A atividade de contar a história é orientada pelas convicções ideológicas, políticas e sociais do historiador e do grupo social ao qual está ligado. Além disso, essa atividade reflete não só as idéias dos grupos e classes dominantes, mas também a visão de mundo dos grupos emergentes, que lutam contra a hegemonia política, econômica, social e ideológica das classes que estão no poder.

Podemos dizer esquematicamente que cada classe social busca no passado os fatos com os quais compõem o mosaico de sua visão de mundo. Procura seus heróis e valoriza os momentos em que seus antepassados de classe agiram de maneira criativa – os momentos em que, como Hegel disse de Napoleão após a batalha de Iena, encarnaram o espírito do tempo, cristalizaram determinados princípios gerais, momentos em que esses grupos ou heróis, ao lutar por seus próprios objetivos, também representaram a vontade geral da sociedade.

Além disso, nos momentos de ruptura institucional ou social, períodos de grande efervescência, os problemas mais gerais são amplamente debatidos e se propõe soluções para as questões mais candentes enfrentadas pelas classes e pelos grupos sociais. As classes dominantes reexaminam a história em busca de novos argumentos para defender a legitimidade de seu mando. Para as classes e setores sociais que a desafiam, o reexame da história é a tentativa de aprender com a experiência das gerações anteriores e, principalmente, identificar as leis mais gerais que regem a evolução da sociedade, cujo conhecimento possa permitir uma postura fértil e criadora •frente aos problemas do presente.

Antes da Independência já existia uma sólida bibliografia histórica sobre o Brasil, formada por crônicas, relatos de viajantes, e mesmo histórias desta parte do mundo. como aquelas notáveis escritas por Frei Vicente do Salvador ou por Sebastião da Rocha Pita. (Rodrigues, 1979)

Depois de 1822, os homens de pensamento enfrentaram a necessidade de construir valores nacionais, de afirmar a identidade da nação que começava a se organizar. A historiografia que então surgiu representava "deliberadamente a consciência histórica de um povo". (Janotti, 1977) Ela refletia, também, as forças sociais e políticas vitoriosas no processo da Independência, os grandes senhores de terras e escravos e a oligarquia mercantil e financeira sediada no Rio de Janeiro. Assim, o desfecho do processo da Independência condicionou a imagem de nação que aqueles autores elaboraram. Aquela elite conduziu a ruptura com a metrópole, derrotou os setores radicais, republicanos e democráticos, impôs a forma monárquica de governo e conseguiu manter a mudança ao nível político e institucional, sem tocar na estrutura social herdada da colônia, baseada na escravidão, no monopólio da posse da terra e na produção agrícola voltada para o mercado externo.

A instituição criada para desenhar a visão de Brasil adequada a estas necessidades foi o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, inaugurado em 1838; era largamente financiado por D. Pedro 11, que acompanhava de perto, e interessadamente, suas atividades. Seu principal papel foi unificar a visão do Brasil no interior das elites brasileiras num relato em que a nova nação se reconhecesse continuadora da "tarefa civilizatória iniciada pela colonização portuguesa". (Guimarães, 1988)

Era uma visão, portanto, elitista, excludente e racista. "Ao definir a Nação brasileira enquanto representante da idéia de civilização no Novo Mundo, esta mesma historiografia estará definindo aqueles que internamente ficarão excluídos deste projeto por não serem portadores da noção de civilização: índios e negros. O conceito de nação operado é eminentemente restrito aos brancos". (Guimarães, 1988) A história oficial elaborada pelo IHGB seria, diz o historiador Geraldo M. Coelho, "a história do Estado e a anti-história da nação". (Coelho, 1981) Nos quadros do IHGB estavam representadas as duas grandes correntes que iluminaram as visões de Brasil no século XIX – a dominante, liderada pela obra e ação de Francisco Adolfo de Varnhagen, e a corrente representada pela obra de João Francisco Lisboa.

