A violenta crise que ainda vive a Argentina não significa o fim do Mercosul e muito menos da Argentina. Esta crise já a libertou de um arcaico e engessante regime cambial e poderá ser a oportunidade de ela se desvencilhar da política de alinhamento político incondicional e do programa econômico concentrador e excludente patrocinado pelo FMI/EUA e assim reparar as ruínas sociais, econômicas e políticas, causadas por tal programa, executado por pró-cônsules nativos.

É cada vez mais urgente repensar o Mercosul para além da reconstrução argentina, a partir de uma reflexão sobre as estratégias que possam retirá-lo do marasmo e do pântano de ressentimentos que se tornou. A crise – que antes do acelerar da crise argentina –, já atingia o Mercosul é apenas um reflexo das crises vividas pelos países do Cone Sul. O lento crescimento da economia regional, a retração do comércio intra-zonal, a profunda crise política e econômica na Argentina, a estagnação brasileira e os esforços frustrados de gerar superávits significativos, o desemprego e o deslocamento de setores industriais tendem a se agravar com a recessão sincrônica mundial e com as conseqüências inibidoras dos atentados de setembro.

Mesmo antes da crise atual argentina, a situação econômica interna dos países do Mercosul já havia levado à crise econômica do Mercosul que, por sua vez, fez ressuscitar e continua a estimular as rivalidades históricas de toda ordem. E coloca o projeto de integração regional sob grave risco, enfraquece o Cone Sul e sua capacidade de contribuir para organizar politicamente a periferia sul-americana diante da ação das estruturas hegemônicas de poder.

Ao Brasil e à Argentina, todavia, continua a interessar a construção de um bloco econômico, político e militar que, fortalecendo sua estrutura econômica, permita a participação, em médio prazo, dos dois países no sistema internacional em grau de igualdade com estados de semelhante potencial demográfico e territorial. Este objetivo somente será possível de se atingir abandonando-se a visão neoliberal do funcionamento da economia mundial e da economia nacional e restaurando-se a idéia-força do desenvolvimento com base no mercado interno, isto é, no pleno emprego dos fatores nacionais de produção e na geração e absorção de tecnologias adequadas à constelação de fatores dos dois países e do Cone Sul.

As estratégias que vêm sendo sugeridas para enfrentar a crise do Mercosul são de difícil execução em prazo adequado; algumas são inviáveis e outras podem até agravar a crise.

A tentativa de organizar agências supranacionais e mecanismos efetivos de solução de controvérsias não resolve a crise do Mercosul e até a agrava. Apesar de a criação de agências supranacionais, ou de mecanismos de solução de controvérsias, ser, em teoria, aperfeiçoamentos institucionais, há uma insuperável dificuldade que as extraordinárias assimetrias territoriais, demográficas e econômicas, entre os quatro estados, trazem para a definição democrática e equilibrada de sua representação nessas eventuais agências e mecanismos. E muito mais difícil se torna imaginar tais esquemas em situações de tão grave crise como esta que a Argentina ainda vive e continuará a viver durante algum tempo.

A coordenação de políticas macroeconômicas através de consultas entre autoridades, ou de fixação de metas macroeconômicas comuns, ou a criação de uma moeda única (que implica na organização de um Banco Central único) são medidas de longo prazo, inúteis até de imaginar quando até a coordenação interna, dentro de cada país, dessas políticas encontra sérias dificuldades. Na situação de grave crise externa e interna, imaginar que o abandono pela Argentina da paridade legal dólar/peso e a adoção de um sistema de câmbio duplo e até, eventualmente, flutuante, e como tal semelhante ao brasileiro viria a facilitar a adoção de uma moeda comum pelos países do Mercosul é simplesmente um profundo equívoco de avaliação e algo cujo grau de probabilidade é rigorosamente zero.

As questões mais urgentes e decisivas no caso da Argentina, do Brasil e do Mercosul (a situação do Paraguai e do Uruguai são sua mera decorrência; e incapazes de afetar o destino do bloco) são: o desequilíbrio estrutural das transações correntes; a dificuldade de expandir exportações para terceiros países; as tensões decorrentes dos deslocamentos econômicos de empresas e trabalhadores em um período de grave crise; e a necessidade de promover o desenvolvimento industrial e abandonar a utopia retrógrada de criar uma sociedade moderna baseada em economias agro-exportadoras.

A situação argentina hoje leva a crer que a estratégia para sua superação exigirá uma profunda reestruturação do esquema do Mercosul. Portanto, surge a oportunidade para lançar as bases de um verdadeiro projeto de integração econômica e política que venha a ser o cerne da articulação de um pólo sul-americano no sistema mundial de poder. É claro que a continuidade das negociações da Alca faria malograr essa oportunidade. Com a Alca, a América do Sul passará a fazer parte do território econômico norte-americano e os estados da região deixarão de poder fazer, de fato e de direito, políticas de aceleração do desenvolvimento, redução das disparidades internas e eliminação das vulnerabilidades externas.

