Num amplo contexto histórico, considerando-se este último século, as décadas de 1980 e 90 foram as de menor crescimento econômico anual médio do Brasil. Foram décadas de estagnação, sendo que a de 90 teve crescimento ainda mais estancado que a de 80 – 1,6 e 2,2 respectivamente. O país entrou numa quadra de vulnerabilidade externa sem precedentes se considerarmos o período desde 1930. Na década de 90, com a adoção das políticas liberalizantes e com o desenvolvimento dependente do fluxo do capital de fora, acentuou-se o desequilíbrio estrutural do país. As dívidas se agigantaram, o déficit externo tornou-se explosivo e, pior, sem expansão produtiva; a infra-estrutura se deteriorou; instalou-se um elevado desemprego crônico; retrocedeu a renda média dos assalariados, concomitante à perda progressiva de direitos trabalhistas e recentes mudanças da Consolidação das Leis do Trabalho; os juros entraram num patamar de prolongada alta, sem mais sair desse círculo vicioso; a economia brasileira atingiu um nível de desnacionalização como nunca visto antes.

Esse cenário estrutural não se modificou com a desvalorização cambial realizada no início de 1999 nem através dos aportes do FMI, porque os fundamentos econômicos continuaram os mesmos.
A dinâmica capitalista periódica no Brasil, de acumulação com endividamento externo, atingiu um nível extremo em nossos dias – e nisso reside o centro do impasse brasileiro.

Por isso, a nossa conclusão é que esse processo de extenuação prolongada, produzindo gigantescos passivos externos e internos, condiciona uma crise estrutural que vai assinalando o fim de um ciclo econômico que se expressa – no plano social e político – na forma de uma crise crônica, com manifestação aguda intermitente.

Esse processo, liberal e desnacionalizante, tem como base um sistema de poder. Sobretudo se considerarmos que a partir do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso formou-se um pacto político dominante, que realizou grande intervenção política, respaldada em uma componente ideológica – de que não existiria mais viabilidade para um projeto de desenvolvimento nacional, baseado na poupança e em investimento interno, e que o conceito de soberania econômica seria peça de museu.

A pretensão de um projeto nacional foi desqualificada e o anseio do desenvolvimento nacional autônomo e sustentado foi barrado. A governabilidade prescindiu da função e dos objetivos nacionais e foi sendo formado um tipo de governo compartilhado entre uma parte interna, constituída pelo presidente da República, seus tecno-burocratas monetaristas, representantes dos grandes interesses financeiros, e, uma externa, pelo FMI e o Tesouro norte-americano. A partir de 1999 esse governo não age mais sem o aval político do FMI; sendo que não somente os aportes financeiros são necessários, mas também o atestado de cumprimento do dever de casa para tranqüilizar os grandes credores e investidores estrangeiros.

Essa situação política e econômica, em evolução, provocou um verdadeiro desmonte nacional, levando à perda da autonomia na condução econômica e financeira, tornando o país refém da hegemonia do capital financeiro internacional e das crescentes pressões do hegemonismo norte-americano. O país se tornou mais dependente e vulnerável.

Recentemente o presidente da Republica passou a encenar dois tipos de discurso. Um, interno, que justifica sua submissão à hegemonia do capital financeiro; outro, externo, que critica a assimetria dos resultados da globalização – assim vai ficando conhecido como o presidente “dois em um”.
Mas o discurso que vale é o interno, porque aqui, por um lado, os superávits fiscais são mantidos rigidamente, os pagamentos dos juros e amortizações das dívidas seguem calendário rigoroso, sem nenhuma flexibilidade, os reajustes das tarifas de bens de uso universal das empresas privatizadas não se atrasam em um dia sequer, os juros sempre se mantêm em elevado patamar; e, por outro, o salário médio real cai, (a inflação nesses sete anos de Fernando Henrique vai a 100%, enquanto que os salários em média não se elevaram nem em 50%), o trabalho informal suplanta o formal, o desemprego persiste em alto patamar, os direitos trabalhistas vêm sendo liquidados, e nem a correção da tabela do imposto de renda segundo a inflação nesses sete anos é atualizada.

A quem serve a orientação governamental?

O desgaste da política dominante é evidente. Crescem as contradições no seio das forças governistas.
A história se repete. O governo foi derrotado nas últimas eleições municipais, sua credibilidade descambou. Ele prometia a retomada de crescimento para 2001, que não se consumou. Continuou aprofundando o impasse estrutural e, mais, levou o país a uma crise energética de grandes proporções.

E tudo, como numa virada cinematográfica, se inverteu: estaríamos “em porto seguro”, pois “a situação poderia ter sido pior”. Prevalece mais uma vez a filosofia cínica do mal necessário, ou da justificativa ideológica do pensamento único: “não existe outro caminho”.

