É fato bem estabelecido que o desenvolvimento da ciência e da tecnologia se transformou, na história recente, em problema estratégico para as nações contemporâneas. Para os países da periferia da economia capitalista, este problema diz respeito às chances que estes países têm ou não, de participarem da nova configuração mundial em uma posição mais vantajosa do que aquela que desfrutam atualmente. Este problema é igualmente importante naqueles países que, tendo iniciado a construção socialista, buscam caminhos para perseverar nesta perspectiva, no que pese as condições mundiais extremamente adversas.

Estudos comparativos podem trazer importantes indicações sobre o caminho trilhado pelos países na busca do desenvolvimento científico e tecnológico. Entre fins do século XIX e ao longo do século XX só dois países foram capazes de dar um “salto” no seu desenvolvimento científico e tecnológico, vencendo seu atraso relativo e passando a integrar o clube das nações mais pujantes em termos de ciência e tecnologia. Estes países são o Japão e a antiga União Soviética. Mesmo sem nos beneficiarmos de uma análise detalhada daqueles estudos comparativos, podemos inferir que entre as razões que concorreram para este feito histórico está o fato de que estes dois países se beneficiaram da existência de um poder nacional estável por períodos prolongados, e este poder compreendia o papel da educação, da ciência e da tecnologia no desenvolvimento nacional.

No caso japonês, após um longo período de isolamento em relação ao Ocidente, a Era Meiji, que começa na Segunda metade do século XIX, representou uma abertura e uma aproximação daquele País em relação às potências ocidentais. A atitude das elites japonesas foi então de considerar um desafio para o futuro independente de seu País a aquisição da ciência, da tecnologia e da educação ocidentais. Como apontado pelo historiador Sasaki Chikara, esta não era a única alternativa existente, e a sua adoção foi o resultado de uma luta na qual o principal ideólogo foi o escritor Fukuzawa Yukichi (1835-1901). Conforme Sasaki, "o expoente máximo do movimento iluministajaponês, no início do período Meiji, foi Fukuzawa Yukichi. Foi quem introduziu o ensino ocidental, especialmente a ciência e a tecnologia do Ocidente moderno, (…) com o objetivo de, através da Restauração Meiji, transformar o Japão num País moderno e civilizado" (1).

As reformas inspiradas desta atitude, estão na base do ulterior desenvolvimento científico e tecnológico japonês.

O caso soviético requer uma análise mais profunda, pois a derrota da primeira experiência socialista não é independente de equívocos na política de ciência, tecnologia e desenvolvimento industrial daquele País (2), mas é claro, o esforço continuado do poder soviético, durante décadas, generalizando o acesso à educação, e promovendo o desenvolvimento científico e tecnológico, está na base dos êxitos soviéticos neste terreno, êxitos visíveis até, pelo menos, o início da década de 1960.

O recurso à história da ciência também apontaria o papel decisivo dos estados nacionais no desenvolvimento científico. Assim é que o historiador Roshdi Rashed em estudo comparativo sobre a recepção da ciência européia nos casos do Irã e do Egito do século XIX, evidenciou que no caso do Egito, enquanto existiu um Estado nacional, a transferência da ciência européia foi acompanhada de um florescimento da ciência naquele País, o que deixou de ocorrer com a bancarrota daquele Estado. Segundo Rashed, "não foi com os exércitos imperiais que a ciência moderna chegou ao Egito, mas com a criação do Estado moderno e nacional" (3).

O papel do Estado e do poder nacional é também um fator bastante relevante na compreensão das vicissitudes que têm marcado o desenvolvimento da ciência no Brasil. Para um estudo mais preciso, no delimitado espaço que dispomos, tomemos para análise o caso das universidades, embora seja sabido que esta não foi ao longo da nossa história a única instituição onde a ciência pôde se desenvolver. É sabido que a colônia não nos legou universidades, diferentemente de certos países da América espanhola. A ausência de universidades perdurou após a independência, em 1822, atravessando todo o período do império (1822-1889), e da chamada República Velha (1889-1930).

