A concentração de riqueza e a acentuação das desigualdades

Ano após ano os relatórios da ONU sobre o desenvolvimento humano são um inequívoco libelo acusatório ao sistema capitalista e à sua forma dominante – o neoliberalismo.

Ainda agora na recente reunião de setembro em Praga, do FMI e do Banco Mundial, onde normalmente uma prédica abstrata sobre a pobreza e as crescentes desigualdades é constantemente repetida, o presidente do Banco Mundial viu-se obrigado a fazer eco às grandes manifestações antiglobalização capitalista, afirmando que "atualmente, 20% da população mundial controlam 80% da economia global, e que em dez anos, os seus rendimentos duplicaram". E se decompuséssemos estes números veríamos ainda que, em relação aos 20% da população mundial, uma pequena percentagem concentra a maioria da riqueza e do patrimônio dessas sociedades continuando a acentuar-se em termos relativos às desigualdades sociais.

Mesmo aqueles que fazem o proselitismo do "modelo norte-americano" e que afirmam, com verdade, que o próximo presidente dos EUA herdará um país mais próspero do que há oito anos, não deixam de acrescentar: mais próspero mas também mais desigual e com mais contradições.
Um por cento dos norte-americanos detêm 38% da riqueza nacional, enquanto 80% não ultrapassam 17%.

A crescente centralização e concentração de capitais em nível mundial com a conseqüente polarização de riqueza é uma evidência. Como é uma evidência que a acumulação do capital e a exploração dos trabalhadores são dois processos interdependentes e inseparáveis.
Aumenta a economia especulativa. A espiral da economia de casino mundial, onde já se "especula com a especulação" (produtos derivados, cotações bolsistas ultravalorizadas, altas cotações de empresas praticamente falidas), engendrando novas contradições e perigos de novos colapsos devastadores.

Chegou-se a um estágio em que o anúncio de demissões massivas por parte de grandes multinacionais, inculcando a idéia ou ilusão de mais dividendos, é logo seguida de aumentos da cotação em bolsa das suas ações …

É a maximização do lucro que comanda a vida. É o cúmulo da irracionalidade e da incoerência. A admirar-se tal lógica teríamos então de concluir, como já disseram, que, – como o emprego depende do crescimento, o crescimento da competitividade e a competitividade da capacidade de suprimir empregos -, para se lutar contra o desemprego, nada melhor do que as demissões!

A ofensiva ideológica e a liquidação de conquistas em nome da competitividade
Mas se a constatação das injustiças, das contradições e da irracionalidade são incontornáveis, é verdade também que não faltam ideólogos bem remunerados a, por um lado, tentar demonstrar que não há alternativas ao capitalismo ("fim da história", "capitalismo fase terminal da evolução da humanidade") e, por outro, a procurar mostrar que este se pode "humanizar", que as conseqüências não são do sistema mas das suas falhas …

Os avanços do neoliberalismo, a livre circulação de capitais, a extensão da livre circulação de cada vez mais mercadorias e serviços, a integração dos países do Leste europeu no sistema têm criado um quadro qualitativamente novo, aumentando as reservas e a margem de manobra e de adaptação do capitalismo, exprimindo-se em duas direções:

1. As multinacionais passam por cima dos estados e vão liquidando, absorvendo ou submetendo as atividades produtivas nacionais autônomas mais rentáveis, as indústrias tradicionais e os ramos mais modernos. Transformam-se assim as economias nacionais em economias cada vez mais dependentes, "satelitizadas" e subsidiárias do capital estrangeiro e dos países mais desenvolvidos.

2. À medida que o neoliberalismo ganha terreno perante os estados, ao se derrubar as proteções às suas atividades e às suas indústrias nascentes, aumenta a chantagem da competitividade.

De fato, com a amputação de crescentes parcelas da soberania dos estados dos países com economias mais débeis e com a liquidação ou absorção das atividades nacionais mais rentáveis, estes países ficam cada vez mais dependentes do investimento estrangeiro, que por sua vez exige cada vez mais desregulamentação, "contenção" dos salários, liquidação de direitos e conquistas sociais e crescentes apoios dos governos, tudo em nome da competitividade, assente na diminuição dos custos unitários do trabalho.

Colocam os estados em "concorrência" quanto aos níveis de benefícios e apoios oferecidos. É o "quem dá mais". Se os apoios e benefícios não são suficientes, ou não há investimento, ou há deslocamento para outra "economia mais competitiva". Com esta pressão e chantagem a tendência é a liquidação de conquistas sociais e a nivelação por baixo, isto é, pelos estados com mais desregulamentação e onde os salários são mais baixos.

