Não se pode resumir a contribuição lograda por Maria Stela Lemos Borges neste rigoroso trabalho de reconstituição da caminhada do grupo das quarenta e quatro famílias para a obtenção de uma pequena parcela de terra no município de Promissão-SP.

Desta sorte, só resta levantar alguns pontos deste rico trabalho.

A caminhada dos autores e atrizes deste drama, resultante da luta pela terra, não é vista pela autora a partir de um ponto de observação exterior. Através de muita perspicácia analítica, ela consegue penetrar nos labirintos das lembranças e memórias, permitindo a vivacidade de um passado que, até então, estava morto.

Aos poucos, os narradores vão re-construindo casas, igrejas, sítios, vilas, festas, enfim vão fazendo emergir todo um mundo material soterrado por um violento processo de expropriação encabeçado por um grupo poderoso de senhores de terras deste país.

Este passado não ressurge tal como foi. Ele é, paulatinamente, trabalhado na narrativa pelas vozes presentes, segundo uma espécie de plano (invisível) de um futuro.

Assim, o leitor vai percebendo uma mistura entre autora, atores, e atrizes, onde a primeira, muitas vezes, transforma-se, ela própria, em narradora. Deste modo procede no primeiro capítulo, quando, através de farta documentação, descreve a verdadeira história da ocupação das terras na Noroeste. A história dos índios, posseiros, imigrantes japoneses é transformada em pré-história do processo de acumulação do capital dos grandes latifundiários desta região.

Se a violência empregada extinguiu a vida material, através das mortes e expulsões dos camponeses destas terras, não foi o mesmo que ocorreu com as lembranças guardadas pelos sobreviventes e seus descendentes. Através da memória viva ou da memória herdada, ressurge, das cinzas, por exemplo, a Vila Dinízia, que foi e não existe mais, segundo as palavras da autora.

A vivificação da Dinízia faz-se pela narrativa desses protagonistas. Aos poucos, como que por encanto, ressurgem as casas, a igreja, as ruas, as vendas, os sitiantes que lá compareciam, principalmente aos sábados, os casamentos realizados, as festas. Tudo desaparecera, exceto as lembranças e a cruz do Cruzeiro, do antigo cemitério, encontrada pela autora no meio das pastagens que substituíram a Dinízia. Se os tijolos e pedras das casas e ruas foram destruídos pelas máquinas, a cruz lá ficou, mesmo quebrada, como testemunho material daquilo que foi e que não é mais.

O espaço material funciona como uma espécie de detonador das lembranças. Basta perceber um objeto para um conjunto de elementos semióticos virem à tona, rompendo, às vezes, em forma de choque, às paredes da superfície. É nesse contexto que se entende a destruição da Vila Dinízia. A sua existência poderia ser um detonador, um farol de possíveis idéias e ideais.

Contudo ela ficou como parte integrante da memória coletiva dos vencidos. Ela deixou de ser Vila, de ser imóvel, para tornar-se móvel, itinerante, migrante. Do mesmo modo que os narradores “queimaram o chão” deste país, vagando de um lado a outro, ela também não se fixou mais em lugar algum.

A história resgatada em Terra, ponto de partida, ponto de chegada não é retilínea, nem tão pouco, circular. Tanto a linearidade, quanto a circularidade pressupõe a certeza, a racionalidade, a teleologia dos fatos sociais. O que se tem neste livro é a história probabilística e não determinística. História que se define enquanto contradição, movimento, rumos e metamorfoses.

Pautada por estes princípios metodológicos, a autora vai, à medida que tece sua narrativa, incorporando à história oral elementos da história escrita e interpretações de outros autores sobre a problemática da luta pela terra.

Portanto, Terra, ponto de partida, ponto de chegada não é um livro apologético dos assentados rurais. É, antes de mais nada um livro que analisa a luta de homens e mulheres cuja história é marcada por um violento processo de expropriação e exploração. É um livro que retrata a vida dos oprimidos, dos desclassificados, dos banidos, dos que são forçados a viver nos recantos escuros da sociedade. Além de mostrar as conquistas traduzidas pela posse da terra, o livro também revela a história daqueles que não resistiram, que se perderam pelos desvios dessa longa caminhada, impelidos por novas contingências e situações de opressão.

Terra, ponto de partida, ponto de chegada é, antes de tudo, um livro destinado não somente àqueles que se interessam pelas questões agrárias, pela reforma agrária ou pela história da propriedade da terra neste país. É também destinado àqueles inconformados com a gigantesca injustiça social, com o profundo desrespeito aos direitos e às liberdades sociais. É um livro para os que acreditam que a realidade é construída com ideais, idéias, ilusões, utopias e esperanças. É um livro comprometedor, porque fere os interesses dos poderosos, sem, no entanto, cair em apologias.

Terra, ponto de partida, ponto de chegada é uma rede tecida pela autora, cujos entremeios são marcados pelo remembramento de sujeitos desmembrados pela história. Talvez seja esta a maior contribuição deste livro aos movimentos de luta pela terra no Brasil.

EDIÇÃO 46, AGO/SET/OUT, 1997, PÁGINAS 69