Pontos fundamentais do programa de reconstrução nacional
A economia mundial desacelera-se e a crise argentina se arrasta e se complica produzindo forte efeito sobre o Brasil que se tornou mais vulnerável às freqüentes turbulências financeiras internacionais. A crise energética provocou a volta à recessão e revelou mais um grande desastre produzido pelo modelo dominante – o sucateamento de toda a infra-estrutura do país. A crise atual brasileira desdobra-se por todos os terrenos. Ela é multiforme, sendo pior que as precedentes, segundo até mesmo enquete realizada entre empresários. O índice de credibilidade no governo despenca, e o país vai se tornando ingovernável. O Brasil se enreda ainda mais num círculo vicioso infernal de maior elevação dos juros, maior crescimento da dívida pública, mais corte de despesas e de financiamento para conseguir intempestivamente mais um pesado e custoso superávit primário. Em decorrência a marcha recessiva volta a prevalecer e a elevar o desemprego. A crise cambial adquire um ritmo persistente de desvalorização do Real. O curso da situação presente toma contornos de insustentabilidade e o país vai vivendo uma anormalidade crônica. A fim de tranqüilizar o grande capital internacional, o governo volta ao FMI, para reeditar novo acordo elaborado com cláusulas mais restritivas, mesmo não tendo cessado a vigência do concertado em 1998.
Esse quadro em agravamento acirra a crise política que produz tensões e diferenciações nas forças governistas e também na oposição. Torna-se mais evidente a politicagem, a corrupção e a fraude praticadas pelo Planalto e por suas forças de sustentação. A opinião pública exige a apuração do descalabro e das irregularidades praticadas pelos representantes do poder central. O Senado e a Câmara dos Deputados paralisam-se envoltos numa atividade permanente de CPIs e da Comissão de Ética. Diante da gravidade da evolução político-econômica e social é inevitável que cresça a resistência popular à política governamental e se estenda o movimento oposicionista.
A situação brasileira atual é marcada pelo caminho percorrido pelos dois governos de Fernando Henrique, o qual está determinado por crises, instabilidade, autoritarismo, corrupção, injustiça e, em última instância, pelo agravamento dos problemas estruturais do país. A nação brasileira vem sendo desestruturada, desmontou-se o Estado nacional, e chegamos a uma sociedade ainda mais pobre, desigual e deformada. Estancou-se o desenvolvimento, e mobilidade, que caracterizou nossa sociedade no século XX e a nação está cada vez mais dependente. Um sistema de dívidas que se agigantou comprova a verdadeira fragilidade dos fundamentos do modelo dominante. Nesse sentido, demonstrando a grave precariedade estrutural da economia, o déficit acumulado das contas externas do país atingirá 210 bilhões de dólares até o final do próximo ano.
As políticas liberalizantes que vêm sendo aplicadas pelo governo FHC revelam-se um fracasso como artífice do crescimento sustentado e, mais precisamente, como estratégia de desenvolvimento. Em quase um século o Brasil cresceu 5% em média ao ano. Nos dois governos de Fernando Henrique essa média cai pela metade. Pressionado pelos centros capitalistas mundiais, sobretudo os Estados Unidos, o governo federal adota uma estratégia e uma política submetidas à ordem mundial imperialista. A elite dominante brasileira pactua com a oligarquia financeira internacional o destino da nação, oferecendo ativos compensatórios, desde títulos da dívida pública de curto prazo a empresas e bancos estatais e privados rentáveis. Desde final de 1998 o FMI e o Tesouro norte-americano passaram a ter o controle da economia brasileira. E para oferecer garantias a essas instituições de fora, o governo mudou as leis a fim de que o elevado superávit a ser gerado para pagar juros e tentar manter a pesada dívida sob controle se tornasse uma cláusula acima de todas as outras nos orçamentos públicos.
Como resultante do surto liberalizante a sociedade brasileira tornou-se mais desigual e sofreu profundas deformações. Cresceu o poder da oligarquia financeira internacional no país, acentuando a estratificação interna da burguesia local por um lado e, por outro, produzindo progressiva depauperização dos trabalhadores da cidade e do campo e a marginalização de parcelas maiores da população. A crise social assume grande dimensão. A taxa de desemprego dobrou (mesmo considerando-se os índices do IBGE) e, hoje, 54% da População Economicamente Ativa (PEA) integram o mercado de trabalho informal. A renda média dos assalariados caiu. A população considerada indigente passa dos 50 milhões. As revoltas das camadas marginalizadas se sucedem num ritmo crescente nas favelas, periferias das cidades e nos presídios. Nas regiões do Nordeste atingidas pela seca a população é levada a realizar saques a armazéns na busca desesperada por alimento. A criminalidade e os assassinatos atingiram níveis alarmantes nas cidades, semelhantes a um cenário de guerra civil. A gravidade da situação social se manifesta no próprio aparato policial, irrompendo por todo país sublevações das policias militar e civil, por melhores salários, transformando capitais de estados em verdadeiras cidadelas sitiadas.
