O processo político no Brasil, nos últimos anos, vem acumulando inequívocos pressupostos de um regime político autoritário. O Executivo reduziu o Legislativo a uma assembléia homologatória. Condiciona, fustiga, pauta e desmerece o Judiciário. Pode vir a exercer todo o Poder.

A votação em primeiro turno da emenda da reeleição na Câmara e as escolhas subseqüentes dos novos presidentes das duas Casas do Congresso mostraram o alto grau de Poder, já hoje concentrado no Executivo e os métodos torpes que ele não hesita em utilizar para atingir seus objetivos.
Os militares, por razões que examinaremos, estão mantidos à distância desse autoritarismo emergente que, assim, é civil.

Tudo é feito sob o signo de uma plataforma política única o neoliberalismo – que busca adaptar o Brasil ao tempo presente, integrando-o, subalterno, na chamada economia mundial globalizada.
O presente esboço examina caminhos que têm seguido esse autoritarismo civil subalterno.
Os primeiros seis anos da desorganização neoliberal

A primeira fase neoliberal no Brasil começou com o governo de Fernando Collor de Mello. Empossado a 15 de março de 1990, o novo governo passou a agir com um desembaraço inesperado no manejo da nova linha que aplicava. Complexo sistema de medidas foi sendo encaminhado com a maior desenvoltura, revelando estar a equipe governamental executando uma política previamente traçada. O discurso era o da "modernidade" e nele estavam a redução do Estado, o fim de subsídios, a plenitude das leis do mercado, as privatizações, a desregulamentação do trabalho, a flexibilização dos direitos sociais; tudo dentro de um plano encabeçado pelo combate à inflação – o Plano Brasil Novo – desencadeado no próprio dia da posse do Presidente, com a edição de 20 Medidas Provisórias, confisco de poupanças populares e decretos que extinguiam órgãos diversos, inclusive de educação e cultura. O ideário era idêntico ao já aplicado no México, Argentina, Chile, Leste europeu. A matriz era a mesma: o planejamento neoliberal definido no Consenso de Washington.(1)

O governo de Itamar significou um breve interregno nesse processo. Deu passos nessa direção mas conteve-se, tolhido por preocupações nacionais, cuidados com os direitos sociais e zelo moral no trato das coisas públicas. O Plano Real, por ele apresentado, em dezembro de 1993, conseguiu baixar e controlar a inflação.

A partir de 1995, com a posse de Fernando Henrique Cardoso, o projeto neoliberal para o Brasil retoma o ímpeto da época de Collor. As primeiras e mais importantes medidas do novo governo visaram acabar com o monopólio estatal do petróleo e o das telecomunicações, abrir à exploração estrangeira o subsolo brasileiro, a navegação de cabotagem e os serviços de gás encanado. O trabalho foi desregulamentado e o emprego temporário introduzido. As prioridades da campanha eleitoral de Fernando Henrique – reforma tributária, previdenciária, administrativa foram encaminhadas no sentido da negação de direitos sociais, e em seguida estagnadas, para não prejudicar a reeleição. As privatizações atingiram quase tudo das áreas siderúrgica e petroquímica, avançam pelas áreas elétrica e de telecomunicações, e preparam-se para alcançar as sensíveis áreas mineral e petrolífera, com a venda-doação da Companhia Vale do Rio Doce e a "privatização por dentro" da Petrobrás (2).

Com câmbio supervalorizado e os mais altos juros do mundo, o governo vem mantendo a inflação baixa e sob controle, o que lhe dá certa popularidade, apesar do desemprego crescente, das falências e concordatas numerosas, dos baixos índices do desempenho econômico do país e da precariedade de serviços sociais básicos. Desde Fernando Collor até os dois primeiros anos de Fernando Henrique, foram seis anos de reorientação neoliberal da economia brasileira. Os prejuízos para um projeto nacional do Brasil foram significativos. As vitórias, mesmo no ângulo neoliberal, insuficientes. O Brasil perdeu o ímpeto desenvolvimentista e apresenta um crescimento tímido e excludente. Sofreu o desmonte de partes fundamentais do Estado nacional, principalmente as relativas à produção científica e tecnológica; viu quebrada a espinha dorsal de sua economia, formada por grandes empresas estatais; foi levado a abrir sem cautelas seu mercado ao assédio internacional, o que desencadeou uma avalanche de importação e a atrofia da produção local; registra desemprego crescente, falências e concordatas de pequenas, médias e grandes empresas, decomposição dos serviços públicos, crise na segurança, inércia na questão agrária; agora, em início de ano, quando os números são computados, verificaram-se recorde no déficit da balança comercial, recorde no déficit de transações correntes, recorde na dívida externa, recorde na dívida interna; por último, o comportamento moral do Governo e do Presidente da República na relação com os políticos degradou-se a nível impensável há alguns anos atrás.

Tal é o perfil sumário dos aspectos nacionais, econômicos, sociais e morais que resultaram dos seis primeiros anos do neoliberalismo no Brasil. A moeda mais ou menos estável é quase o único indicador apresentado como positivo, à custa dos mais altos juros do mundo e do câmbio sobrevalorizado.
Na ótica neoliberal, há uma vitória, digamos ideológica, conseguida nessa primeira fase: as elites assumiram o ideal da integração subalterna e acessória do país na economia global. A reeleição de Fernando Henrique – a expectativa de mais seis anos nessa direção – é a maior expressão dessa vitória.

Mas, na própria ótica neoliberal, outro é o resultado quanto ao nível concreto de transformação já alcançado. Os setores outrora monopolizados pelo Estado não foram ainda regulamentados. As "reformas", mesmo como oficialmente defendidas, estão paralisadas. O desenvolvimento do país não foi retomado e o Mercosul realiza-se com limitações.

