Embora o Brasil tenha sido colonizado pelos portugueses, à cultura dos colonizadores somaram-se aqui outras, a indígena e a negra. A partir daí, o português da Colônia foi seguindo seu próprio rumo, distanciando-se e, por conseguinte, diferenciando-se cada vez mais do português da Metrópole. Como acontece em todo processo de colonização, a língua portuguesa saiu vitoriosa sobre as línguas nativas existentes antes do Descobrimento, porém não foi pelos seus próprios méritos.

De longa data, estadistas perceberam (ou intuíram?) a importância da língua como símbolo não só da identidade cultural, mas também da soberania nacional. Do sem-número de exemplos corroboradores dessa assertiva, vale aqui reportar apenas um. No Brasil-Colônia, a par da língua portuguesa havia se estabelecido a língua geral (mistura de tupi com português), a qual com certeza deveria ameaçar o domínio econômico-cultural dos então colonizadores. Por isso, em 1757, o Marquês do Pombal, em defesa do português, decretou a proibição do ensino da língua geral nas escolas. Tal decreto, passados mais de duzentos anos, reflete-se até hoje, e foi inquestionavelmente decisivo para a preservação do português como língua oficial do País.

Logo, ao contrário do que poderia parecer, a idéia do projeto é revolucionária, pois defende a um só tempo a língua materna e a cultura brasileira, numa época de intensa globalização, com suas conseqüentes invasão cultural e descaracterização dos nossos hábitos e costumes, o que pode ser interpretado como neocolonialismo.

Lamentavelmente, os detratores desse projeto pensam de modo equivocado que, a partir da sua aprovação, não se poderá mais dizer ou escrever, por exemplo, futebol, mas sim a palavra totalmente ridícula ludopédio. As incompreensões e as críticas ao projeto revelam, no mínimo, três possibilidades: tais pessoas não leram o projeto, têm um total desconhecimento da história da língua portuguesa ou introjetaram outra(s) cultura(s).

Antes de aportar ao Brasil, em 1500, a língua portuguesa, de base predominante latina, já havia recebido inúmeras contribuições lexicais de invasores mouros, celtas, suevos, godos, visigodos, entre outros. Aqui, enriqueceu-se, inicialmente, com contribuições provenientes dos dialetos africanos e das línguas indígenas; e, posteriormente, do francês, do italiano, do japonês, do inglês e de uma infinidade de outras.

Uma rápida consulta a um dicionário etimológico ou mesmo lexical revela que, na língua portuguesa, existem centenas de vocábulos, provenientes de tantas línguas, que seria quase impossível de nomear, neste espaço, todas. Nas centenas de milhares de cidades pelo Brasil afora, os falantes do português a despeito das variações lingüísticas sócio-culturais, regionais e individuais são compreendidos e compreendem o que lhes falam; em suma, comunicam-se em língua portuguesa. A língua, qualquer uma e não só a portuguesa, constitui um fator básico de congraçamento e, portanto, de coesão social e cultural, entre os membros de uma mesma comunidade de falantes.

Dito isso, cumpre salientar que, se não possuírem correspondência e/ou equivalência na língua portuguesa, os estrangeirismos as contribuições lexicais de outras línguas são muito bem-vindos, pois só tendem a enriquecer o nosso léxico. No entanto, o ideal seria aportuguesar-lhes tanto a grafia quanto a pronúncia, para se acomodarem à nossa realidade lingüístico-cultural. Por exemplo, já está devidamente aportuguesada e dicionarizada a palavra estresse. A partir dela, por derivação (processo de formação de palavras que representa uma economia lingüística), duas outras palavras foram criadas: o verbo estressar e o particípio-adjetivo estressado. Entretanto, alguns usuários da língua insistem em grafá-la à moda inglesa, sem os ee inicial e final, apesar de grafarem suas derivadas com o e inicial e os respectivos sufixos da língua portuguesa.

Em contrapartida, caso possuam correspondência e/ou equivalência na língua portuguesa, os estrangeirismos são não somente lesivos ao patrimônio lingüístico-cultural brasileiro, como também empobrecedores do nosso léxico, porque vão paulatina e sub-repticiamente solapando-o e fazendo cair em desuso termos e expressões genuína e tipicamente nacionais. Para que usar sale, site, personal banking, deletar, fast food, além de inúmeras outras palavras, se existem no nosso vernáculo termos correspondentes?

Falar em equivalência ou correspondência significa dizer equivalência sêmica, ou seja, a presença de absoluta correlação entre os semas as menores unidades portadoras de significado que compõem as palavras, no caso, estrangeiras e brasileiras. Assim existe absoluta correspondência entre coffee e café; entre sale e liquidação. Para exemplificar melhor a correlação sêmica, cumpre lembrar a palavra saudade. Esta encerra determinados semas que a tornam única no mundo, não possui sinônimo correspondente dentro da própria língua portuguesa e também é intraduzível em qualquer outro idioma.