Varnhagen foi o autor da História Geral do Brasil, de 1854, um verdadeiro monumento historiográfico, primeira obra do gênero escrita por um brasileiro, cujas grandes qualidades (principalmente a ênfase no documento, seguindo a escola alemã de Leopold von Ranke) somam-se a defeitos muitas vezes grosseiros, preconceitos de classe decorrentes do oficialismo deste escritor palaciano, apóstolo do colonialismo e da monarquia e apologista das virtudes da elite latifundiária e escravista, adversário implacável da democracia, do nacionalismo de origem popular e de todos os movimentos de contestação. Em nome da civilização ele louvou o massacre dos índios, justificou a escravidão dos africanos, comemorou a repressão sangrenta dos movimentos de rebeldia.

Varnhagen foi o campeão da elite oligárquica sendo o historiador dos interesses da monarquia, forma de governo que cristalizava o mando daquela. Em todas as circunstâncias, defendeu a Casa de Bragança e os imperadores Pedro I e Pedro 11. Para ele, o Brasil foi uma criação da Coroa Portuguesa: Portugal, escreveu na História geral, foi o "tutor europeu" que encaminhou os passos de nosso país "na infância de sua civilização". (Varnhagen, 1981)

Caracteristicamente, valorizou muito a luta dos pernambucanos contra a invasão holandesa, na segunda metade do século XVII. Viu na expulsão dos holandeses uma obra dos antepassados da mesma elite latifundiária e escravista que, transformada em classe dominante após 1822, elaborava os instrumentos políticos e institucionais de seu domínio, cuja legitimidade buscava fundamentar no passado histórico, transmitindo a idéia da continuidade de seu exercício através do tempo.
Outro mito de sua autoria é aquele segundo o qual a Independência foi pacífica, verdadeira doação do príncipe D. Pedro. Ao difundi-10, Varnhagen contrariou e minimizou a evidência histórica da guerra da Independência na Bahia e no Maranhão, onde participaram mais soldados do que nas lutas lideradas por Simon Bolívar! Aliás, a perspicácia do historiador João Capistrano de Abreu, já havia anotado, em 1878 que, para Varnhagen, a independência sem D. Pedro teria sido "ilegal, ilegítima, subversiva, digna da forca ou do fuzil". (Abreu, 1975a)

Varnhagen inaugurou no Brasil, diz José Honório Rodrigues, "o escrito histórico oficial, neutro, limitado e di vorciado do presente". Uma historiografia alienada, portanto. (Rodrigues, 1966) Conseqüente com a defesa da razão de Estado, da idéia de que a nação foi moldada pelos governantes, que lhe imprimiram as marcas da civilização e da cultura, sustentou ter sido a monarquia (com Pedro I à frente dela) que garantiu a integridade territorial brasileira após a independência.

Se José Honório tem razão em denunciar o oficialismo do texto de Varnhagen, é preciso reconhecer também que, em meio aos preconceitos de classe do historiador, e condicionado por eles, sua obra tinha também um sentido de nação, mesmo que limitado por seu monarquismo e elitismo. Varnhagen registrou essa ambigüidade em uma carta de 14 de julho de 1857 a seu protetor, D. Pedro II. Nela dizia-se empenhado em combater as "opiniões erradas" da multidão; pregar seus deveres, e não seus direitos; combater o "subversivo caboclismo" (caboclismo era o nacionalismo de origem popular). Ao lado disso, registra sua compreensão do caráter político e ideológico do relato histórico, visto como instrumento para forjar a identidade nacional. Foi com essa preocupação, diz, que escreveu um livro, em 1851, com biografias de "brasileiros de todas as províncias", para "ir assim enfeixando-as todas e fazendo bater os corações de umas províncias em favor dos das outras, infiltrando a todos nobres sentimentos de patriotismo de nação, único sentimento que é capaz de desterrar o provincialismo excessivo". Patriotismo, entretanto, sem "ódio à estrangeira Europa, que nos beneficia com ilustração"; tratou também, diz, de "por um dique a tanta declamação e servilismo à democracia; e procurei ir disciplinando produtivamente certas idéias soltas de nacionalidade". (Varnhagen, 1961)