O Brasil tornou-se um dos campeões mundiais em processo de desregulamentação do trabalho. O estágio atual consiste na flexibilização dos direitos trabalhistas através da alteração do artigo 618 da Consolidação das Leis do Trabalho, revogando na prática a legislação trabalhista, ao estabelecer que os acordos e as convenções coletivas se sobrepõem à lei. Isto como expediente que visa a atender o ritmo da concorrência altamente concentradora imposta pelo capitalismo atual. No mesmo caminho do endurecimento das relações do trabalho, por meio de atos de força, arbitrários e antidemocráticos, são efetuadas medidas que visam a restringir o poder de mobilização dos trabalhadores, especialmente dos servidores públicos, cujo direito de greve está ameaçado. Além disso, procura-se golpear a resistência dos trabalhadores negando a unicidade sindical por meio de mais uma emenda constitucional.

O atual arranjo político e econômico produz um estrago social ainda pior que os anteriores. Às questões estruturais do subemprego e da pobreza se agregaram o desemprego aberto, a precarização nas relações de trabalho e a exclusão social de camadas antes participantes do processo de desenvolvimento. A taxa de desemprego praticamente dobrou (mesmo considerando os índices do IBGE), saltando de 4,3% em 1990 para 7,1% no ano de 2001. Hoje, 54% da população economicamente ativa (EA) integram o mercado de trabalho informal.

O perfil social que vem sendo plasmado é expresso em segmentos compostos por uma camada minoritária na sociedade, efetivamente incorporada ao padrão de desenvolvimento vigente; por uma camada maior intermediária, ameaçada, que vive a agonia permanente de manter seu nível na escala social e de preservar certos direitos, atualmente em perigo; e pela maioria da população – da qual fazem parte os que vivem com menos de três salários mínimos (de US$ 80), os desempregados, subempregados, os abaixo da linha da pobreza e os marginalizados – deserdada do processo liberalizante.

Do ponto de vista de classe social, com a abertura liberal, a conseqüente sucessão de medidas desnacionalizantes e as mudanças na superestrutura, cresceu o poder da oligarquia financeira internacional no país, acentuando a estratificação interna da burguesia brasileira – a “financeira” e a “produtiva” –, resultando na formação, nesta classe, de uma camada associada (de formas diversas) à oligarquia estrangeira; e de camadas que foram perdendo espaços, ameaçadas ou absorvidas.

Nesses últimos anos está em curso um processo de volumosa transferência de renda para uma camada de burgueses rentistas, que se beneficiam do regime de persistente e elevadíssima taxa de juros. Trata-se de um processo em desenvolvimento, carecendo ainda de melhor definição. Por outro lado, esse movimento do capital vem produzindo a progressiva depauperação do proletariado e do campesinato em geral e a marginalização de parcelas maiores da população. As diferenças regionais se acentuaram, concentrando a produção de bens e serviços de maior valor agregado no Sudeste-Sul do país. Diante desse quadro em formação é inevitável o agravamento das contradições sociais e nacionais, provocando, como conseqüência, a resistência e a luta dos trabalhadores e do povo em geral.

No período mais recente, as lutas populares alcançaram o nível da mobilização política com o expressivo ato de metalúrgicos, funcionários públicos, estudantes e sem-terra, em abril de 1997 em Brasília, e com grande manifestação da marcha dos 100 mil, em agosto 1999. Nesse mesmo ano, ocorreram grandes ações de massa de caminhoneiros e de pequenos e médios agricultores. Em 2000 a campanha exigindo um plebiscito sobre dívida externa mobilizou 7 milhões de votantes em quase todos os estados. O Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre no início de 2001, tornou-se um grande evento de repercussão mundial, contando com a presença de 15 mil participantes de 120 países integrados na luta contra o neoliberalismo. O 2º Fórum, em 2002, reuniu cerca de 60 mil pessoas de 131 países. A luta pela reforma agrária se ampliou com ocupações de terra e importantes marchas nas cidades. As greves econômicas, mesmo diante da pesada adversidade para os trabalhadores, não deixaram de eclodir. Estes têm empunhado bandeiras em defesa dos seus direitos ameaçados, das condições de trabalho que se precarizam, pela diminuição da jornada de trabalho para 40 horas e aumento do salário mínimo. As mobilizações estudantis promovidas pela UNE e pela Ubes cresceram nos últimos anos, pautando a defesa da educação pública e colocando no alvo o governo FHC. O Fórum Nacional de Lutas, organizado desde 1997 – que congrega mais de 80 organizações sindicais e populares de caráter nacional –, tem cumprido importante papel aglutinador e na mobilização de grandes ações de massas no país.