Mas esta ofensiva, é sempre embrulhada com uma intensa propaganda ideológica, tem encontrado a resistência, a ofensiva e a denúncia e a luta dos trabalhadores, dos sindicatos, do movimento popular e das forças revolucionárias e progressistas.

Para combater a resistência e a luta procura-se difundir a idéia de que com o avanço do livre cambismo (veja-se a argumentação da OMC; dos textos que serviram de suporte ao Acordo Multilateral de Investimentos, e à Cimeira de Seatlle; Davos; etc.) toda a humanidade ganhará, que a intensificação e extensão da "globalização" capitalista, facilitada também pelo desenvolvimento científico e técnico, é uma necessidade do desenvolvimento e uma fatalidade à qual é necessário os assalariados e as economias dependentes se "adaptarem". A "adaptação" continua a ser a palavra-chave!

E nesta mistificação a chamada "nova economia" é apontada como a única e a grande direção estratégica do desenvolvimento e é erigida como a grande tábua de salvação, dando-se como ilustração as elevadas cotações das bolsas – que, como também se sabe, aos primeiros sinais de crise não deixam de afundar.

Não se nega a importância das tecnologias da informação e da comunicação e as inovações e impulsos que estas introduzem em vários domínios – que não se resumem a um tratamento mais rápido e mais eficaz da informação. Mas o que se vê, novamente, é o retomo a um determinismo tecnológico, procurando ignorar as relações sociais e as contradições antagônicas do modo de produção capitalista.

E mesmo os que prevêem que as tecnologias da informação e da comunicação serão o eixo central do regime de acumulação do século XXI reconhecem que não têm qualquer base sólida para o afirmar. E salientam que os novos instrumentos financeiros e as novas tecnologias têm permitido uma especulação digna das mais espetaculares "bolhas" financeiras do passado.
Aprofundar a análise

As novas realidades e as mudanças no desenvolvimento do capitalismo, facilitado pela livre circulação de capitais e impulsionado pelas novas tecnologias; os novos aspectos da exploração e da dominação; as mutações que estão a operar-se no Estado nacional e no poder capitalista em geral; a corrupção e as cadeias dos tráficos e do crime organizado exigem o aprofundamento da análise e da investigação em cooperação com as diversas forças revolucionárias e progressistas. Cooperação também cada vez mais exigida no desmascaramento das linhas ideológicas que procuram estabelecer a "globalização capitalista" como inevitável, sem alternativa e a apresentar o capitalismo desacreditado, com um novo rosto; com um "rosto humano"!

É assim que, para se responder ao descrédito do capitalismo, se relança sobre diversas formas e nomes, o chamado capitalismo popular, agora rebatizado e teorizado por alguns, como "capitalismo de partilha" ou de distribuição.

O "pivô" dessa teoria é o acionista assalariado, como instrumento do "novo contrato social". Com o chamariz de um complemento de rendimentos e a "conversa" de uma partilha mais equilibrada das riquezas criadas, se pretende criar uma maior dependência dos assalariados à sorte da empresa dando-lhes a ilusão de pertença a ela. É um projeto de integração dos trabalhadores à rentabilidade financeira e à economia de casino, facilitando-se, inclusivamente pelo seu endividamento e recurso ao crédito, a compra de ações. a que se pretende é claro: se há "capitalismo de partilha" há também a partilha dos riscos à custa dos assalariados …

E há até quem afirme que com a internet qualquer pessoa pode tornar-se um capitalista individual em que uma parte da sua remuneração é obtida através da sua carteira de ações. O empregado "sentir-se-á mais acionista do que assalariado!". O que não conseguem é disfarçar as mistificações alienatórias, a exploração e seus resultados práticos: a cada vez maior concentração da riqueza.
A irracionalidade do sistema, do tudo à competitividade e ao produtivismo na mira do máximo lucro tem a sua tradução nos desastres ecológicos, nos desastres alimentares (como é o caso das "vacas loucas"), em que um recente relatório oficial na Inglaterra denuncia dez anos de mentiras, de manipulação da opinião pública em proveito da indústria agro-alimentar. E não é só na Inglaterra. Leia-se o relatório que o PCP apresentou na Assembléia da República sobre esse assunto.
Combater a "nova ordem"

No limiar do novo milênio, as contradições entre as possibilidades libertadas pelo desenvolvimento das forças produtivas, pela conquista das ciências – de que é expressão a recente identificação das seqüências do DNA humano – e a situação em que se encontra uma boa parte da humanidade: os dramas da América Latina, da África, da generalidade dos países do Terceiro Mundo, a corrida aos armamentos, os flagelos da droga e da Aids, a "ameaça para a saúde de todos os humanos" como hoje se referem destacados membros da comunidade científica relativamente ao vírus Ebola que reaparece em Uganda e que pode se transformar em epidemia; exige também dos comunistas e de todas as forças progressistas a luta e uma cada vez maior cooperação, convergência de ações por um rumo diferente da marcha da humanidade.