Durante todo o século XIX tivemos apenas a criação de faculdades para formar médicos, advogados e engenheiros. Só na década de 30 deste século é que foram fundadas as primeiras universidades brasileiras: a Universidade do Distrito Federal, criada no Rio de Janeiro por iniciativa do poder municipal, e a Universidade de São Paulo, criada pelo governo estadual paulista. A universidade no Brasil tem, portanto, uma história que não chega a sete décadas. Este atraso na criação das primeiras universidades brasileiras já é uma forte evidência da insensibilidade das nossas elites ao papel da ciência no desenvolvimento do País.

Em pelo menos dois momentos, desde a sua criação, a Universidade brasileira esteve fortemente ameaçada. Isto ocorreu durante o período do Estado Novo, entre 1937 e 1945, e o período da ditadura militar, entre 1964 e 1985. O governo de um destes dois períodos, o Estado Novo de Getúlio Vargas, demonstrou certa compreensão de aspectos do desenvolvimento independente do País; mas nenhum dos dois regimes políticos demonstrou compreender que a Universidade tinha um papel estratégico para o País. E que o seu desenvolvimento requeria um ambiente de liberdade e autonomia. Assim a ditadura do Estado Novo, um dos períodos mais obscurantistas da história nacional, levou à destruição da experiência pioneira liderada no Rio de Janeiro pelo educador Anísio Teixeira. A ditadura militar implantada em 1964 não chegou a fechar as universidades, mas cassou os direitos políticos e decretou a aposentadoria forçada de muitos dos melhores talentos universitários que havíamos formado. O regime dos militares teve ainda um outro efeito, indireto mas eficaz, sobre o desenvolvimento da ciência brasileira. O terrorismo implantado esmagou os melhores talentos de toda uma geração; prendendo, cassando, torturando milhares de jovens e matando centenas deles. Em outra conjuntura política estes mesmos talentos poderiam ter combinado participação política com sua própria formação enquanto quadros intelectuais capazes de produzir conhecimento científico e tecnológico.

É interessante observar, nestas considerações, a experiência positiva da Universidade de São Paulo (USP), que terminou por se constituir na maior e mais importante universidade da América do Sul. Ela sofreu tanto quanto outras instituições com as injunções políticas gerais adversas da sociedade brasileira; mas sendo uma instituição mantida por um governo estadual, ela pôde se beneficiar de uma autonomia e uma estabilidade maior que outras instituições análogas. Estas vantagens comparativas que beneficiaram a USP não foram, entretanto, fruto do acaso, tendo correspondido ao projeto político de um setor das elites brasileiras, como assinalado pelo historiador Shozo Motoyama: "Ela significava uma opção política de São Paulo, depois da sua derrota na Revolução Constitucionalista de 1932, apostando na ciência e na cultura como meios de sua redenção, inclusive, política. E diga-se com todas as letras que a estratégia deu certo" (4).

Mesmo no interregno entre as duas ditaduras aqui citadas, ou seja, o período republicano entre 1954 e 1964, diversos foram os óbices existentes à consolidação institucional da ciência brasileira. Estes obstáculos não foram capazes, contudo, de impedir a criação de instituições científicas nacionais e do desenvolvimento de uma tradição de pesquisa científica e tecnológica de qualidade reconhecida internacionalmente. Para se chegar a este patamar os cientistas brasileiros aliaram o empenho no seu próprio trabalho científico com uma participação significativa na vida política nacional.

Exemplo desta característica é a existência da Sociedade Brasileira para o progresso da ciência, a SBPC – que completa meio século neste ano de 1998 – criada depois da Segunda Guerra mundial, e que combina atividades típicas de uma sociedade científica como colóquios, revistas especializadas e atividades do ramo, com uma atividade eminentemente política em defesa da ciência e tecnologia nacionais e das liberdades democráticas.

Entre os diversos obstáculos existentes à consolidação da pesquisa científica no Brasil, um dos principais tem sido, sem dúvida, a inexistência de um poder, ou de um projeto político capaz de se constituir em poder, estável e duradouro, e que compreenda o papel da ciência, da tecnologia e da educação nas sociedades contemporâneas. Este obstáculo não pode ser entendido, contudo, como uma incompreensão restrita aos governantes. Trata-se, em verdade, de concepções que integram a ideologia das elites brasileiras, em especial, das nossas elites empresariais. Como apontado por José Leite Lopes,
"(…) no Brasil, há prazer em criticar a Universidade por não oferecer resultados práticos, mas não se sabe quais industriais brasileiros jamais demonstraram interesse nela. A razão é simples: nunca foram movidos pelo espírito dos industriais americanos. Ao contrário: sendo, em geral, sócios de multinacionais, sempre se contentaram em comprar ou alugar técnicas e produtos descobertos e feitos nos laboratórios da matriz" (5).