A atual política de alianças do Partido Comunista do Brasil

A atual política de alianças do PCdoB decorre: do caráter da crise do capitalismo dependente brasileiro; da predominância no Brasil de um pacto político dominante que realiza uma reestruturação econômica ultraliberal-desnacionalizante e desmonta o Estado nacional; do nível da força política e influência entre as massas populares das correntes de esquerda e da oposição em geral; e do grau de consciência política e de organização do movimento dos trabalhadores e do povo brasileiro.

Nesse contexto o 10º Congresso do Partido, realizado em dezembro último, teve como centro do debate a natureza da crise e do impasse brasileiro – e qual a saída –, tendo presente o rumo de reconquista da soberania, da ampliação democrática e da promoção da justiça social.

No início de 1990 as elites dominantes brasileiras começaram a ajustar com a oligarquia financeira transnacional os destinos da nação, atrelando o país ao sistema de poder centrado em Washington e Nova York. Este rumo seguido foi a resposta dessas elites às crises do capitalismo dependente dos anos 80, e tem suas raízes nos interesses colaboracionistas de setores dominantes financistas e rentistas que sempre pregaram a associação com o capital estrangeiro e a estabilidade monetária a qualquer custo. Para o pacto dominante tornou-se essencial para governar o Brasil a constância do fluxo do capital de fora, o visto de baixo risco concedido pelo mercado financeiro internacional, os aportes financeiros do Tesouro norte-americano e do FMI e, sobretudo, o aval deste último para proteger os grandes credores e investidores nas crises cambiais sucessivas. Desse modo, o governo transformou-se tacitamente num condomínio de participantes internos e externos. A elite dominante brasileira se comprometeu com os círculos dominantes do Estados Unidos, transferindo para estes, em última instância, o poder de decisão sobre a economia do país.

O caráter da crise brasileira

Do ponto de vista da evolução histórica, a dinâmica capitalista periódica no Brasil, de acumulação com endividamento externo, atingiu um nível extremo em nossos dias. Nesse contexto, os passivos externos e internos, por seu enorme volume, tornaram-se problemas estruturais recorrentes. Como já assinalamos esse desequilíbrio estrutural não se alterou e o tratamento aplicado resume-se aos efeitos, não às causas. Trata-se, pois, de um quadro extremo que se prolongou, agravando-se o impasse brasileiro. Essa exaustão de ciclos continuados de dependência cada vez mais profunda, desnacionalização econômica, com forte crise estrutural, agora agravada com longo período de estagnação, vai assinalando o esgotamento de um ciclo econômico. Esta extenuação se expressa no plano social e político na forma de uma crise crônica, com manifestação aguda intermitente.

Tal fenômeno se reproduz na crise que atravessa o Brasil atual e se manifesta pela contradição entre duas tendências: uma definida pelo anseio de um projeto nacional autônomo, articulado com as aspirações democráticas e populares; e, outra, definida pelo sistema de poder vigente, liberal-desnacionalizante, acentuadamente assimétrico, que levou o país a ocupar um papel subordinado ao sistema hegemônico.

No plano político, comprovando esse fim de linha econômico e social e seus efeitos, as próprias forças governistas falam em “mudança” ou que a “era fernando-malanismo acabou”. A estagnação econômica, a desigualdade e a pobreza falam mais alto, já não podem ser escamoteadas. Mas isso não quer dizer que o modelo neoliberal se esgotou. Para os países dependentes ele é regiamente aplicado, passando, porém, por fases de ajustes ou reciclagem. Por outro lado, nos países capitalistas desenvolvidos, diante da atual recessão, crescem as medidas intervencionistas e protecionistas – tal procedimento vale para os países ricos, não para os pobres.

O Consenso de Washington, plataforma das políticas neoliberais para o nosso continente, prossegue, já em outras condições, no “consenso da Alca”. Este é produto da contínua imposição estratégica dos Estados Unidos, visando à consolidação do seu domínio sobre as Américas. Recentemente, o presidente Fernando Henrique, comprometido com sua política de profunda dependência aos círculos de poder norte-americanos por um lado e, por outro, à pressão crescente interna por uma posição de não alinhamento do Brasil, tem assumido uma posição ambígua diante dos novos acontecimentos no mundo. E apenas no plano externo ensaia um discurso crítico aos resultados da globalização, ao passo que atrela mais ainda o país à hegemonia do capital financeiro.

Programa de reconstrução nacional

O Brasil precisa de um novo rumo, de uma ruptura com a atual orientação dominante, de um projeto de mudanças que seja capaz de promover a reconstrução nacional, a transformação social e a mais ampla liberdade política, tendo em vista a aproximação com o objetivo da transição ao socialismo. Somos um imenso país, uma grande nação, dotada de imensos recursos espirituais, materiais e humanos. O Brasil reúne condições objetivas para um caminho de desenvolvimento autônomo, sustentado e democrático. Faltaria dar impulso às condições subjetivas – a reunião das forças políticas e sociais – capazes de abrir e construir um novo caminho.

