Que panorama se descortina? Havendo se completado o ciclo das revoluções – iniciado com a revolução bolchevique em 1917 e encerrado com a queda do muro de Berlim em 1989 –, qual é o quadro que se vê? O da volta das nações, do nacionalismo, das lutas inter-imperialistas, quadro semelhante à situação do final do século XIX, precedente ao período revolucionário? Ou estaremos entrando num período inteiramente novo, do fim das nações, fim do Estado-nação e da democracia como até agora a conhecemos?

Eis o diagnóstico do autor do livro O fim da democracia: o que está no fim não é o ciclo revolucionário iniciado em 1917, mas o período de dois séculos iniciado em 1789 com a Revolução Francesa e seu ideário de “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Esses conceitos, que teriam feito a cabeça de todos durante anos, estariam condenados.

Um pequeno livro audacioso: anuncia o fim da época das nações, da política e da democracia, fala da substituição dos partidos por lobbies, da institucionalização da corrupção no aparelho do Estado e na sociedade. Apresenta a economia da droga como um novo fator de poder e as religiões ocupando o espaço das fidelidades individuais. Anuncia uma nova época imperial: a obsolescência da democracia européia diante do sucesso do modelo imperial asiático. Descreve um mundo a um só tempo unificado e sem centro, um império sem imperador. Por discutíveis que sejam suas teses, vale a leitura como provocação à reflexão.

O autor, um diplomata, embaixador da França junto à União Européia, argumenta que, encerrada a polarização Leste-Oeste, vieram à superfície as poderosas forças econômicas sociais e culturais que haviam transformado o contexto que permitiu a formação e a existência do Estado-nação.
Que forças são essas?

“A dissolução das fronteiras, a globalização da economia, a era da informática e do imaterial, a fragmentação dos interesses cosmopolitas, as normas internacionais de utilitarismo gerencial dissolveram a noção de soberania territorial e as aquisições de solidariedade nacionais”.
Resenhando o livro, o jornal francês Le Monde resume: a desvalorização do espaço revaloriza o homem, e na medida em que a criação da riqueza depende cada vez menos da base territorial e do valor agregado pela inserção em redes, que têm vocação universal, as estruturas piramidais nacionais tornam-se obsoletas”. Segundo o autor:

“(…) o ano de 1989 marca, efetivamente, o crepúsculo de uma longa época histórica, da qual o Estado-nação, surgindo progressivamente dos escombros do Império Romano, foi o coroamento. Essa forma polítca, muito mais européia do que e idéia de império, se vem impondo ao mundo durante os dois últimos séculos, e aceitamos como conseqüência inexorável aquilo que talvez não passasse de resultado precário de uma rara conjugação histórica, somada a circunstâncias singulares, capaz de desaparecer junto com elas”.

“(…) Seria um grande erro considerar a idade dos Estados-nação como um fim em si mesma. A organização política que a filosofia da razão nos deixou não passa de um episódio na história humana, a maneira que nós descobrimos, numa determinada etapa de nosso desenvolvimento, de fundar a liberdade sobre uma ordem política”.
“(…) Herdeiros da idade da razão, somos herdeiros amnésicos: as leis tornaram-se receitas, o direito um método, os Estados-nação um espaço jurídico. Será isso suficiente para garantir o futuro da idéia democrática? Hoje pergunta-se obrigatoriamente se pode haver uma democracia sem nação”.
[Em consequência] “(…) as palavras democracia, política, liberdade definem o nosso horizonte mental, mas não temos mais certeza de reconhecermos seu verdadeiro sentido, e nossa adesão depende muito mais de reflexos do que de reflexão”.

O fim da política

“O desaparecimento da nação implica a morte da política. (…) Na idade das redes, a relação entre cidadãos e o corpo político sofre a concorrência da infinidade das conexões estabelecidas fora de seu alcance, de modo que a política, longe de ser o princípio organizador da vida dos homens na sociedade, aparece como uma afinidade secundária, até uma construção artificial, pouco adaptada a solucionar os problemas práticos do mundo contemporâneo”.

“Não se vê, sem dúvida, em lugar algum, melhor do que nos Estados Unidos, que forma a vanguarda da institucionalização do poder, de que a forma lógica institucional se esgota, levando com o seu desaparecimento também a política. Realmente, o que vem a ser Washington hoje? Dezenas de milhares de funcionários públicos, algumas centenas de parlamentares, alguns milhares de staffers e sobretudo trinta mil lobistas. Esta última cifra não reflete uma simples inchação burocrática, ela exprime a reviravolta fundamental no processo de tomada de decisão na maior democracia moderna”.

“(…) Hoje em dia a ação do lobista raramente ameaça a moral, porém ela chega a deformar o próprio funcionamento da máquina democrática. O lobista é um corretor de informações. Ele mobiliza para a empresa ou para os interesses que representa todas as informações suscetíveis de apoiar o ponto de vista que pretende defender. Se uma empresa de obras públicas quer obter votos para a construção de uma auto-estrada, ele (o lobista) reunirá informações mais completas e mais precisas que qualquer agência governamental, demonstrando e calculando vantagens de auto-estrada para a coletividade. Se, para o mesmo caso, ele representa uma associação ecológica, todas as sequelas nefastas do projeto para o meio ambiente serão detalhadas. Assim, para cada caso, para cada lei, gabinetes de lobistas se digladiarão”.

“(…) Mas tudo isso ainda se trata de política? A confusão acerca do lobby reside no fato de se acreditar que o interesse geral irá nascer naturalmente do confronto honesto de interesses particulares. (…) Obviamente os lobistas não trabalham de graça, e somente os interesses entesourados podem recorrer aos serviços deles”.

“(…) A política não existe como simples resultado de interesses privados, mas sim pressupõe um contrato social, o qual precede e ultrapassa todos os contratos particulares. Se abandonarmos este postulado, reduzindo a política a uma função de mercado, onde se determina o valor dos interesses presentes, o espaço da política é imediatamente ameaçado de desaparecimento, pois não há mercado que possa estabelecer o “valor” do interesse nacional ou delimitar o espaço da solidariedade. Se a coletividade nacional não é mais um dado e sim uma escolha, ninguém na verdade tem condições de basear essa escolha sobre os mesmos critérios racionais que definem suas ações na gestão operacional de seus interesses. Nenhuma lei econômica consegue substituir a evidência territorial e histórica da nação”.

E o livro prossegue fazendo observações assim agudas sobre temas como o papel da corrupção que se torna institucional dentro do aparelho de Estado e nas empresas; sobre a ascensão das religiões, naquilo que o autor chama de o encontro entre “o extremo arcaísmo e a extrema modernidade”. Aborda a crescente importância da “economia da droga”. E sobre a violência “na época imperial”, diz: “a violência na época das redes, a violência da época dos impérios, tem toda chance de ser mais difusa, menos extrema, porém não mais rara”.
Eis aí um aperitivo. E um convite instigante à leitura e à reflexão.

Carlos Azevedo (Jornalista)