A primeira fase de seis anos de neoliberalismo no Brasil se completa com sensível desorganização do país e precárias realizações na área econômica, mesmo pelos paradigmas do modelo.
Os maiores apoios: elites e grande mídia

Ao fim da primeira fase de seis anos do neoliberalismo no Brasil, cujo marco foi o golpe da reeleição, a amplitude do apoio alcançado pelo dirigente desse processo – o governo federal – não é grande. Na esfera econômica esse apoio é sólido entre os banqueiros e entre os que têm se enriquecido com as privatizações e as importações. A população de baixa renda, sobrevivendo com a cesta básica de custo mais ou menos estável, também dá certo apoio ao governo, diferentemente dos trabalhadores mal remunerados, dos que vivem seu cotidiano com a ameaçado desemprego, dos que querem entrar no mercado de trabalho e não acham colocação, das camadas médias desprotegidas e sem perspectiva, dos pequenos, médios e até grandes produtores inviabilizados.

Desde a emergência do governo de Fernando Henrique percebe-se seu esforço na manutenção do apoio militante da mídia, da grande mídia, a quem o governo retribui com generosas verbas propagandísticas e concessões vantajosas para bandas de TV a cabo e telefonia celular. Já houve quem chamasse esse sistema de "midiocracia", tamanha a articulação da mídia com o governo, uma mídia chapa-branca e um governo marqueteiro. A unidade editorial dos grandes meios de comunicação talvez seja inédita no Brasil e a linha jornalística, particularmente na TV, exagera no facciosismo de encomenda, voltado para levar a opinião pública a dar apoio ao pagador da notícia: o governo. Da grande mídia nacional, não participam dessa "midiocracia" as sempre poucas e honrosas exceções, onde tem aparecido expressivas colunas de relevo, independentes e inteligentemente elaboradas. Entretanto o sistema midiocrático continua em vigor.

De grande significado reveste-se o apoio que o governo busca no Parlamento. Após a posse do Presidente, a coligação de centro-direita da campanha eleitoral de Fernando Henrique, PSDB-PFL-PTB, terminou atraindo mais setores de centro, especialmente do PMDB, o que restringiu a área de atuação da oposição e da esquerda. Fernando Henrique, em votações importantes no Parlamento, tem deixado de lado todo e qualquer escrúpulo na utilização de métodos indecorosos para conseguir votos, optando por comprá-los abertamente. As forças que têm conseguido aglutinar por esses meios são surpreendentemente grandes, transformam-se às vezes em rolo compressor. Nessa base foi quebrado o monopólio estatal do petróleo, votada a reeleição do atual Presidente da República e eleito o Presidente da Câmara, o Deputado Michel Temer, homem do governo dentro do PMDB.

Esse apoio não é amplo nem consistente, é circunstancial e temporário. A parcela popular dele participa por causa do custo da cesta básica e da esperança de emprego; a base parlamentar o respalda pelas vantagens advindas das negociações feitas e da expectativa de que os compromissos serão pagos.

Se levarmos em conta os dados atuais da economia do país, que estão a exigir, na ótica do governo, medidas antipopulares e desgastantes,(3) poderemos compreender a pressa do governo nas decisões políticas que quer tomar, especialmente quanto à reeleição. Pressente que poderá perder a prazo curto o limitado apoio que hoje tem. Não foi por outra razão que Fernando FHC: utilização de métodos indecorosús para Henrique coordenou a esbórnia conseguir votos da reeleição, blefando com a possibilidade de apelar para a "voz rouca das seria, portanto, compreensível. Mas o ruas", mas não querendo nem ouvir falar em plebiscito ou referendo.A Constituição de 1988, numa frustrada tentativa de substituir o decreto-lei do regime militar por algo do entre nós o surgimento de um que não tivesse os riscos autoritários autoritarismo civil subalterno. desse instrumento, resolveu criar a Medida Provisória, com imediata força de lei, inicialmente prevista para perder eficácia se dentro de 30 dias o Congresso não a votasse, e exclusivamente editada em casos de "relevância e urgência", a juízo do Congresso. Ocorre que, desde os tempos o executivo avança no legislativo degradado

A constatação inicial de quem observa as relações atuais entre o Executivo e o Legislativo brasileiros e a dinâmica de seus funcionamentos é de que há uma exacerbação espantosa do Executivo e uma subserviência desconcertante do Legislativo, inclusive na função de legislar.

A Constituição do país prevê que o Executivo também pode ter a iniciativa de propor leis, o que não acontece, por exemplo, nos Estados Unidos. Uma certa parcela de leis aprovadas
do Presidente Sarney, os chefes do Executivo começaram a liberalizar as edições de Medidas Provisórias, começando por reeditar aquelas que em 30 dias não fossem apreciadas pelo Congresso. Depois, passaram a emitir Medidas Provisórias fora dos critérios de "relevância e urgência", sobre qualquer assunto, sem relevância e sem urgência. Ocorreram casos hilariantes, que demonstram o nível de arbítrio já implantado no país. Uma Medida Provisória obrigou as indústrias a aumentarem o teor de iodo no sal para evitar o escorbuto.

A situação irregular contou com a complacência do Congresso. O Executivo deu, então, um passo à frente: passou a reeditar as Medidas Provisórias caducas com modificações, pequenas ou grandes. Leis, não aprovadas pelo Legislativo, passaram a ser reeditadas pelo Presidente da República, com variações de mês a mês e, dessa forma, continuam leis. Leis mutantes … Entre 1991 e 1994, das 1.402 proposições legislativas aprovadas no Parlamento, 1.226 foram originárias do Executivo, 120 da Câmara e 56 do Senado. (4)

A partir de 1995, com Fernando Henrique Cardoso, isto mudou bastante, para pior. A centralização do Poder no Executivo agigantou-se e agigantou-se a subserviência da Câmara.
A edição de Medidas Provisórias, tão lesivas às prerrogativas do Parlamento, sofreu uma escalada. E dois outros fatores introduzidos na prática parlamentar mutilaram-na inteiramente: a sistemática da "urgência urgentíssima" e o fim dos fóruns democráticos de direção da Câmara.

