I

Enquanto dormes cidadão,
teu sono citadino,
alguém vela teu lugar.
Um homem ou mulher
que, da rosa desfolhada,
trás o talo sempre pronto a despertar.

Enquanto comes, meu amigo,
teu salário em feijão,
alguém mata a fome de tua justiça.
Prepara a tinta
e sangra os muros dessa cidade intranqüila
repleta de aflição.

Alguém, cujo o coração escarlate
marca o compasso dum tempo
destinado à viração…

II

E quem é esse que te acerca
aceso,
panfleto em punho,
olhos recheados de amanhã?
Quem é esse que traz nos lábios
uma certeza e, nas mãos, uma estrela aldebarã?
Enquanto assistes tua novela, companheira,
mal sabes que lá fora alguém colhe sementes ao vento
e as planta no asfalto crú das metrópoles encantadas…

Alguém que despreza a fome
e o clamor dos cemitérios.
A quem inexiste a profundeza do sono
e, da lua, seus mistérios…

III

E onde está esse que a nada
se assemelha e com tudo se parece?
Sem que o percebas,
ele te cuida e segue:
Vai contigo ao mercado;
contigo, esmerila dos dias o aço;
vai a aula contigo,
e, contigo, sua a alegria
nas avenidas carnavais…
Compartilha contigo elevadores
sem o notares.
Contigo
troca na rua furtivos olhares.
Derruba dinastias, ocupa usinas,
paralisa canaviais.
Faz de um operário presidente,
elege prefeitos, senadores, suplentes,
deputados federais.
Arma-se de alegria
e planta a flor da euforia
do mar às matas viscerais!

IV

E como explicá-lo? Quem o comenta?
A ele que, do olho da tormenta,
alcança o tempo e o conduz?
Que, dos anos escuros,
faz mil séculos de luz?
Que dá vida dá testemunho;
que rende diuturno tributo
a um povo que o futuro produz?