A arte de escrever a história do Brasil nasceu, assim, cercada pelos preconceitos e interesses palacianos. Em sua idéia de nação sem lugar para o povo. Sem a memória das lutas contra a opressão colonial e pela república. Um exemplo de sua aversão aos movimentos de rebeldia é a caracterização que fez de Tiradentes na primeira edição da História geral: um conspirador "insignificante e indiscreto. a que o martírio do patíbulo conferira méritos que ele não tinha". Opinião que, devido às muitas críticas que recebeu, foi eliminada na segunda edição do livro, de 1877. (Rodrigues. 1988)

O principal representante da outra corrente de destaque no século XIX foi João Francisco Lisboa, um escritor, jornalista e historiador cujos pensamento e ação política resumem os limites e contradições do liberalismo brasileiro. Em contraposição a Varnhagen, Lisboa foi um escritor muito mais sensível e simpático às causas populares. Um de seus principais temas, nos Apontamentos para a história do Maranhão, é a vida e as lutas do povo, compreendido numa acepção ampla que inclui todos os moradores da colônia, independente de sua posição social. Ele procura analisar os moradores do país, como se ocupavam, quais eram seus interesses, condenando as "mesquinhas contendas" nas quais sangue, raça, local de nascimento ou profissão serviam de "injúrias com que os adversários se afrontavam e combatiam reciprocamente". (Lisboa, 1976)

Mesmo sendo monarquista, Lisboa era decididamente anticolonialista, outra oposição a Varnhagen. Entendia que a nação brasileira formou-se Na luta contra a opressão colonial, no confronto com a metrópole portuguesa, e é ao povo que se deve os progressos alcançados nesta parte do mundo, progresso encarado por ele como resultado da ação do homem e da providência divina: "Se, apesar de tudo, no seio de tantas misérias surgiu um povo que com tanta galhardia caminha aos seus altos destinos sob a direção de um príncipe esclarecido e feliz", isso se deve "não ao mérito dos colonizadores", mas "às leis eternas do aperfeiçoamento e progresso incessante da humanidade e ao favor visível da Providência". (Lisboa, 1976)

Outra divergência, profunda e significativa, com Varnhagen está registrada na "Nota C" dos Apontamentos, intitulada "Sobre a escravidão e a História Geral do Brasil, pelo Sr. Varnhagen", onde, condenando as guerras contra os índios e sua escravização, Lisboa diz que a ação dos colonizadores, cujo caráter sanguinariamente repressivo foi louvado por Varnhagen, deve receber um novo julgamento, onde a "condenação dos invasores é inevitável". (Lisboa, 1976)

Discordava também da opinião radicalmente contrária que o historiador oficial tinha dos movimentos de rebeldia. Como liberal, Lisboa justificou, em tese, as revoltas contra a opressão colonial e contra os excessos e abusos dos governos. Escrevendo sobre a revolta de Manoel Beckman, em 1684, no Maranhão, condenou a "cegueira" de muitos escritores e governos incapazes de ver "nas revoluções o resultado de causas gerais e da exasperação de um povo todo inteiro".

A coerência com essas idéias e as limitações de seu liberalismo aparecem em sua opinião sobre os derrotados da revolução Praieira, ocorrida em 1848, em Pernambuco. Ele defendeu os praieiros contra as arbitrariedades e a vingança dos vencedores e, discordando das idéias daqueles revolucionários, defendeu em nome da liberdade de expressão – seu direito de manifestá-Las e lutar por elas. Essa ambigüidade fica ainda mais nítida em sua posição sobre a Balaiada, revolução que uniu liberais, a plebe empobrecida, ex-escravos e negros aquilombados no Maranhão, em 1838. Lisboa fora um dos principais líderes do partido bem-te-vi, liberal, que deflagrou o movimento. Mas quando a revolta eclodiu, ele repudiou-a de público.