A "urgência urgentíssima" , como prática parlamentar rotineira, anulou o trabalho das Comissões e introduziu o expediente do plenário deliberar – ter de deliberar – sem prévio exame da matéria, sobre qualquer assunto. O método fulminante, que supostamente mostra agilidade da Câmara, faz com que a maioria dos deputados sejam compelidos a votar, na quase totalidade dos casos, sem o menor conhecimento do que está sendo votado. Análises minuciosas, nem pensar, já que só poderiam ser feitas em lugar adequado, nas Comissões Temáticas, e com tempo suficiente. Ademais, só tem o benefício da "urgência urgentíssima" a matéria que tiver o apoio da "base parlamentar" do governo, vale dizer, a que o governo quiser.

O fim dos fóruns democráticos e regimentais da Câmara aconteceu com a liquidação prática do Colégio de Líderes e da Mesa diretora da Casa. O Presidente da Câmara passou a deliberar política e administrativamente sozinho, definindo em caráter terminativo até sobre o que é mais importante, a pauta da Câmara, que o art. 42 do Regimento Interno manda que seja feito mensalmente ouvindo o Colégio de Líderes.

Chegou-se então a uma situação calamitosa. Foram 1.018 Medidas Provisórias editadas ou reeditadas durante o governo de FHC, em uma média de 46,3 por mês, mais de uma por dia. Foram 457 projetos de leis ordinárias e 07 projetos de leis complementares aprovados pelo Congresso nesse período, dos quais, 72,72% originários do Executivo, 19,82% de autoria de parlamentares e 1,5% de autoria do Poder Judiciário. Foram 11 Emendas Constitucionais aprovadas pelo Congresso nesses dois anos, 08 de iniciativa do Executivo e três, de iniciativa parlamentar, só foram aprovadas por abordarem matérias de interesse do Planalto. (5)

A Câmara tomou-se uma Casa homologatória. Faz tudo o que o Executivo quer e só faz o que o Executivo manda. Sua subserviência ao Palácio do Planalto é chocante. Parece total. Parece …
Autoritarismo civil subalterno e comando paralelo unificado

A submissão da Câmara frente ao Executivo, dramatizada nos últimos dois anos, pode ser aparente. Para começar, subserviência demasiada e incompreensível levanta dúvidas sobre a correção da análise, ainda mais quando se sabe que o Presidente da Câmara, nos dois anos em que ela foi transformada em subpoder, foi Luis Eduardo Magalhães, que não demonstra marcas de subserviência.

A condução que dava aos trabalhos da Câmara indicava, ao contrário, seu viés autoritário, de resto compreensível pela educação paterna recebida. Daí porque tinha sentido a indagação que vez por outra se fazia na Câmara de por que Luis Eduardo se submetia tanto ao Planalto? De fato, era estranho. Pode ter ocorrido, nos últimos dois anos, algo que não é subserviência.

Fernando Henrique foi eleito Presidente da República com o apoio do PFL, vale dizer dos Magalhães, Antônio Carlos e Luis Eduardo, pai e filho. Luis Eduardo foi eleito Presidente da Câmara com o apoio de Fernando Henrique. Os dois presidentes, da República e da Câmara, desde que assumiram seus cargos, reconhecem o quanto cada um deve ao outro. Por outro lado, ambos embandeiraram-se do neoliberalismo, como cristãos-novos, ardorosamente.

Assim, a "harmonia" constitucional que deveria existir entre os Poderes Executivo e Legislativo foi sendo transformada, nesses dois anos do governo de Fernando Henrique e de presidência de Luis Eduardo na Câmara, em cumplicidade política entre os presidentes dos poderes. Não é que o Planalto impunha a pauta à Câmara. É que a pauta da Câmara e atos do governo eram combinados entre os dois presidentes, o da Câmara e o da República. A unidade política entre os dois e sua relação de compadrio, de reconhecimento' mútuo da força que cada um devia ao outro, a compreensão que tinham de que precisavam garantir e apressar a reorganização neoliberal do Brasil e o menosprezo aos parlamentares de seus partidos, PFL, PSDB, PMDB, PTB e outros, vistos, em geral, como fisiológicos em busca de favores; levou, ou pode ter levado, a que os dois presidentes, acometidos por uma espécie de síndrome de despotismo esclarecido, assumissem e dessem certa organicidade a um tipo de comando paralelo unificado para a institucionalização do neoliberalismo no Brasil, do qual eram eles, o seu núcleo central.

Do comando paralelo unificado, pelo que se observava, participavam um "staff' do Presidente da República (no regime militar havia o "grupo palaciano") e um "staff' do Presidente da Câmara, seus líderes mais chegados, pelo que se presume Inocêncio de Oliveira, Michel Temer, talvez José Aníbal. Ao lado dos participantes permanentes, seguramente existiam alguns flutuantes, chamados para assuntos específicos, dispensados em seguida, que se conformavam e até se orgulhavam em continuar como membros "stand by" do alto comando. Como o Presidente do Senado José Sarney tem planos colidentes com os do Presidente da República, certamente era consultado para questões determinadas, mas tudo indica que não participava do comando.