Desde o início dos anos 1990, contudo, a infra-estrutura de ciência, tecnologia e educação, construída a duras penas, está de novo ameaçada; não mais por regimes ditatoriais, mas por um inimigo tão sutil quanto eficaz. Trata-se da ameaça das políticas neoliberais, que vêm do governo Fernando Collor de Mello, e são aplicadas hoje com mais força e determinação pelo governo Fernando Henrique Cardoso.

Trata-se de política sutil porque feita em nome da modernização e da integração do País no mercado internacionalizado. O receituário desta suposta modernização implica na redução do papel do Estado, inclusive das atividades em ciência, tecnologia e educação. Assim é que a rede universitária pública, na qual está concentrada a quase totalidade da pesquisa científica, não só não se amplia, como sofre a penúria dos cortes de verbas e do congelamento de salários dos professores, pesquisadores e funcionários técnico-administrativos. Entre os planos do governo, apregoado pelo próprio presidente do Banco Central, está a extinção da universidade pública e gratuita, com a implantação do ensino pago. O presidente da República, em recente declaração afirmou estar incomodado com a dimensão, por ele considerada excessiva, da rede de bolsas para estudos pós-graduados. Por outro lado estabelecimentos privados de ensino superior sem nenhum vínculo ou tradição de pesquisa, recebem graciosamente, dos órgãos governamentais, o título e o reconhecimento de universidades. O mais recente destes episódios foi tão escandaloso que levou um dos aliados do presidente Fernando Henrique, o filósofo J. A. Gianotti, a renunciar à participação em um destes órgãos. A gravidade da ameaça existente sobre a ciência brasileira pode ser inferida da natureza das forças invocadas pelo físico Leite Lopes para a defesa desta ciência:

"Corremos o risco de ser sacrificados no altar da reforma do Estado. Esperamos que deus segure a mão de Abraão, como quando este estava prestes a sacrificar, em seu louvor, seu filho Isaac" (6).
A luta pela defesa das instituições científicas brasileiras se confunde, deste modo, com a própria luta pela existência de um País soberano e democrático.

* Professor do Instituto de Física da Universidade Federal da Bahia e Doutor em História da Ciência pela USP, com Pós-doutorado em História e epistemologia da Ciência na Universidade Paris VII.
**A versão original deste artigo foi preparada para ser publica da em uma edição especial sobre as relações Brasil/Portugal da revista Vértice, do Partido Comunista Português.

Notas

(1) CHIKARA, Sasaki. “Ciência como instrumento de modernização e colonização: o dilema do movimento iluminista na Era Meiji no Japão”. Palestra de abertura do Colóquio Internacional de Estudos Portuga/Japão 1543-1993, São Paulo, 1993. Publicada em Voz Lusíada, 4, p. 514, 1995.
(2) sobre o caso soviético ver as análises do historiador Loren Graham, em Science in Russia and the Soviet Union – a short history. New York: Cambridge University Press, 1993; e The Ghost of the Executed Engineer – Technology and the Fall of the Soviet Union. Cambridge: Harvard University Press, 1996.
(3) RASHED, Roshdi. “Science classique et science moderne à l'époque de léxpansion de la science européenne”, in PETITJEAN, P. C. Jami e MOULIN, A. M. (ed.) – Science and Empires, Boston Studies in the Philosophy of Science, v. 136, Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, p. 19-30, 1992. Tradução portuguesa publicada em Princípios, 27, 39-47, 1992.
(4) MOTOYAMA, S. “Os principais marcos históricos em Ciência e tecnologia no Brasil”, Revista da sociedade Brasileira de História da Ciência, 1, 41-49. 1985, p. 44. As frases de Motoyama são premonitórias da chegada à Presidência da República, dez anos depois, de um professor oriundo da Universidade de São Paulo.
(5) Folha de S. Paulo, 26-10-1997. Leite Lopes é Professor Emérito do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e da Universidade Louis Pasteur em Estrasburgo, França.
(6) Idem.

EDIÇÃO 49, MAI/JUN/JUL, 1998, PÁGINAS 64, 65, 66, 67