Para os estudiosos do marxismo é muito importante compreender e situar a obra de Kant, um dos fundadores, conjuntamente com Leibniz, da filosofia clássica alemã da qual Hegel é considerado o apogeu.

Os fundadores do marxismo reconhecem a importância de Kant, sem deixar de criticar a sua essência filosófica. Na introdução a uma obra que viria a ser escrita e que não se viabilizou, Engels ressalta a importância de Kant para a dialética da natureza:

“A primeira brecha na concepção fossilizada da natureza não foi aberta por um naturalista, mas por um filósofo. Em 1755 apareceu a História Natural do mundo e teoria do céu, de Kant. A questão do impulso inicial era por ele eliminada: a Terra e todo sistema solar surgiram como algo que se desenvolve no transcurso do tempo. Se a maioria esmagadora dos naturalistas não tivesse em relação ao pensamento a aversão que Newton exprimiu na advertência “Física toma cuidado com a metafísica!’, a genial descoberta de Kant lhes teria permitido fazer deduções que poriam fim ao seu interminável extravio por sinuosos despenhadeiros e poupado o tempo e o esforço dissipados copiosamente ao seguir falsas direções, uma vez que a descoberta de Kant era o ponto de partida para todo o progresso ulterior. Se a terra era algo que se tinha ido formando, então estava claro que seu atual estado biológico, geográfico e climático, suas plantas e seus animais deveriam ter-se ido formando pouco a pouco, a terra havia de ter uma história, não só no espaço, das coisas colocadas umas do lado da outras, como também no tempo, das coisas sucedendo-se umas depois das outras. Se as ciências naturais houvessem continuado sem tardança e de maneira resoluta as investigações nesse rumo, estariam hoje muito mais adiantadas. Mas que poderia resultar de bom a filosofia? A obra de Kant não proporcionou resultados imediatos, senão muitos anos depois, quando Laplace e Herschel desenvolveram seu conteúdo e a fundamentaram mais detalhadamente, preparando assim, gradualmente a admissão da Hipótese das nebulosas. Descobertas posteriores deram, por fim, vitória a esta teoria.”.( Engels,1970:pp. 20/1)

Especialmente para o marxismo interessa a crítica filosófica de fundo que Hegel faz ao filósofo de Konigsberg. A dialética objetiva, o materialismo dialético e histórico marxista, se desenvolve sobre a influência dessa crítica de Hegel a Kant.

Tendo no kantianismo, e em sua influência posterior, a base de contraponto nas diversas esferas do conhecimento, intensa crítica filosófica ao agnosticismo tem sido estabelecida pelo pensamento marxista desde então, tanto por Marx e Engels, quanto por Lênin, a exemplo da obra Materialismo e empiriocriticismo, e outros. É muito rara uma área de conhecimento específico em que não se possa perceber uma polarização das idéias do materialismo histórico e dialético com os chamados neokantianos.

No prefácio à edição inglesa de Do socialismo utópico ao socialismo científico, Engels cita Hegel:
“Mas, ao chegar aqui, apresenta-se o agnóstico neokantiano e nos diz: sim, poderemos talvez perceber exatamente as propriedades de uma coisa, porém nunca apreender a coisa em si por meio de nenhum processo sensorial ou discursivo. Essa coisa em si situa-se além de nossas possibilidades de conhecimento. Já Hegel, há muito tempo, respondeu a isso: desde o momento em que conhecemos todas as propriedades de uma coisa, conhecemos também a própria coisa; fica somente em pé o fato de que essa coisa existe for a de nós, e enquanto os nossos sentidos nos fornecem esse dado, aprendemos até o último resíduo da coisa em si, a famosa e incogniscível Ding an sich de Kant. Hoje, só podemos acrescentar a isso que, na época de Kant, o conhecimento que se tinha das coisas naturais era o bastante fragmentário para se poder para se poder suspeitar, por trás de cada uma delas, uma misteriosa coisa em si.”(Marx&Engels,1953:p.290)

Essa atitude teórica de levantar elementos interessantes e, concomitantemente, apontar as insuficiências e equívocos, tem sido o traço do desenvolvimento do conhecimento para libertação do trabalho em todas as instâncias do saber.

Marx e Engels falam sobre Kant em A ideologia alemã, obra escrita pelos fundadores do marxismo bem antes dos textos citados acima. A ideologia alemã pode ser considerada a obra que inaugura a concepção materialista dialética e histórica ou dialética objetiva.

Especialmente no capítulo denominado ironicamente de “São Max”(Capitulo III de A ideologia alemã) destinado a criticar Max Stirner, ao polemizar sobre “Os homens livres”e “O liberalismo político”, Marx e Engels expõe que a chave da crítica do liberalismo feita por Max Stirner e seus predecessores é a história da burguesia alemã desde a Revolução Francesa e afirma que o estado da Alemanha no final do século XVIII reflete-se integralmente na Crítica da razão prática, obra de Kant, de grande influência no pensamento posterior, especialmente no direito. Marx e Engels expõe que
“enquanto a burguesia francesa subia ao poder através da mais gigantesca revolução que a história conheceu e partia para à conquista do continente europeu; enquanto a burguesia inglesa, já emancipada politicamente, revolucionava a indústria, estabelecia o seu domínio político sobre a Índia e o seu domínio comercial sobre o resto do mundo, os burgueses alemães, na sua impotência, ficavam-se pelo estádio de boa vontade. Kant satisfazia-se com a simples boa vontade, mesmo que não se traduzisse em resultado algum,,e remetia para o mais além a realização desta boa vontade, a harmonia entre eles e as necessidades, os instintos dos indivíduos. Esta boa vontade de Kant é o reflexo exato da impotência, da prostração e da miséria dos burgueses alemães,cujos interesses mesquinhos nunca conseguiram desenvolver-se para encarnar os interesses nacionais comuns a uma classe, o que fez com que fossem explorados continuamente pelos burgueses de todas as outras nações”.(Marx&Engels,1977:p.241)