O alto comando ensaiou os passos de um autoritarismo civil subalterno no país. Centralizou e coordenou os planos para a reorganização neoliberal do Brasil, escalou medidas, programou reformas, previu prazos e realizou manobras. Também fazia leis, seja pelo mecanismo das Medidas Provisórias, que dispensam o Congresso, seja pelo expediente da "urgência urgentíssima", que contracena com o mesmo. Detinha os meios de convencimento, o controle do aparato econômico do governo e do poder político. Negociava com o patrimônio do Estado na mão. E deliberava sobre a utilização dos métodos adequados para angariar apoios e votos, acertando interesses regionais, planos políticos locais, atendimento a pleitos mais particulares, como anistia de dívidas e financiamento, isto que o vulgo irreverente chama de suborno.

Curioso como, talvez por ato falho, uma ou outra declaração de algum membro permanente ou flutuante do comando flagrava a consciência da força de que estavam possuídos e indicava sua existência. O Ministro Sérgio Motta disse em certo momento: "Eu e o Inocêncio formamos a aliança do mal. Nada fica na frente".(6) Sérgio Motta é do staff de Fernando Henrique e Inocêncio de Oliveira do staff de Luis Eduardo. Naturalmente eram do comando. Tudo indica que membros permanentes, talvez para a tarefa de dobrar resistências, não deixar nada à frente … Referindo-se a Jaime Lerner, governador do Paraná, só porque foi contra a reeleição, o mesmo Ministro disparou: "Vamos nos unir e destruir aquele cara". Inocêncio, na mesma linha pontificou: "Jurisprudência tem para todos os gostos. A gente usa quando precisa". E coroando esse festival incomum de frases típicas Luis Eduardo, comentando os métodos empregados para a vitória da reeleição, disse: "Não sou monarquista. Mas uma oligarquia de vez em quando faz bem".(7) É evidente que todas as falas foram ditas em tom de brincadeira. É evidente …
Naturalmente que os presidentes dos Poderes Executivo e Legislativo poderiam e até deveriam se encontrar periodicamente. Mas, sob a égide da Constituição de 1988, isso seria um encontro entre presidentes de dois Poderes independentes, feito, ocasionalmente, para balizar e harmonizar os procedimentos dos Poderes que chefiam. Jamais tal encontro poderia se transformar em conciliábulo para maquinações políticas, onde eram realizados planos e controles, do Executivo e do Legislativo; jamais poderia ser o núcleo elaborador da pauta da Câmara, e por via de conseqüência do Senado; jamais poderia assumir o comando das operações moralmente viciadas para conseguir votos para a reeleição do atual Presidente. E também é desconfortante ficar-se sabendo que as reuniões do comando paralelo, para tratar até de campanhas eleitorais, como a da reeleição, eram feitas nos Palácios do Planalto, Alvorada e residência oficial do Presidente da Câmara …

O comando paralelo unificado não era um órgão institucional, não exercia funções constitucionalmente previstas. Seus participantes lá não estavam como autoridades do Executivo e do Legislativo exercitando suas funções, mas como pessoas praticando funções extra-constitucionais, usando as forças que tinham, por serem autoridades constituídas.

A perda da independência do Legislativo era condição para o comando poder funcionar. O exercício pleno do Parlamento desencadeia uma sistemática própria, com análises multilaterais, discussões, incitamento do contraditório, emendas e até envolvimento popular. Prevê o funcionamento de comissões, a exposição de opiniões de minorias e, o que é muito importante, respeito ao regimento.

Nada disso condiz com a perspectiva autoritária de um comando que se julgava de posse da verdade e desejava que o processo andasse a toque de caixa. Por isso a independência do Legislativo não poderia subsistir. E essa tarefa – a de liquidar com a independência da Câmara – o comando a entregou a Luis Eduardo, que a cumpriu com primor, mesclando a dura resposta com a flexibilidade para ouvir, o recurso ao regimento com o seu abandono, o fim do Colégio de Líderes com o esvaziamento das Comissões técnicas, tudo servindo ao objetivo de anestesiar a reação de parlamentares à degradação da Câmara, esvaziar protestos, transformá-los em espasmos ineficazes de insatisfeitos contumazes, muxoxos, resmungos.

A responsabilidade do Senado no esvaziamento do Legislativo precisa ser melhor avaliada. Tudo indica que foi grande. Funcionando em série com a Câmara, fica atingido por tudo que a atinja. Não parece que senadores tenham participado do comando unificado, salvo, talvez, como flutuantes. Porém, os protestos que lá surgiram ficaram adstritos a poucas falas. A instituição como tal não se aventurou a defender o Congresso, ferido na jugular da Câmara.

No que respeita à tramitação das Propostas de Emenda à Constituição até agora enviadas ao Congresso pelo Presidente Fernando Henrique, o Senado contracenou com o Comando uma farsa. Como Fernando Henrique tinha pressa em sancionar as mudanças constitucionais, e como se o Senado fizesse qualquer alteração, no que fora aprovado na Câmara, esta teria novamente de apreciar a matéria, ocorreu um fato desprimoroso: o Senado não fez qualquer alteração nas propostas. Não pôde fazer, suspeita-se … Diferentemente, a matéria aprovada na Câmara sobre a previdência deixou o Governo insatisfeito. Arranjaram-se as coisas de tal sorte que, nesta exclusiva questão, o Senado irá fazer mudanças, para adequar o texto ao que deseja o Governo. Isto não é "harmonia" entre Poderes. É cumplicidade.

Especial responsabilidade tem o Senado na complacência com que assistiu, e assiste, às edições e reedições numerosas e irregulares das Medidas Provisórias pela Presidência da República. Uma atitude mais enérgica para coibir tais abusos não foi tomada, nem mesmo aprovado foi o projeto de lei que trata do assunto, em tramitação na Câmara dos Deputados desde 01 de dezembro de 1988, que dormita na Casa desde então, o qual poderia conter a fúria legiferante do Executivo.
E o Judiciário adverte: o Poder Executivo agiganta-se e ameaça …

O autoritarismo que ressurge na atualidade, passado tão pouco tempo do anterior, arremete-se também contra o Judiciário, que lhe poderia fixar limites. Aqui, como no Legislativo, a particularidade é que a investida não é frontal, mas tortuosa. As ações não desembocam na desautorização explícita do Judiciário, mas consumam o atropelo prático, o desrespeito objetivo.