Astolfo Serra, principal historiador daquele movimento, diz que Lisboa pôs-se "ao lado de seus adversários", vendo a Balaiada como um "crime", embora provocado pelos abusos do governo. Como liberal, diz Serra, Lisboa podia combater "pelo povo, mas seria incapaz de fazer parte de qualquer revolta com o povo". Principalmente se ela envolvesse elementos das camadas mais pobres e subalternas, entre eles escravos e negros aquilombados. Quando os negros liderados por Cosme Bento aderiram ao levante, Lisboa alertou aos fazendeiros contra o capital representado pelos escravos pois estes – escreveu – "deixam de ser cancro que nos corrói lentamente para ser incêndio que nos devore num instante". (Serra, 1946)

Os temores desse liberalismo ambíguo e temeroso das massas não podiam ser expressos de forma mais clara. Como bom liberal, Lisboa defendia a idéia de revolução, mas temia seus excessos. Apesar disso, como notou José Veríssimo, Lisboa tinha "um sentimento brasileiro mais íntimo e perfeito que o de Varnhagen, muito maior sensibilidade artística e capacidade literária de expressão, e, também, compreendendo melhor do que nenhum de seus predecessores os aspectos sociais e psicológicos da história e a importância da participação do povo nela". (Veríssimo, 1969)

As obras de Varnhagen e Lisboa refletiram as teses, anseios, projetos e a ideologia das forças sociais que fizeram a independência e consolidaram, sob a monarquia, o poder das elites latifundiárias e escravistas.

Nas décadas de 1870 e 1880 a luta contra a monarquia e a escravidão se aprofundou e fortaleceu, ganhando a adesão de elementos das camadas médias que surgiam nas cidades, menos sujeitas ao poder direto e aos interesses dos potentados rurais. A historiografia representada pelo IHGB deixa então de "representar a evolução da consciência nacional". (Janotti, 1977) Surge uma nova geração, que assume o desafio de atualizar a compreensão do país e seu povo, formada por homens como Silvio Romero, João Capistrano de Abreu, João Ribeiro, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Manoel Bomfim, entre outros. (Ventura, 1991) A obra desta geração vai marcar o entendimento do Brasil até, pelo menos, a década de 1920, com ecos tardios nas teses defendidas por Oliveira Viana.

Inspirada pela ciência social de sua época, em autores franceses, alemães e ingleses, essa geração foi marcada pelo positivismo de Augusto Comte e Émile Littré, pelo evolucionismo de Charles Darwin, Emest Haeckel e Herbert Spencer, pelo sociologismo de Frédéric Le Play, pelo determinismo geográfico de Henri Thomas Buckle, pelo racismo de Joseph Arthur Gobineau e Georges V. de Lapouge. Em grande medida, esta ciência social que valorizava o europeu do norte e desprezava os povos morenos, os africanos e os asiáticos – particularmente o darwinismo social de Spencer e o racismo "científico" de Gobineau e Lapouge – mal escondia sua natureza de apologia do domínio de classe da burguesia e de legitimação da expansão imperialista sobre o planeta. Caráter que, já em 1905, era denunciado com argúcia pelo médico e historiador sergipano Manoel Bomfim, para quem seus praticantes eram "filósofos do massacre", cuja "teoria não passa de um sofisma abjeto do egoísmo humano, hipocritamente mascarado de ciência barata, e covardemente aplicado à exploração dos fracos pelos fortes". (Sussekind, 1984. Ver também Moura, 1976; e Nesturj,1976)

Mas a ciência dominante da época cobrou seu tributo, e um dos traços que marcam a visão de Brasil elaborada por essa geração deriva-se da compreensão da sociedade como um organismo vivo. A biologização da história aparece na obra de quase todos aqueles autores, sobrepondo-se às suas divergências de método ou de enfoque; em conseqüência, defenderam em graus variados as teses racistas que afirmavam a superioridade do homem branco. Na passagem do século XIX para o século XX estas teses racistas, que não foram alheias à geração anterior, tiveram a pretensão de constituir uma ciência, o racismo científico, com seu eugenismo, a pretensa superioridade do ariano e do seu tão valorizado dolicocéfalo louro, mitos que tanto ocuparam a mente dos pensadores brasileiros de então.

Os temas do debate histórico diversificavam-se. O republicanismo e as idéias liberais contrapunham-se ao crasso monarquismo do IHGB. O debate sobre a composição racial de nosso povo, do lugar que caberia aos ex-escravos após a abolição, a atribuição do atraso nacional à cor da pele mais escura predominante em nossa população e, em decorrência, o sonho do seu branqueamento como condição para o progresso; o reconhecimento da necessidade de olhar menos o litoral e mais para o sertão, para o interior do país – estas eram algumas das questões que povoavam aquelas cabeças.