A evolução da situação argentina permite prever as seguintes etapas:
a) em situação de moratória ela não conseguirá atrair capitais de empréstimo ou investimentos diretos que permitam saldar os seus compromissos internacionais a curto e médio prazo;
b) a atual política dos EUA /FMI não favorecerá mega-operações de salvamento de investidores estrangeiros que, no caso da Argentina, são em número muito significativo europeus;
c) o governo argentino terá de promover políticas internas de poupança e de investimento capazes de reduzir de forma significativa e rápida o desemprego e a percentagem da população abaixo da linha de pobreza, pois, caso contrário, o descontentamento popular se reacenderá;
d) o governo argentino terá de, nesse processo, proteger o seu mercado interno, promover investimentos de empresas e capitalistas argentinos e para tal terá de aumentar o grau de proteção da economia, aumentando suas tarifas;
e) o governo argentino terá de fazer uma política comercial voltada para a geração de forte superávit comercial tendo em vista a impossibilidade de obter superávits significativos em outras rubricas do balanço de transações correntes (fretes, juros, turismo etc);
f) essa política comercial terá de incluir necessariamente esquemas de subsídio às exportações e a elevação de tarifas que hoje são comuns com as do Brasil, do Paraguai e do Uruguai, na forma de Tarifa Externa Comum, do Mercosul;
g) o principal destino das exportações argentinas é o Brasil e, portanto, em condições de moratória internacional, difícil será para a Argentina fazer um amplo superávit comercial total, sem ter um superávit significativo com o Brasil;
h) a política comercial da Argentina procurará favorecer a transformação do Mercosul de união aduaneira (aliás, em extremo, imperfeita) em uma zona de livre comércio, o que permitiria à Argentina alterar suas tarifas para terceiros países sem ter de atender às conveniências econômicas e comerciais do Brasil (e do Paraguai e do Uruguai);
i) como resultado oportuno e favorável ao Brasil, a política comercial argentina não poderá continuar a favorecer a constituição da Alca, pois esta destruiria qualquer possibilidade de construir um superávit significativo, além de impedir, de direito, as políticas comercial, industrial e tecnológica indispensáveis à reconstrução argentina e ao fim da instabilidade social e política que continua latente e passível de erupção.

Para o Brasil, a estratégia adequada para contribuir para a superação da crise argentina está longe de se tornar elegante mediador entre o governo argentino e o Fundo Monetário e os Estados Unidos, mas sim de ser um defensor de políticas de desenvolvimento argentinas e de sua soberania. O Brasil não deveria insistir na manutenção do Mercosul como união aduaneira, mas aproveitar a oportunidade para transformá-lo num verdadeiro projeto de integração econômica e política. Esse projeto deveria ter como base realista a atual zona de livre comércio aperfeiçoada, com mecanismos de equilíbrio e uma coordenação de políticas tarifárias naqueles setores de interesse vital de longo prazo para o Brasil, tais como bens de capital e informática. A possibilidade de estabelecer mecanismos de crédito recíproco amplos é indispensável para preservar o comércio bilateral. A possibilidade de operações de resgate da dívida no pulverizado mercado de títulos não deve ser descartada nem sua importância minimizada.

A criação de mecanismos de compensação e de fundos setoriais de reestruturação, de programas comuns, em especial em áreas de tecnologia avançada e de exportações, e de programas comuns de investimentos estratégicos completaria o quadro econômico do projeto.

Na esfera política, a oportunidade é única para que sejam estabelecidas as bases de uma coordenação estreita, profunda e verdadeira entre o Brasil e a Argentina que fortaleçam a atuação dos dois países nas negociações internacionais de toda ordem e na construção de um pólo político sul-americano, não-hegemônico, em que o Brasil abrisse seu mercado sem reciprocidade a seus vizinhos, que possa preservar a possibilidade de desenvolvimento e de afirmação política do continente, evitando sua absorção em esquemas liderados pelas grandes potências, como é a Alca.

A atitude atual do Brasil será definitiva para que essas oportunidades possam se concretizar.

Samuel Pinheiro Guimarães é embaixador, ex-chefe do Departamento Econômico do Itamaraty e ex-diretor do Instituto de Pesquisas em Relações Internacionais (Ipri) do Itamaraty. Este artigo foi escrito originalmente para o sítio da Agência Carta Maior (11 de janeiro de 2002).

EDIÇÃO 64, FEV/MAR/ABR, 2002, PÁGINAS 19, 20, 21