O poder desagregador das Medidas Provisórias faz na frente judiciária uma devastação. Começa que o rol extenso das Medidas Provisórias constrói todo um arcabouço de legalidade transitória e de transitoriedade imprecisa, que expõe o Judiciário a múltiplas e inéditas demandas. O ordenamento jurídico em permanente mutação gera enormes problemas para o exercício do Judiciário, com uma enormidade de demandas fundadas em terreno movediço. Mas isso não é o mais grave.

Grave é a conseqüência jurídica da prática solerte da reedição, com modificações, das Medidas Provisórias não votadas pelo Legislativo. É que algumas dessas Medidas não só não foram transformadas em lei pelo Legislativo como foram consideradas ilegais pela Justiça e, mesmo assim, continuam sendo reeditadas pelo Executivo. O Presidente do Superior Tribunal de Justiça, Romildo Bueno da Silva, em recente entrevista verberou: " … Medidas Provisórias que o Congresso não transformou em lei e que o Supremo Tribunal Federal reputou inconstitucionais também continuam sendo reeditadas".

O desrespeito ao STF e à ordem constitucional existente é flagrante.

Os regimes autoritários, ao mesmo tempo que constrangem e desrespeitam o Judiciário, procuram intervir nos Tribunais e nas Promotorias, estabelecendo relações especiais com alguns de seus membros ou pondo diretamente nos órgãos da Justiça componentes da sua grei política. Há casos em que alguns dos assim indicados pautaram suas atitudes por uma linha de independência e altivez. Mas há casos contrários.

A Procuradoria Geral da República é um cargo de função estratégica, seja no sentido de coibir abusos, seja no de facilitá-los. Há pouco dois ex-Procuradores Gerais, o atual Presidente do STF Sepúlveda Pertence e Aristides Junqueira, deram mostras à Nação de como determinada conduta à frente desse cargo pode reverter em medidas saneadoras de grande alcance. Implementaram investigações policiais diversas, propuseram ações penais e civis relevantes na defesa do patrimônio público, seja contra crimes de corrupção, seja contra processos ilegítimos de privatização de empresas estatais.
De algum tempo para cá, desde que o Procurador Geral da República passou a ser Geraldo Brindeiro, esse comportamento foi suspenso. A Procuradoria já não garimpa atos ilícitos mas, ao revés, obstrui o andamento de matérias contrárias aos interesses do Executivo.

Naturalmente o autoritarismo surge de braços dados com a presunção tão comum nos déspotas que se julgam esclarecidos. A arrogância, o destempero, a impaciência ante a ousadia de quem duvida ou não se submete vai ocupando os espaços do procedimento autoritário. Assim é como se pode entender a exclamação estapafúrdia de Fernando Henrique referindo-se aos Ministros do Supremo Tribunal Federal quando estes reconheceram o direito de servidores civis ao reajuste de 28,86% concedido aos militares. Fernando Henrique definiu os membros do STF que votaram o reconhecimento pretendido como "pessoas que não pensam no Brasil". Pensar no Brasil é pensar como ele …

A relação conflituosa entre o Executivo e o Judiciário cresce com o autoritarismo. O Executivo, sob o comando de Fernando Henrique, procura manter os Tribunais sob tensão. Qualquer veleidade de independência maior é acompanhada de ameaça de uma reforma do Judiciário.
Que o Judiciário necessita de mudanças, no sentido de agilizá-lo e torná-lo mais acessível ao povo, não paira dúvida. Também não paira dúvida de que não é nessa direção que o governo de FHC quer reformar o Judiciário.

A consciência de que o autoritarismo civil subalterno em gestação procura reformar o Judiciário para submetê-lo já é discutida abertamente nos meios jurídicos. Recente reunião do Colégio Permanente de Presidentes dos Tribunais de Justiça do Brasil, realizada no Amapá, aprovou a Carta de Macapá onde ganha realce a seguinte advertência: "O crescente agigantar-se do Poder Executivo ameaça e deprime o amplo exercício das demais atividades igualmente essenciais ao funcionamento do Estado. A concentração do poder já se vai fazendo ameaçadora à normalidade institucional e à supremacia da lei". Em outra passagem a mesma Carta deplora "o propósito progressivamente manifesto de reduzir a importância e a influência da função judiciária na vida institucional daNação". Na reunião estava o Presidente do STF Sepúlveda Pertence, cujo gabinete divulgou a Carta de Macapá.

O Presidente do Superior Tribunal de Justiça, Ministro Romildo Bueno de Souza, mostrou em entrevista, dois aspectos importantes da situação que vai sendo criada, de uma parte, o aparecimento no país de um grupo que começa a agir fora dos meios institucionais e, de outra, o esbulho a que esse grupo vai submetendo o povo brasileiro, não lhe consultando sobre problemas decisivos. O Ministro Romildo assinala:

"Pensemos numa nação em que todos os poderes estejam concentrados num pequeno grupo de pessoas que promulga leis, promove toda a atividade necessária para manter a sociedade, fazendo obras públicas, lançando tributos, fazendo arrecadação, construindo estradas. Este mesmo grupo também julga os conflitos que surgirem, tanto entre as pessoas em geral quanto entre as pessoas e o Estado. Isto não funcionou bem ao longo da história. Esse contexto levou à tirania."