Tendo em vista isso dicionários de línguas estrangeiras registram-na, assim como apresentam também outras palavras tipicamente brasileiras. Por exemplo, o Petit Robert, importante dicionário da França, registra, entre outras, samba (embora proveniente do africano) e bossa-nova, como termos e expressões brasileiros.

Diante do exposto, o Projeto de Lei nº 1676 é constitucional e tem como meta prioritária fazer respeitar e cumprir o disposto na Carta Magna quanto à língua portuguesa. Trata-se de proteger nossa língua da vertiginosa e estonteante escalada de termos, ou de expressões, alheios à nossa pátria e à nossa gente. Defende, portanto, a preservação de um dos nossos maiores bens culturais: a língua portuguesa. Visa ainda coibir o uso exacerbado e desnecessário de estrangeirismos. Inteligível somente a poucos iniciados, qualquer estrangeirismo desnecessário faz com que pessoas, possuidoras de razoável nível de conhecimentos, sintam-se analfabetas e, em conseqüência, excluídas da ampla e irrestrita comunicação. O que dizer então dos verdadeiramente analfabetos e dos analfabetos funcionais?

Somos, de longa data, favoráveis à criação em âmbito nacional, a exemplo de conselhos congêneres, de um Conselho Nacional Pró-Língua Portuguesa, sob a responsabilidade da Academia Brasileira de Letras. O objetivo precípuo desse Conselho, a ser integrado por pessoas de notório saber em português, consistiria na preservação e na defesa da língua. Quando do ingresso de estrangeirismos ou da necessidade de criar palavras para nomear novas realidades, inventos e/ou descobertas, tais conselheiros sugeririam ou abonariam termos e expressões, orientando cidadãos para o uso de terminologia de língua portuguesa. Caso tal Conselho já existisse, quando do advento da Informática no Brasil, com certeza já haveria uma terminologia mais afeita à nossa realidade lingüística e cultural.

É preciso aqui deixar bem claro que não se trata de xenofobia. O inglês, o francês e qualquer outra língua devem certamente ser estudados no Brasil, porém na qualidade de segunda língua. Antes de possuir fluência em inglês, o brasileiro deve ter fluência em português. Aprender bem a língua materna é o mais imorredouro bem imaterial. Quem souber se expressar bem, tanto na escrita quanto na fala em sua língua materna, terá facilidades em aprender qualquer outra. Em outras palavras, ao conhecer bem a língua materna, todo falante nativo aprenderá mais facilmente línguas estrangeiras, as quais lhe virão de acréscimo. Se, por exemplo, o usuário lingüístico não souber ou não entender o que é em português um aposto, ou um vocativo, como o saberá em outra língua? A experiência de longos anos no magistério de língua portuguesa, principalmente de nível superior, demonstra que um número cada vez mais crescente de falantes nativos possui muitas vezes fluência em outro idioma; porém, ao redigirem na própria língua materna, não conseguem concatenar idéias ou não conseguem elaborar um texto minimamente compreensível.

Por detrás da enxurrada de estrangeirismos, oculta-se uma face muito mais insidiosa da globalização: a dominação cultural, talvez a pior forma de neocolonialismo, porque se infiltra nas crenças, nos valores e até nas atitudes das pessoas, modificando-os. Aliás, parece haver, em alguns brasileiros, um enorme sentimento de inferioridade: tudo que vem de fora, principalmente do Primeiro Mundo, é bom e desejável (será verdade?); e tudo aqui produzido é ruim e indesejável (será?). Ora, tais indivíduos, sem sombra de dúvida, foram aculturados, ou seja, culturalmente colonizados; pois quem aceita a dominação cultural predispõe-se a ser colonizado, incorporando consciente ou inconscientemente a cultura do colonizador. É o que o brasileiríssimo Darcy Ribeiro chamou de “alienação cultural, que consiste na introjeção espontânea ou induzida em um povo da consciência e da ideologia de outrem, correspondente a uma realidade que lhe é estranha e a interesses opostos aos seus”.

Em conclusão, por seu arrojado projeto, o deputado Aldo Rebelo merece os efusivos aplausos de todos os verdadeiramente Brasileiros (com B maiúsculo). Agora, só nos resta esperar e torcer pela aprovação do projeto pelo Senado Federal e pela sanção do Presidente da República. Caso aprovado e sancionado esse projeto representará não só o triunfo da legalidade contra as forças obscurantistas e alienígenas, mas também a resistência ao neocolonialismo, à dominação cultural e, conseqüentemente, à alienação cultural. Enfim, será com toda certeza uma vitória de todos os cidadãos deste imenso País.

Lucie Didio é professora de Língua Portuguesa na Universidade de Brasília (UnB).

EDIÇÃO 61, Mai/Jun/Jul, 2001, PÁGINAS 66, 67, 68