A idéia da "força biológica da história" aparece já na História da Literatura Brasileira, de Silvio Romero, publicada inicialmente em 1888, definida como "a ação étnica, representada pelo sangue e pela língua". (Romero, 1980) Polemista arguto e perseverante, a visão que Silvio Romero tinha da história do país resumia bem as contradições de sua geração. Ele tinha uma compreensão evolucionista da história, influenciada pelo meio geográfico e pela raça. Essa visão mesclava-se à denúncia da opressão colonial e neocolonial e do latifúndio como obstáculos ao desenvolvimento da nação. A ruptura com Portugal, em 1822, foi vista por ele, na segunda edição, de 1901, como "um fato histórico de alcance quase nulo, não tendo havido aqui uma revolução que afogasse os velhos preconceitos", e que não tivemos nem na Independência, nem na República. Ele era taxativo: as "relações econômicas e sociais da Colônia e do Império ainda se achavam de pé; é tempo de destruí-Ias e abrir uma nova fase à vida e ao pensamento nacional". (Romero, 1980)

O primeiro escrito propriamente histórico que registra a nova visão é a História do Brasil, um compêndio para uso didático escrito por João Ribeiro, publicada em 1900. A obra mais marcante dessa época é Os sertões, de Euclides da Cunha, de 1902, apesar do principal historiador daquela geração ter sido João Capistrano de Abreu, uma espécie de continuador crítico de Varnhagen, cuja obra anotou minuciosamente, restabelecendo fontes e suprindo lacunas. Fiel ao espírito de seu tempo, a história para ele era um gênero literário e uma ciência, cujas linhas gerais eram dadas pelo positivismo, pelo evolucionismo, pelo determinismo geográfico e pela sociologia. Para ele, como para a maior parte dos autores de então, as sociedades se desenvolviam como os organismos vivos.

Em sua obra, diz a historiadora Alice P. Canabrava, a pesquisa empírica trouxe para o primeiro plano da historiografia "o povo propriamente dito, os segmentos populacionais que trabalham a terra, os que labutam nas tarefas artesanais ou nos afazeres do comércio". A "reconstrução histórica deixa de se prender exclusivamente à ação dos expoentes da estrutura político-administrativa", e em sua obra encontramos a presença daquilo que ele chamava povo comum. Sua obra reflete "uma nova visão do seu próprio mundo, a do Brasil republicano". Capistrano viveu "os anos de ruptura da unidade inteiriça do Império, refletida na História geral de Varnhagen", e coube-lhe delinear "um Brasil novo, que observava com a sensibilidade aguçada pelos instrumentos intelectuais, e tentar recriar o passado, à luz dessa dupla experiência". (Canabrava, 1980)

Apesar de valorizar a obra de Varnhagen, deixou claro seu ponto de vista oposto ao dele numa carta ao historiador português João Lúcio de Azevedo (16 de julho de 1920), onde diz: "a mim me preocupa o povo, durante três séculos capado e recapado, sangrado e ressangrado". (Abreu, 1977) A compreensão da trajetória desse povo pelo qual tinha tanta simpatia aparece nos temas que dominaram sua obra – o contraste entre o litoral e o sertão, a importância do estudo do povoamento e a valorização da mestiçagem étnica e cultural, o estudo da formação territorial do país, importância de estudar as populações que aqui habitavam, que ressalta ao estudar línguas indígenas para melhor compreender a geografia do país. Sua principal contribuição talvez tenha sido o minucioso trabalho de resgatar e examinar documentos, e mesmo descobrir a autoria de inúmeros deles (como, por exemplo, a de livros fundamentais como os Diálogos das grandezas do Brasil, de Ambrósio Fernandes Brandão, ou Cultura e opulência do Brasil, de André Antonil, pseudônimo do jesuíta João Antônio Andreoni), ou fazer publicar outros essenciais, como a História do Brasil, de Frei Vicente do Salvador, obra que dormiu durante dois séculos nos arquivos portugueses, até ser encontrada por historiadores brasileiros no século passado e finalmente publicada na íntegra por iniciativa de Capistrano de Abreu, em 1888.