O nosso Partido almeja e se empenha na luta pela vitória dos ideais socialistas em nossa época. Neste momento, em nosso país, devemos considerar que a mais importante batalha que se conforma diante de nós resulta, primeiro, do caráter da contradição – projeto nacional autônomo e democrático contra o projeto hegemônico subordinado – produzida pela crise que vive o Brasil; e, segundo, esse embate se realiza de imediato no contexto institucional vigente, o qual define as condições concretas da disputa eleitoral de 2002.

Em função desse conteúdo da luta e no terreno em que ela se realiza é que podemos definir as nossas premissas, quais sejam: formar amplo pacto político das forças patrióticas, democráticas e populares, baseado num programa com novos fundamentos – defesa do Brasil, recomposição do Estado nacional, democracia ampliada, retomada do desenvolvimento com distribuição de renda e defesa do trabalho; e derrotar o pacto de poder das forças que impuseram a reestruturação liberal-desnacionalizante. Afirmamos que essas duas premissas, por sua natureza política e programática, definem o caráter de ruptura do projeto de mudança.

Estimamos que nas condições atuais o êxito desse projeto mudancista está estreitamente dependente da capacidade de unidade das forças de esquerda para serem núcleo de uma aliança ampliada com as forças oposicionistas interessadas na reconstrução nacional, ampliação democrática e defesa dos direitos populares. Não subestimamos a dimensão do poder concentrado nas mãos das correntes governistas e a sua capacidade de manobras políticas diversionistas.

Por isso, sozinho, nenhum partido de esquerda poderá derrotá-las. Ao mesmo tempo a frente oposicionista tem seu poder no apoio popular e, se este for realmente manifestado na sua forma mais elevada, no nível de extenso movimento cívico de massas contra o governo FHC. O novo governo democrático, de reconstrução nacional, somente poderá ser conquistado e tornar realidade o programa de mudança se for expressão dessa unidade de forças contrárias ao projeto neoliberal e contar com o respaldo desse amplo movimento político popular.

Diante do impasse brasileiro, da crise e do descrédito popular no governo FHC, das suas derrotas no último pleito nos grandes municípios e do crescimento da rejeição à política neoliberal, a oposição reúne condições históricas excepcionais para alcançar uma vitória nas eleições gerais de 2002. Esta situação antecipou o debate acerca da sucessão presidencial. Os partidos e os diversos pré-candidatos já na cena política adiantam a apresentação de argumentos e plataformas na busca de uma saída para o país. A continuidade da reestruturação em curso defendida pelas forças situacionistas vai agravar a incessante agonia em que vive a maioria do povo. O país não agüentará mais uma metade de década de crescimento estancado e pode tornar-se neocolonizado. Não se pode subestimar tamanho risco ao destino de nossa pátria. Agora, o governo de Fernando Henrique Cardoso e seus cúmplices, apoiados em vastos recursos, sustentados por grandes interesses internos e externos, compram a cumplicidade e o apoio político, visando a manter sua base de sustentação, retomar a iniciativa e encurralar a oposição.

A responsabilidade de nosso Partido e da oposição perante o povo tem conseqüências históricas: ou nos colocamos à altura dessa tarefa decisiva de barrar a evolução neoliberal e abrirmos um novo rumo para o Brasil, ou continuaremos numa resistência cada vez mais dramática para nosso povo.

Por isso é que reafirmamos a nossa convicção unitária, imbuída da qual o PCdoB tem sido uma voz na defesa constante da coesão das forças de esquerda em torno de um programa de mudanças da ordem ultraliberalizante e estendendo essa frente a amplos setores políticos e sociais que comunguem dos mesmos propósitos. Também consideramos que cabe ao Partido dos Trabalhadores – por constituir-se no maior partido de oposição –, destacada parcela de responsabilidade na realização desse movimento de grande dimensão para o futuro da nação.

Hoje, continuaremos empregando o melhor do nosso esforço insistindo na busca da concretização da unidade das forças oposicionistas no plano nacional e nos estados da Federação desde o primeiro turno das próximas eleições. Esse objetivo não sendo alcançado, contribuiremos para estabelecer condições viáveis para unir com base num programa comum democrático, de reconstrução nacional, todas as forças possíveis de serem unidas no segundo turno, a fim de abrir um novo rumo para o Brasil.

Renato Rabelo é presidente do Partido Comunista do Brasil, PCdoB. Este texto reproduz parcialmente sua intervenção no encontro de partidos comunistas denominado Seminário de Montevidéu (Uruguai), ocorrido de 26 a 30 de janeiro de 2002.

EDIÇÃO 64, FEV/MAR/ABR, 2002, PÁGINAS 6, 7, 8, 9, 10