No caminho perseguido pela elite dominante brasileira a partir do início da década de 90, e sobretudo após a vigência do governo de Fernando Henrique, excluiu-se do horizonte qualquer perspectiva de projeto nacional e de desenvolvimento autônomo. Depois da etapa inicial de implantação do projeto neoliberal no país – o chamado consenso de Washington –, com a adoção da abertura, liberalização e “reformas” estruturais, sobrevem agora, o que podemos denominar a etapa do Consenso da Alca. Desse modo, a Alca significa a continuação de um grande plano de domínio das Américas, pelos Estados Unidos, com objetivos políticos, econômicos e militares de longo alcance, que visam apressar e consolidar o processo de dependência do país. Então, o Brasil se depara ostensivamente com a ameaça de neocolonização.
O Partido Comunista do Brasil tem como objetivo programático a conquista de um governo capaz de iniciar o processo de transição do capitalismo ao socialismo. Entretanto, na atualidade, a fim de se contrapor a essa investida recolonizadora e mudar o rumo imposto ao país, conduzido pelo atual pacto político dominante, o PCdoB tem afirmado que tal situação implica na necessidade incontornável da formação de uma ampla frente partidária e de um extenso movimento cívico – centrados nas correntes de esquerda, e capaz de unir a maioria da nação brasileira em torno de um programa de reconstrução nacional, de ampliação democrática e de defesa dos interesses populares. Portanto, trata-se de uma ruptura com o atual modelo e aplicação de um programa distinto, focado na reestruturação nacional, o qual somente se concretizará com a vitória de um novo governo democrático, constituído pelas correntes de oposição à política neoliberal, baseado nas forças populares. É evidente que o país, devido às suas dimensões, grande concentração de recursos naturais, e sendo uma grande nação com uma economia extensa e diversificada, reúne vasto potencial para um desenvolvimento próprio, sem cair evidentemente numa posição autárquica, podendo assim se desgarrar de sua atual posição subalterna. O Brasil pode sim aspirar a um rumo próprio e autônomo.
A batalha sucessória de 2002 se insere nesse embate, onde duas tendências fundamentais estão em luta: uma definida pelo anseio e a visão da defesa do desenvolvimento nacional e pelas aspirações democráticas e populares e, outra, definida no projeto em curso – desnacionalizante, autoritário e anti-social. O próximo pleito nacional representa uma possibilidade incomum de se derrotar o neoliberalismo e começar a inverter os rumos do país.
As correntes oposicionistas estão colocadas diante do desafio de buscar um novo rumo para o Brasil, tendo em vista responder ao crescente anseio da maioria da sociedade que clama por mudança. A resposta a esse clamor mudancista ganha mais força através de uma solução compreendida pela mais ampla unidade das tendências patrióticas, democráticas e populares. Por isso, o PCdoB tem reafirmado a necessidade imperativa de compor amplas forças, com base na união das correntes avançadas, mas acrescida de outros setores oposicionistas ao governo FHC.