O Ministro registra sua perplexidade frente a decisões de interesse de todo o povo tomadas pelo grupo que delibera sem qualquer preocupação em consultar a vontade popular. Especificamente diz o Ministro:

"A Petrobrás foi fruto de uma campanha popular que durou décadas. Não nasceu em gabinetes de governo. Se privatizam a Petrobrás é razoável perguntar o que o povo pensa disso".
Os militares, úteis no passado, marginalizados agora
Em país há pouco saído de um autoritarismo militar, a situação dos militares merece exame, quando se cogita de autoritarismo emergente.

Não se completou totalmente a reincorporação do estamento militar no Brasil redemocratizado pós 1985. Os militares, desde então, mantêm-se afastados das lides políticas. Porém, há lides políticas partidárias, voltadas para a disputa do poder político, e há as discussões políticas gerais relacionadas com os destinos do país. Envolver setores das forças armadas, por exemplo, na disputa de um governo de Estado, ou coisas do gênero, não tem qualquer cabimento. Mas excluí-los – e eles se deixarem excluir – de uma discussão geral que envolve o futuro do país, onde a temática da sobrevivência, soberania e defesa da Pátria é a central, parece um despropósito. É como se estivéssemos contando com forças mercenárias prontas para usar armas independente dos objetivos, nacionais ou antinacionais, adestradas para defender um gesto de engrandecimento da Pátria, ou um ato de traição.
As Forças Armadas brasileiras, pela vertente melhor de sua tradição, trilharam outro caminho. A unidade nacional sempre as orientou, pois que elas próprias surgiram para garantir essa unidade e soberania. Temas de alcance nacional não as levaram à omissão, pois que tiveram participação positiva na abolição da escravatura, na proclamação da República, no movimento antioligárquico dos "tenentes" que fizeram "os dezoito do Forte", a "Coluna Prestes" e foram até a "revolução de 30". Mais proximamente, marcou presença significativa na grande campanha "o petróleo é nosso", da qual surgiu a Petrobrás. Quando, no governo Café Filho, o todo-poderoso Secretário de Estado americano John Fortes Dulles esteve no Brasil e ousadamente fez críticas públicas ao monopólio estatal do petróleo, ouviu de imediato sonora réplica do General Lott em termos de que "a Petrobrás é intocável" o que, na época, contribuiu e muito para afastar as ameaças sobre o futuro da Petrobrás, agora reabertas, sem despertar na área militar senão silêncio profundo.

Na constituinte de 1987/88 estiveram em pauta definições sobre o papel das Forças Armadas, a concepção de defesa nacional, a eventual criação de um Ministério da Defesa, o serviço militar obrigatório ou não, etc. Os militares da ativa, e das três armas, tomaram pronta iniciativa de se apresentarem para participar da discussão. E o fizeram elaborando documentos, promovendo palestras e atuando em debates. Ninguém protestou. Foi uma forma reconhecida como adequada de participação dos militares da ativa no debate de grandes temas políticos nacionais.

Ocorre que, passado o período constituinte, as coisas mudaram. É como se não houvesse mais debate sobre nenhum tema político de interesse nacional, como se os militares da ativa não pudessem fazer agora o que fizeram na constituinte, agregando informações, dando opiniões sobre assuntos vitais aos destinos da Pátria. Afinal esses homens preparam-se para defender a soberania nacional o tempo todo. E quando se discute se a entrega da Vale, por exemplo, é ou não um problema grave para a soberania nacional eles não têm nada a dizer? Ou não podem dizer nada?

Foi-se e vai-se criando uma espécie de tabu pelo qual as Forças Armadas não devem se posicionar politicamente sobre nada. Falar sobre problemas de interesse nacional só militares da reserva, os quais têm procurado participar, com naturais dificuldades operacionais.

Curioso é como na defesa da mudez dos militares da ativa juntam-se setores com motivações diferentes, uns da esquerda ingênua, outros das próprias forças armadas, e principalmente outros da direita não ingênua, esperta, inebriada pelo canto de sereia do mercado globalizado.

Os setores ingênuos da esquerda vêm nos militares o militarismo em germe, e não se dão conta de como os papéis das instituições dependem dos contextos onde se inserem. Uma coisa é um Exército de ocupação, outra um Exército de libertação; uma coisa são militares respaldando uma ditadura, outra é a necessidade da nacionalidade contar com os militares na defesa da soberania aviltada. Mas esses setores ingênuos da esquerda não tem radicalizado posições sobre essa questão.

Nas Forças Armadas existem problemas, provavelmente complexos e pouco conhecidos. Uma questão se coloca: as Forças Armadas, especialmente o Exército, não enfrentaram ainda corretamente o espectro do passado recente. Não reconheceram que, independentemente de avaliações que só o tempo fará sobre o que realizaram no país enquanto estiveram no Poder, uma coisa necessita ser deplorada publicamente – o tratamento desumano que deram a opositores do regime.

O autoritarismo que ressurge na atualidade arremete-se também contra o Judiciário
Não disseram até agora que tais tratamentos são condenados pelas Forças Armadas brasileiras, e assim não livraram ainda a cara da corporação da marca de fatos que todos sabem que aconteceram. Não se empenharam em virar essa página da história ajudando expressamente a esclarecer de vez o paradeiro de mortos e desaparecidos, como os da Guerrilha do Araguaia.

Não tendo ainda prestado contas de seu passado recente, os militares parecem sentir o peso de uma dívida não paga e se retraem. E deploram o enfraquecimento atual que sentem das Forças Armadas, no armamento, na tecnologia, no treinamento, no salário. Enfraquecimento que é conseqüência clara de política consciente.

Finalmente, há a direita não ingênua, esperta, firme na idéia de que os militares não podem se meter com a política, devem ser "profissionais".

