Nesse sentido, discutir sobre império e imperialismo é sumamente importante; daí que o principal mérito da obra de Hardt e Negri (daqui para frente H&N) não seja a retidão das principais teses expostas em seu livro – especialmente aquela que assegura que vivemos numa época de “império sem imperialismo” –, mas sim sua capacidade de ter originado uma vigorosa discussão sobre o assunto.

Tendo em vista já termos criticado amplamente essas teses em outro espaço, remetemos o leitor – se interessado em adentrar aos detalhes de nossos questionamentos –, a examinar nossas críticas (Boron, 2002). Incidentalmente, convém deixar estabelecido que o debate promovido por H&N também reflete uma surpreendente vitalidade teórica no campo do pensamento crítico; vitalidade essa que – no calor de tão defendido discurso sobre a “crise do marxismo” –, muitos já haviam dado por perdida. O fato de as proposições de nossos autores terem sido questionadas por uma grande quantidade de trabalhos que, a partir de variantes do marxismo, refutaram suas principais asseverações, não deixa de constituir um sinal alentador que merece ser destacado em uma situação como a que estamos vivendo.

Nesta oportunidade, nos limitaremos a examinar as duas teses principais do argumento de nossos autores: a primeira, relativa ao Estado, desenvolvida em Império e, a segunda, referente ao tema democracia, esboçada em um trabalho posterior.

Uma concepção de Estado radicalmente equivocada e a soberania no capitalismo contemporâneo
Um dos problemas mais graves que a teorização de H&N enfrenta relaciona-se aos sérios erros da teoria de Estado subjacente no desenvolvimento da mesma. Oferece uma claríssima expressão de tais erros o seguinte trecho da obra em questão:

“Hoje (…) as grandes companhias transnacionais superaram efetivamente a jurisdição e a autoridade dos Estados-nação. Parece, pois, que essa dialética que durou séculos chega a seu fim: O Estado foi derrotado e, hoje, as grandes empresas governam a Terra! (p. 283, do original manuscrito).”
A proclamada “derrota” do Estado supõe o deslocamento de suas funções estatais e das tarefas políticas próprias a ele a partir de outros níveis e domínios da vida social. Revertendo o histórico processo pelo qual o Estado-nação “expropriou” as funções políticas e administrativas – até então retidas pela aristocracia e os magnatas locais –, nessa nova fase da história do capital essas tarefas e funções haviam migrado de outras esferas e domínios da vida social, principalmente dos “mecanismos de mando do nível global das grandes empresas transnacionais” (p. 284). Isso implica aceitar uma presunção irremediavelmente errônea: que as chamadas empresas transnacionais não têm referência alguma em uma base nacional. Esta suposição é completamente equivocada por ignorar o fato de que, por exemplo, 96% das 200 mega-corporações que prevalecem nos mercados mundiais e cujos ingressos totais chegam a US$ 7.1 bilhões por ano – equivalentes à riqueza combinada de 180% da população mundial – e têm sua matriz em oito países, estão legalmente inscritas nos cadastros de sociedades anônimas desses mesmos oito países; encontram-se protegidas por leis e juízes de “seus Estados”; e seus diretórios têm sua sede nos mesmos países do capitalismo metropolitano.

Para desfazer as dúvidas que poderiam restar, é preciso levar em conta que menos de 2% dos membros de seus diretórios são estrangeiros, enquanto que mais de 185% de todos os progressos tecnológicos das firmas se originam dentro de seus “limites nacionais”. Em suma, essas corporações têm um alcance global; contudo, sua propriedade, por mais que se encontre distribuída, tem uma clara base nacional e suas ambições fluem de todo o mundo até o país em que se encontra sua matriz (Boron, 1999: 233; Boron, 2000: 117-123). Em relação a esse assunto, convém lembrar os ensinamentos deixados por um informe elaborado pela revista Fortune a partir de uma pesquisa aplicada às cem maiores empresas transnacionais de todo o mundo: a totalidade das firmas pesquisadas, sem exceção, reconheceu ter-se beneficiado das intervenções feitas em seu favor pelos governos de “seus países”, enquanto que 20% delas admitiram não apenas isso, mas ainda que haviam evitado a bancarrota graças aos subsídios e os empréstimos que lhes haviam sido concedidos oportunamente por “seus governos” (Chomsky, 1998; Kapstein, 1991/2). Em suma, apesar da afirmação dos autores de Império, os Estados-nação continuam atuando decisivamente na economia mundial; as economias nacionais continuam vivas; e as empresas transnacionais continuam operando a partir de uma base nacional. Em sua presumida autodestruição, o Estado capitalista nacional haveria de ser fragmentado e distribuído em uma vasta coleção de novas agências, grupos e organizações dentre os quais sobressaem “os bancos, organismos internacionais de planificação e outros (…) que progressivamente tenderiam a buscar legitimidade em um nível transnacional de poder.” (p. 285) Uma vez mais, supõe-se aqui que os mencionados bancos e organismos de planificação sejam entidades que “navegam em águas internacionais” e que carecem de ligação com os Estados nacionais, mesmo com os que configuram o vértice do sistema imperialista mundial. Tudo isso é tanto mais inaceitável quando H&N afirmam que os fragmentos dispersos da velha soberania estatal foram recuperados e reconvertidos não por qualquer tipo de instituição, mas por “toda uma série de corpos jurídico-econômicos, tais como o GATT, a Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial e o FMI” (p. 308).