O Partido não definiu ainda uma candidatura presidencial. Batemo-nos pelo propósito de elaborar uma plataforma mínima de ruptura, de nitidez oposicionista, com o atual modelo, e forjar a unidade das candidaturas de oposição em torno das bandeiras lançadas pelo Manifesto unitário de 1999, Em defesa do Brasil, da democracia e do trabalho. Dessa maneira, preparar o caminho para a unidade e vitória oposicionista nas eleições gerais de 2002. Nesse sentido, o PCdoB propõe seis pontos determinados para discussão que são divisores com o projeto dominante vigorante e podem estabelecer os marcos de um novo caminho:
1 – Avulta a idéia de desmascarar os propósitos da Alca, determinados pelos Estados Unidos. Nas condições da ordem mundial atual deve se rejeitar o plano Alca, novo “consenso” gestado pela potência hegemônica, que pretende transformar o Brasil em zona livre do capital transnacional e de domínio norte-americano, levando o país à condição de nova colônia. Hoje, não existe uma Alca vantajosa para o Brasil. O fortalecimento e extensão do Mercosul, e sua diversificação comercial com os diversos centros econômicos mundiais, tendo em conta os legítimos interesses dos povos dessa região sul-americana, correspondem mais aos verdadeiros objetivos nacionais, que requerem um desenvolvimento autônomo e sustentado;
2 – A privatização de empresas estratégicas para o desenvolvimento e a soberania nacionais, o sucateamento da infra-estrutura do país, manifestado no desmonte do complexo energético, perpetrados pela ação governamental, requerem uma firme posição contrária a qualquer privatização das grandes hidrelétricas e revisão das privatizações realizadas, tendo como objetivo o restabelecimento e atualização do sistema elétrico nacional. Essa é condição básica para o novo projeto de desenvolvimento;
3 – Os acordos estabelecidos com o FMI a partir de 1998, e as normas aceitas pelo Brasil na sua adesão à OMC (Organização Mundial de Comércio), foram celebrados na perspectiva da orientação liberalizante, negando a função do Estado nacional como artífice do desenvolvimento autônomo, chegando até mesmo a considerar o investimento estatal básico, na rubrica das despesas públicas; sendo por isso proibido. A luta pela construção de um rumo que garanta a independência do Brasil, exige a denúncia dos acordos firmados com o FMI e demanda a revisão de regras impostas no âmbito da OMC, lesivas aos interesses do país;
4 – A orientação seguida pelo governo FHC afundou o Brasil ao nível de dívidas gigantescas, multiplicando o valor das dívidas externa e interna, dobrando o passivo externo do país, elevando crescentemente o déficit nas contas externas, tornando a economia nacional altamente vulnerável e mais dependente. A retomada do desenvolvimento em grande escala requer uma nova postura visando à formação de elevada poupança interna e de novas prioridades e mecanismos de crédito. Portanto, a elucidação desse pesado contencioso e a sua resolução passa pela necessidade de uma auditoria e renegociação soberana das dívidas, garantindo a retomada do desenvolvimento e salvaguardando os direitos dos trabalhadores – “não pagar a dívida com a fome do povo”.
5 – Na atualidade em conseqüência da predominância de políticas sociais e trabalhistas regressivas, acentua-se a exigência do cumprimento de um direito humano básico: o trabalho para todo cidadão apto. A resposta a esse grave problema produzido pelo capitalismo contemporâneo, sem dúvida, está na questão essencial da retomada do desenvolvimento econômico em elevado ritmo. Mas, ao mesmo tempo, em virtude do crescimento da produtividade, com o incessante advento das técnicas modernas, a possibilidade de se ampliar os postos de trabalho reside na diminuição da jornada de trabalho, garantido-se o mesmo salário. A defesa de uma jornada de trabalho de 40 horas semanais e mais adiante de 35 horas é justa e condiz com o estágio do desenvolvimento econômico brasileiro e propiciaria a multiplicação de novos postos de trabalho, tendo presente enfrentar esse grave problema econômico-social.
6 – A questão democrática se insere dentre os fundamentos de um novo programa de reconstrução nacional. Com o inexorável processo de concentração e centralização do capital e da riqueza levado a cabo pelo capitalismo de nossos dias, este sistema vai se tornando mais antidemocrático em toda sua história. Um novo programa democrático tem de começar a edificar um modo de universalidade, que garanta o acesso igual a todos, à saúde, educação, moradia e terra para quem nela queira trabalhar; e recomposição do salário mínimo. Entretanto, compõe sobretudo a luta democrática, o alcance da mais ampla liberdade política pela maioria da população. A reforma política defendida pelo governo tem uma natureza fortemente autoritária, antiplural e antidemocrática, encontrando justas resistências até da própria base política governamental. Essa reforma procura impedir a representação parlamentar dos pequenos e até dos médios partidos. O PCdoB reafirma sua posição em defesa do sistema de eleição proporcional e do financiamento público das campanhas eleitorais, por serem mais democráticos. É contrario à volta do entulho autoritário ou da cópia de modelos elitistas de fora, expressos no sistema do voto distrital misto, na cláusula de barreira e na proibição das coligações nas eleições parlamentares.
7 – O governo de reconstrução nacional convocará uma Assembléia Nacional Constituinte que expresse um novo pacto político e social, preservando a soberania do país, ampliando a democracia.
A par do esforço de compor amplas forças políticas contrárias à política neoliberal, a situação atual reclama a crescente unidade e intervenção política do movimento oposicionista popular, em pequenas ou grandes manifestações, exigindo um novo governo, democrático, de reconstrução nacional e que atenda aos anseios populares, denunciando as privatizações em curso e a corrupção, instando o povo a desmascarar o modelo neoliberal e infundindo confiança em que é possível outro rumo para o Brasil.
Renato Rabelo é vice-presidente do PCdoB.
EDIÇÃO 62, AGO/SET/OUT, 2001, PÁGINAS 7, 8, 9