mundial"; de se "aparelhar um Estado forte e atuante"; e de se ter em mente "um projeto desenvolvimentista e democratizante". Dissertam sobre cinco diretrizes que norteariam uma primeira etapa desse projeto: elevação da poupança, parceria entre o Estado e as empresas privadas, promoção salarial, educação universal e moderna e inserção, sem submissão, na economia mundial.

São animadoras todas essas opiniões de O próximo passo. Discutíveis, porém, quanto a seu sentido, suficiência e eficácia. A questão agrária não é tratada, o que não se compreende. Os recentes acontecimentos do Pará mostram o quanto essa questão está a exigir tratamento prioritário. Um elevado e indiscriminado imposto de consumo é visto como meio para dotar o Estado de altos recursos, mas não considerado como arrocho tributário sobre os mais pobres. O papel dos trabalhadores tampouco é referido. E uma chamada reforma política é sinalizada para reduzir o número de partidos, mecanismo clássico de reforço de elites anacrônicas, de cerceamento das minorias políticas e ideológicas, de ameaça à democracia Apesar de toda essa carga de assuntos polêmicos, as idéias expostas no livro de Ciro e Unger aprofundam a crítica ao modelo imperante e contribuirão, indubitavelmente, para desmascarar as teses pedantemente repetidas pelos acólitos do neoliberalismo no Brasil.

Nota-se no livro, por outro lado, ainda que de passagem, certa apreciação imprópria à resistência ao neoliberalismo que tem sido feita no Brasil: "Os partidos de esquerda, a começar pelo PI, jogaram sua sorte na defesa dos resíduos da antiga economia política dos anos 50 e na solidariedade com os interesses corporativos dos trabalhadores, públicos e privados, mais privilegiados do país".
Em primeiro lugar, tomar o PI como referência dos partidos de esquerda no Brasil na luta contra o neoliberalismo denota certa debilidade informativa Embora o PI participe dessa luta, alguns de seus membros com destaque, identificam-se nessa frente deficiências do partido. O componente da luta nacional nunca foi o forte do PI . O PCdoB, o PDI e o PSB, a despeito de forças menores, levantam mais alto a bandeira contra o neoliberalismo entre nós.

Em segundo lugar, restringir a luta até agora feita no Brasil contra o neoliberalismo à defesa de "resíduos da antiga economia política dos anos 50" amesquinha a resistência travada nos últimos tempos entre nós, em condições assaz precárias. O governo desestruturou organismos fundamentais de planejamento, fomento de produção e promoção científica e tecnológica; alienou não apenas empresas importantes, mas algumas indispensáveis para dotar o Estado de força de intervenção no desenvolvimento; reduziu o Estado a uma plutocracia, como aliás muito bem retratam Ciro e Unger. E foi contra tudo isso que a esquerda lutou quase sozinha.

A referência a "resíduos dos anos 50" desperta uma preocupação. É que "os anos 50" lembram a Petrobrás. E o próximo passo prega como "a melhor maneira de resolver o problema patrimonial" as "privatizações espetaculares"! Embora em nenhum momento a Petrobrás apareça como privatizável, as "privatizações espetaculares" ensejam perplexidades. Das grandes, segundo o livro, a Telebrás seria "a primeira". E as outras, quais seriam? A Vale? A Petrobrás?

Não há dúvida de que as propostas d'o primeiro passo são outras que não as do neoliberalismo em vigor. Elas admitem, por exemplo, a fundação de novas empresas públicas, ao tempo em que se privatizam outras. Mas o conceito de "empresa estratégica" é desqualificado, sob o argumento de que não se pode falar em setor estratégico "quando nenhuma força política atuante no país apresenta uma estratégia concreta de desenvolvimento nacional". O argumento é fugaz, e é nessa base que o livro não aceita como "de valor estratégico a Telebrás e outros alvos possíveis de privatização … ".
"O caminho mais rápido para o pagamento da dívida interna é a privatização de algumas grandes empresas públicas". Pode ser. Mas desde quando estamos atrás desse "caminho mais rápido" para pagar a dívida interna?

O motivo de não aceitar a privatização de "grandes" como a Petrobrás ou a Vale não é "pureza ideológica", que Ciro e Unger criticam. O verdadeiro motivo é que isso subtrairia do Estado brasileiro fatores fundamentais de poder efetivos, sem os quais o Estado careceria de condições para definir rumos e alavancar progresso. Uma Petrobrás ou uma Vale privatizadas não poderão ser substituídas por nenhuma outra que possa ser criada paralelamente. São investimentos vultosos, em capital, concessões de ocorrências únicas, tecnologia e longo tempo de maturação. Em qualquer estratégia de desenvolvimento que o Brasil venha a 1eI; elas serão decisivas, insubstituíveis. Por isso cabe defendê-las. São estratégicas.