E isto sem subestimar que continuam a pesar negativamente na correlação de forças em nível internacional e no poder de atração do projeto de uma nova sociedade, as derrotas do socialismo no Leste europeu, provocadas por deformações, erros, desvios, substituição da ação política por medidas repressivas, orientações e ações que se traduziram num "modelo" que não correspondia nem corresponde aos ideais do comunismo – como já há dez anos analisamos e declaramos, embora muitos fora do Partido, e alguns de dentro, falem por vezes como se só tivéssemos falado assim desde há uns meses ou que nunca tivéssemos mesmo dito nada.

A implosão da URSS e do "sistema socialista mundial" alterou profundamente a correlação de forças em nível mundial, abriu novos mercados à expansão do capitalismo e permitiu novas ofensivas do imperialismo.

A "globalização" econômica capitalista que constituiu de fato o traço dominante desta época tem se completado por um projeto estratégico global em matéria de "segurança", que garante pelas armas a "nova ordem".

A guerra de agressão à Iugoslávia é um exemplo claro no processo de militarização e de intervencionismo e foi também o pretexto que os EUA utilizaram para a rápida adoção do novo conceito estratégico da OTAN, alargando a área da sua intervenção e afirmando-o claramente ofensivo no quadro da imposição da "nova ordem" que facilite a política de exploração e opressão do grande capital.
E neste quadro a ideologia da globalização, a ideologia do "pensamento único" assente no neoliberalismo (privatizações, menos Estado, competitividade, livre cambismo, desregulamentação) é apresentada como a que indica o caminho capaz de resolver os problemas do desenvolvimento de cada país e da humanidade.

Uma das suas grandes direções é o clássico "menos Estado" para o povo, "mais Estado" para o capital, reduzindo, liquidando e privatizando suas funções sociais, aumentando as posições coercivas, limitação de direitos e conquistas, anulação de condições indispensáveis para a prática de uma cidadania ativa e participativa.

A solidariedade recíproca

É nesta correlação de forças que se desenvolve a ação e a intervenção e a luta dos trabalhadores, dos povos, por um mundo mais humano e menos desigual. E que se processa a luta e a resistência dos trabalhadores e dos povos, das forças revolucionárias e progressistas, procurando acumular forças, defendendo conquistas e a soberania como é o caso de Cuba, ou conseguindo mesmo importantes vitórias como foi o caso de Timor-Leste sobre ocupante indonésio.

O PCP orgulha-se de, no quadro das suas forças, não ter faltado com sua solidariedade ativa às diversas lutas dos trabalhadores e dos povos e expressa-se neste momento ao martirizado povo da Palestina. O nosso XVI Congresso é também uma expressão de cooperação da solidariedade recíproca com os partidos comunistas, forças progressistas, com os trabalhadores e o movimento operário, que daqui saudamos fraternalmente, assim como as delegações estrangeiras aqui presentes.

É dever dos comunistas e dos revolucionários ampliar a dimensão internacional e internacionalista da sua intervenção e procurar alcançar ações comuns ou convergentes em tomo de objetivos concretos de luta e também na luta mais geral contra a "globalização" da exploração e da pobreza impulsionada pelas tecnologias da comunicação e informação e comandada pelas transnacionais.

É uma realidade que o capitalismo continua a revelar uma assinalável capacidade de adaptação, dissimulação e recuperação, mas também é uma evidência que dez anos após as derrotas das tentativas de construção do socialismo no Leste europeu, o capitalismo continua a não anular as suas contradições internas, a condenar milhões de seres humanos à pobreza e a uma vida indigna e a alterar gravemente os equilíbrios ambientais.

Os avanços libertadores que se verificam no século XX são inseparáveis do pensamento criador e da ação revolucionária dos comunistas. A luta pelo aprofundamento da democracia em todas as suas vertentes, a luta pela transformação social e a luta para que no século XXI o socialismo triunfe sobre o capitalismo e suas chagas sociais é a grande tarefa que se coloca aos comunistas.

Carlos Carvalhas é secretário geral do PCP.

EDIÇÃO 60, FEV/MAR/ABR, 2001, PÁGINAS 16, 17, 18, 19