A direita não tem nenhuma tradição antimilitarista no Brasil. Pelo contrário. No quadro da guerra-fria, quando os militares brasileiros assumiram a estratégia americana de que o inimigo era o soviético e de que a luta era contra o socialismo e o comunismo, e quando as elites conservadoras do Brasil identificavam-se com esse mesmo objetivo, longe da direita exigir mudez dos chefes militares, procurava-os para "pronunciamentos" em seu socorro. O próprio golpe de 1964 foi dado pelos militares, mas os "chefes civis" do movimento não se cansaram de ir aos quartéis pedir a intervenção castrense. Agora, as coisas mudaram, e o pano de fundo da mudança é a política geral.

Dois componentes básicos da realidade atual têm interferência direta nessa questão: o que os vencedores da guerra fria, os americanos, querem fazer com os militares latino-americanos, no contexto da nova ordem mundial que concebem, e o que resultaria para a Nação brasileira se certas concessões fossem feitas por exigência da linha política em curso.

A visão estratégica que os americanos passaram a ter na atualidade pós-guerra fria é que na América Latina não faz mais sentido a manutenção de custosas Forças Armadas posto que, após a debacle da URSS, deixou de existir inimigo estratégico. Asseveram ser remota a necessidade de um confronto, podendo a América Latina ficar tranqüila pois poderá contar, nessa hipótese, com a retaguarda militar poderosa dos americanos! E dizem isso sem corar! Assim, ao invés de manterem Forças Armadas caras e desnecessárias, deveriam os países latino-americanos transformarem seus contingentes militares em "forças especiais para o combate ao narcotráfico", para enfrentar o suposto problema capital do momento. Documentação americana recente menciona o Brasil e a Argentina como países onde os militares têm resistido a essa nova concepção. A menção à Argentina indica que o documento pode estar superado …

A integração subalterna do Brasil na economia mundial é a forma que tem assumido no Brasil a política neoliberal de Fernando Collor a Fernando Henrique, com os resultados já sinalizados no perfil sumário acima apresentado quando falamos dos seis anos da desorganização neoliberal no país.

Mas, de permeio com o estoque de problemas que jogaram sobre o país, vem toda uma outra gama de posições políticas tidas como exigências da "modernidade", como a "soberania limitada" , o "direito de ingerência", a "internacionalização da Amazônia", a entrega do subsolo mineral do país ao capital estrangeiro, a venda-doação da Cia. Vale do Rio Doce, a "privatização por dentro" da Petrobrás. Tudo isto, além das imposições já aceitas quanto a patentes, abertura aos estrangeiros da navegação de cabotagem, telecomunicações e outras, compõem um quadro no qual o projeto nacional de um Brasil soberano, cede lugar a outro projeto, o de um país subalterno, vitimado pela voracidade do dólar, ocupado pelas grandes empresas estrangeiras, exportador de minérios que já não controla e de produtos agrícolas sobre taxados, importador de mercadorias de alto valor agregado, com direitos sociais esvaziados, participante passivo da economia mundial globalizada.

Essa situação, inteiramente diversa da época da guerra-fria, faz surgir uma contradição que não havia, entre as elites de direita e as Forças Armadas. Estas, sob pena de negarem toda sua razão de ser e toda sua identidade histórica, não podem apoiar, nem o projeto de Nação subalterna em curso, nem o seu próprio fim e transformação em força de combate ao narcotráfico. De outra parte, as elites de direita no poder, mancomunadas com o capital alienígena, principalmente americano, apóiam essas teses e empenham-se por levá-las à prática. Daí porque essa direita, hoje, ao contrário de ontem, contundentemente defende a não interferência das Forças Armadas na política, sua "profissionalização" e mudez.

Entende-se assim porque há um manifesto interesse, nas hostes de direita e nos setores que impulsionam as medidas neoliberais no Brasil, em manter afastados os militares das discussões e decisões políticas que interferem nos destinos do País. O que não se entende é como a oficialidade tem acatado tal diretriz, abdicando de participar dos grandes embates onde a soberania nacional é o centro da questão, e onde a própria integridade do país está em causa.
O autoritarismo civil subalterno que emerge faz tudo para esconder as contradições políticas que hoje têm com as Forças Armadas. Utiliza o ideal do "profissionalismo militar" – de resto já existente no Brasil – como ardil para manter emudecida a opinião dos militares sobre as questões do rumo do país. E os militares da ativa não parecem estar à procura dos meios adequados e democráticos de participação na discussão das questões políticas relacionadas com o futuro do Brasil. Pelo menos por enquanto.
Programada a reeleição, nova fase se inicia
Depois da tramóia da reeleição o governo prepara-se para enfrentar a segunda fase neoliberal de seis anos que agora começa.

De saída, nos episódios parlamentares sub seqüentes à "reeleição", eleições das Mesas da Câmara e do Senado e formação de blocos partidários, o governo deu uma demonstração rara de interferência desabusada no Legislativo, agora, não para intrometer-se apenas em assuntos políticos centrais, mas para imiscuir-se em questões comezinhas da vida interna dos congressistas.

A memória das últimas décadas, conforme protesto do deputado Prisco Viana, registra três casos ocorridos no regime militar que lembram a atual situação. Em 1965, o presidente Castelo Branco jogou suas cartas na eleição de Bilac Pinto à Presidência da Câmara, contra a candidatura de Ranieri Mazzilli, que tentava sua sétima reeleição.

Em 1977, Herbert Levy (Arena) lançou-se na disputa contra o candidato oficial do presidente Ernesto Geisel, o então deputado Marco Maciel (Arena), hoje vice-Presidente. Geisel mandou um recado ao deputado Herbert Levy através do deputado José Bonifácio: "em regime revolucionário, presidente não perde eleição". No dia seguinte, Herbert Levy retirou sua candidatura.
Em 1981, Figueiredo mobilizou ministros e governadores para ocuparem o plenário da Câmara e garantirem a eleição do deputado Nelson Marchesan (PDS), que disputava a Presidência da Câmara com o deputado Djalma Marinho.