Capistrano de Abreu deixou uma vasta obra de ensaios, prefácios, resenhas, estudos críticos, publicados esparçamente, além de três livros fundamentais, Caminhos antigos e povoamento do Brasil, onde investiga o esforço de conquista do território e seu povoamento; O descobrimento do Brasil, com o qual concorreu à vaga de professor de História do Brasil no Colégio Pedro lI, no Rio de Janeiro, em 1883, livro onde discute as pretensões estrangeiras sobre o país, e formula uma espécie de roteiro de seus temas preferidos, e cujo estudo aprofundaria nos anos seguintes (o litoral, o sertão, povoamento e população, e a população), e que seria uma espécie de roteiro que orientaria seus estudos nos anos seguintes, e Capítulos da história colonial, considerado por Nelson Werneck Sodré como "trabalho de consulta obrigatória", constituindo "a ossatura cronológica a ser preenchida pelas pesquisas de outra escala e, principalmente, de outro método".

Mas a obra mais popular e, com justiça, mais importante desse período, Com Os sertões, de Euclides da Cunha, o povo irrompe definitivamente no cenário da historio grafia brasileira
é Os sertões, de Euclides da Cunha, livro que resume, melhor que qualquer outro da época, as contradições e ambigüidades da concepção da história que se forjava, inspirada numa ciência européia pouco adequada para dar conta das realidades sociais, históricas e humanas que os autores brasileiros estudavam.

Republicano radical, formado na Escola Militar, sob influência direta do positivismo de Benjamin Constant, para Euclides da Cunha o caráter científico da história decorria da incorporação à análise das idéias das ciências sociais de sua época.

Assim, ele foi mais radical do que Capistrano de Abreu ao apoiar na geografia o estudo da história, inspirando-se diretamente na obra de Friedrich Ratzel, o grande geógrafo alemão do final do século XIX, um dos países da geopolítica (de cuja obra deriva, aliás, o próprio plano de Os sertões, com sua valorização do ambiente geográfico). Euclides aceitou também os preconceitos racistas vigentes, amparando no evolucionismo e no darwinismo social a crença na desigualdade entre as raças. Assim, o determinismo climático, geográfico e racial estavam na base de sua concepção de história.

Esta homenagem à ciência da época mal esconde, como mostrou Clóvis Moma, a contradição entre os sentimentos de um homem de espírito que viu seu povo em ação, sentimentos registrados nas Cadernetas de campo, e a reflexão do cientista que, sob influência das idéias de seu tempo, adjetivou esses homens como racialmente inferiores.

Mas o sentimento, mais forte que a reflexão, surge aqui e ali em Os sertões, em testemunhos notáveis do valor daquele sertanejo que era, antes de tudo, um forte. Euclides justificou a revolta liderada por Antônio Conselheiro dizendo que "o sertanejo defendia o lar invadido e nada mais". Registrou, com grande simpatia e admiração épica, a ação dos revoltosos: "No último dia de sua resistência inconcebível, como bem poucas idênticas na História, os seus últimos defensores, três ou quatro magros titãs famintos e andrajosos, iriam queimar os últimos cartuchos em cima de seis mil homens!". (Cunha, 1998)

Se Capistrano de Abreu tivera a sensibilidade de reconhecer a necessidade do estudo das populações do país, é em Os sertões que o povo vai irromper definitivamente no cenário da história brasileira e, com ele, a velha historiografia, voltada para a ação da elite, justificadora dos governos e da razão do Estado, voltada para o litoral, é definitivamente ultrapassada.

Na obra de Euclides da Cunha, diz José Honório Rodrigues, "os excessos científicos gastos pelo tempo e pela própria evolução científica" valem menos que "a simples e nua luta". Ele assinala, já em 1902, uma outra etapa em nossa historiografia, em que o ideal "era ver nossa história à luz de sua própria substância, a evolução do seu povo, sua solidariedade interna, a marcha de seu progresso, os obstáculos que desde a colônia se puseram às suas conquistas e seus triunfos, e o muito que ainda resta fazer". (Rodrigues, 1966) [Continua na próxima edição de Princípios]

*José Carlos Ruy é jornalista.

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EDIÇÃO 52, FEV/MAR/ABR, 1999, PÁGINAS 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43