Na Crítica da razão prática, Kant expõe o postulado de uma lei objetiva de moral, uma regra que , válida objetivamente para todo o mundo, permitiria escapar das meras hipóteses:
“O conceito de liberdade, na medida em que sua realidade é demonstrada por uma lei apodíctica da razão prática, constitui a pedra angular de todo o edifício de um sistema da razão pura, mesmo da razão especulativa, e todos os outros conceitos (os de Deus e a imortalidade) que, enquanto simples ideais, permanecem nesta sem apoio, conectam-se com esse (conceito) e adquirem com ele e através dele consistência e realidade objetiva, isto é, a sua possibilidade é provada pelo fato de a liberdade ser efetiva; com efeito, esta idéia revela-se mediante lei moral.” (Kant,1986:p12)

Em Kant a autonomia da moral se submete pelo princípio ético do imperativo categórico. O primado da ética seria postular regras objetivas de aplicação universal: depois de todo percurso, deve ser encontrada a realidade objetiva do imperialismo moral, aplicável a todos os homens em qualquer circunstância. Imperativos do dever: independentemente de qualquer interesse racional. O dever transcende qualquer explicação empírica. Ele resulta de um impulso interior autônomo. A consciência em polêmica entre o interesse e o dever moral: o dever trancei o ser. Kant distingue uma ética material do egoísmo, determinada pela procura do prazer e da felicidade de acordo com as leis da natureza- e uma ética sobrenatural, que teria o que ele caracteriza como a Razão Prática da Lei ou imperativo categórico. A razão seria a faculdade de julgar e agir segundo certos princípios. Para ele há uma separação entre a noção de valor transcendental. A lei moral distingue-se da lei da natureza. Aquela é livre, ao passo que esta é absolutamente determinada.

O imperativo categórico é um princípio a priori, incondicionado e formal, ao mesmo tempo subjetivo e objetivo. Kant chama de princípio sintético, porque não é um princípio apenas analítico e lógico, como o do interesse egoísta da luta pela vida, mas pertence ao reino da razão em nós. A lei da natureza só pode ser conhecida empiricamente e afeta uma só força vital, que se manifesta pela faculdade de desejar. A lei deverá conter em si, em todos os casos e para todos os seres racionais, o mesmo princípio determinante da vontade. A lei natural é subjetivamente necessária e, objetivamente é um princípio prático contingente, diferente para cada indivíduo. Toda ética baseada no utilitarismo egoísta não pode conduzir a um princípio objetivo de aplicação universal.

Propõe então Kant a Lei fundamental da pura razão prática:

“Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal.”(Kant, 1986:p42)

Uma regra que se impõe por si mesma. É uma proposição sintética apriorística, sem nenhuma intuição especial, sem nenhuma experiência pessoal prévia. Não é um fato empírico, mas um dado imediato da consciência.

“…se encontram, pois, descobertos os princípios a priori de duas faculdades da alma, a faculdade de conhecer e a faculdade de desejar, e determinados segundo as condições, o âmbito e os limites de seu uso; igualmente se encontra lançado o fundamento seguro de uma filosofia sistemática, tanto teórica como prática, enquanto ciência.”(Kant,1986:p20)

O imperativo não pode se recondicionado, como se a razão moral fosse o princípio e a razão se fizesse perceber no imperativo categórico. O legislador também receberia da divindade suprema os artigos categóricos aos quais o dever da obediência é imposto.

Marx e Engels escreveram A ideologia alemã em meio a um intenso debate sobre a herança hegeliana ao mesmo tempo que demonstraram uma clareza sobre a herança kantiana. Afirmam que
“é uma vez mais em Kant que encontramos a forma característica que revestiu o aparecimento do liberalismo francês na Alemanha. Mas enquanto o liberalismo francês se baseava em interesses reais de classe, Kant e os burgueses alemães, de que aquele era o porta-voz embelezando-lhes as idéias, não se apercebiam de que na base destas idéias teóricas da burguesia havia interesses materiais e uma vontade determinada e motivada pelas condições materiais de produção. Foi por esse motivo que Kant isolou esta expressão teórica dos interesses que exprimia. Fez da vontade dos burgueses franceses e das sua determinações motivadas pela situação material, simples autodeterminações da livre vontade em si e para si, da vontade humana, transformando-as assim em determinações conceituais puramente lógicas e em postulados morais.”(Marx&Engels,1977:243)

Na obra A ideologia alemã se percebe que os ecos da Revolução francesa introduziam, por pressão externa, na Alemanha, estruturas políticas correspondentes a uma burguesia evoluída. Mas
“como a situação econômica da Alemanha estava ainda longe de ter atingido o grau de desenvolvimento a que correspondiam essas estruturas políticas, a burguesia (alemã) só os adotou sob a forma de idéias abstratas, de princípios válidos em si e para si, de idéias piedosas e de fórmulas vazias: autodeterminações kantianas da vontade e dos homens tais como deveriam ser”.(Marx&Engels,1977:p.245)

* Edvar Luiz Bonotto é mestre em filosofia do direito pela PUC-SP

Bibliografia

Marx& Engels.A ideologia alemã.São Paulo/Lisboa: Martins Fontes/Presença.1977.
Engels.A dialética da natureza,3a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
Marx&Engels. Obras Escolhidas II.São Paulo: Alfa-Omega,1953.
Kant. A crítica da razão prática. Lisboa: Edições 70.1986.

EDIÇÃO 44, FEV/MAR/ABR, 1997, PÁGINAS 48, 49, 50