Com Fernando Henrique, o início dos trabalhos legislativos de 1997 sofreu uma ostensiva e humilhante intervenção. O Presidente apoiou Antônio Carlos Magalhães para a Presidência do Senado, contra um candidato que não era da oposição, ante a ameaça dos Magalhães de que não fosse Antônio Carlos eleito não passaria a reeleição no segundo turno na Câmara. Em seguida, declarou apoio a um dos candidatos à Presidência da Câmara, divulgando ser uma questão de honra para ele a eleição de tal candidato, Michel Temer. Posteriormente, quando o partido do Presidente, o PSDB, e o PTB, decidiram, por unanimidade de suas bancadas, formar um bloco – no que foi contrariado o PFL, que até então formara um bloco com o próprio PTB – o Presidente pessoalmente repeliu a intenção dos dois partidos e proibiu a formação do bloco.

O autoritarismo emergente seguramente irá buscar outra forma para manter sob total controle o Legislativo, posto que o comando paralelo unificado, baseado na dobradinha Fernando Henrique – Luis Eduardo já não conta com o segundo na Câmara. A presença de Antônio Carlos à frente do Senado é um fator complicador: se não participa do comando não aceita suas determinações; se participa, tumultua seu funcionamento, pela relação de unidade contraditória que mantém com Fernando Henrique. Fortalecido no cenário político do momento, ACM não tem disposição de aceitar papel caudatário nem na aparência.

A marcha autoritária em curso tem sua dinâmica. Confronta-se com todos os setores que lhe podem atrapalhar. Já vimos o tratamento que está sendo dado ao Legislativo, ao Judiciário, às Forças Armadas. Na alça de mira do autoritarismo civil subalterno começa a aparecer cada vez com mais freqüência a Igreja Católica. As críticas desferidas por expressivas figuras como D. Paulo Evaristo Arns e D. Lucas Moreira Neves à rendição de FHC ao neoliberalismo são tratadas com desrespeito e escárnio pelo próprio Presidente da República, que chegou ao ponto de ir reclamar ao Papa, durante sua viagem à Itália, do apoio da Igreja Católica brasileira à Reforma Agrária e aos Sem-Terra.
Intelectuais de prestígio como Aziz Ab' Saber, ex-presidente da SBPC, Octávio Ianni, Modesto Carvalhosa, Paulo Singer e outros, além de alguns com laços de amizade com o Presidente, como Arthur Gianotti, ocupam cada vez maiores espaços na imprensa com artigos críticos à política implementada por seu governo. Gianotti inclusive, tido como um dos melhores amigos de Fernando Henrique Cardoso, fez duras críticas aos métodos utilizados pelo Presidente para aprovar a reeleição, apontando os riscos de vivermos um "despotismo esclarecido" .

As primeiras medidas econômicas da nova fase pós reeleição são cruciais: a privatização-doação da Companhia Vale do Rio Doce, um crime de lesa Pátria, e a regulamentação entreguista do setor do petróleo, em benefício das multinacionais e em detrimento da Petrobrás. Em ambas o Governo mostra o caráter subalterno de seu autoritarismo civil, sua subordinação ao grande capital, principalmente estrangeiro, que se move para incorporar como peça acessória o mercado brasileiro. Porta-se como representante servil desses grandes interesses, para os quais prepara vergonhosa e açodadamente a entrega da empresa que domina as entranhas minerais do Brasil, a Vale, e o desmonte da maior e mais estratégica estatal brasileira, a Petrobrás. No caminho dessas doações, chamadas de privatizações, o Governo não tem o menor escrúpulo em forjar, adulterar e omitir informações, sempre com o propósito de reduzir o valor das empresas brasileiras, na malsinada linha que pratica de desmerecer de tudo que é do Brasil. Na chamada privatização da Vale, a desfaçatez governamental chega a níveis elevados, afrontando a inteligência dos brasileiros, sem explicar nada do que os setores mais conscientes da sociedade exigem, arrumando cifras e argumentos para que a Vale seja vendida à Anglo American por preços e condições estabelecidas por uma serviçal da Anglo American, a Merril Lynch Consultoria.

Como não há ação sem reação em sentido contrário, adensam-se os fatores que podem desencadear reação popular expressiva. Desempregados quebram com a mão o carro do prefeito carlista, de Salvador, com ele dentro – o que só se explica num quadro de desespero. Na Câmara Federal formaliza-se pela primeira vez a criação de um bloco de oposição com PT, PDT e PC do B. O PSB a ele vai se agregar. O Movimento Sem Terra e todos os que lutam pela terra realizam impressionante marcha sobre Brasília, partindo de diversos locais distantes do país, num portentoso grito pela reforma agrária que também é grito pelo emprego, por desenvolvimento, por direitos sociais, por liberdade e pelo Brasil. O autoritarismo civil subalterno terá sua resposta.

HAROLDO LIMA é deputado federal pelo PC do B/BA

(1 )Programa de ajuste econômico determinado pelo Banco Mundial e pelo FMI a ser aplicado pelos países de terceiro mundo a partir de 1993.
(2)"Privatização por dentro" foi a expressão usada pelo relator da lei reguladora da área petrolífera, Dep. Eliseu Resende, referindo-se à sua proposta.
(3)Ver "Condicionantes econômicos da reeleição", do mesmo autor, publicado na revista Princípios n° 44.
(4)Almanaque Abril,1994,CD-ROM. (5)Boletim do DIAP, edição especial, "Dois anos do Congresso na era FHC", janeiro de 1997.
(6)Jornal Folha de S. Paulo de 091 02/97 , dinheiro 2, pg 11.
(7)Diversos jornais vincularam essas declarações. Ver Folha de S. Paulo 51 2197.

EDIÇÃO 45, MAI/JUN/JUL, 1997, PÁGINAS 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29