Que quer dizer exatamente “corpos jurídico-econômicos”? Isso não é um eufemismo para evitar chamar pelo nome mais apropriado de “cães de guarda” do imperialismo? A que interesses respondem esses “corpos jurídico-econômicos”?

Em relação às possibilidades que se abrem diante dessa suposta transformação estatal, a sentença de nossos autores é radical e inapelável, e se encontra alinhada com as proposições ortodoxas dos teóricos neoliberais: “A decadência do Estado-nação não é meramente o resultado de uma posição ideológica que poderia se reverter através de um ato de vontade política: é um processo estrutural e irreversível.” (p. 308). Tendo em vista que a globalização da produção e a circulação de mercadorias ocasionaram a progressiva perda de eficácia e efetividade das estruturas políticas e jurídicas nacionais – impotentes para controlar atores, processos e mecanismos que excedem em grande medida suas possibilidades e que desenvolvem seus jogos em um tabuleiro estrangeiro, fora das fronteiras nacionais –, não teria sentido algum tratar de ressuscitar o Estado-nação. Em um artigo publicado no OSAL, nossos autores matizam sobremaneira sua posição: reconhecem que apesar da globalização os Estados nacionais continuarão cumprindo “funções úteis à regulação econômica, política, e ao estabelecimento de normas culturais”. Todavia, concluem paradoxalmente: “Os Estados nacionais perderam sua função em matéria de autoridade soberana” (H&N, 2002: 159). Com efeito, não se compreende como tais instituições continuam cumprindo essas úteis funções de regulação, acima assinaladas, se, ao mesmo tempo, a sua soberania desaparece pouco a pouco. Hoje em dia, precisamente o império personifica a nova forma de soberania que, segundo nossos autores, sucedeu à soberania estatal.

Como conseqüência, para as futuras lutas emancipadoras, nada poderia ser mais negativo do que cair vítima da nostalgia dos velhos tempos dourados. Contudo, mesmo se fosse possível ressuscitar o Estado-nação, qual Lázaro dentre os mortos, existe uma razão ainda mais importante para desistir dessa empresa: essa instituição “atura uma série de estruturas e ideologias repressoras e qualquer estratégia que se sustente nela deveria ser desbaratada por essa mesma razão.” (p. 308).

Suponhamos por um momento que déssemos por válido esse argumento, omitindo o inquietante “ar de família” que o mesmo guarda em sua relação ao anarquismo liberal de Robert Nozick. Nesse caso, não apenas deveríamos nos resignar a contemplar a inevitável decadência do Estado-nação, como também a da ordem democrática resultante de séculos de lutas populares que inevitavelmente repousa sobre a estrutura estatal. Pareceria que as conquistas democráticas das multidões do passado – as quais se modelaram no repertório de instituições, organizações, regulamentos, leis e formas estatais específicas que limitaram o despotismo do capital e pelas quais nossos autores sentem particular aversão – não contam, talvez porque sejam produto de um sujeito chamado “povo” e que o reverso dessa negação seja a exaltação retórica da população do futuro, a que ainda não se fez presente na história. Em todo caso, ao satanizar o Estado-nação como mero âmbito da repressão e ao desconhecer que é sobre essa estrutura básica que se assenta a vida democrática, acreditam que com mudança será possível “democratizar” os mercados ou uma sociedade civil estruturalmente dividida em classes? Qual a saída, então? (Boron, 2000: 73-132) Feitas essas considerações, passemos à análise que H&N fazem sobre a questão da soberania. Nossos autores aparentemente não se deram conta de que o imperialismo possui duplo padrão de evolução ou – como dizia a embaixadora dos Estados Unidos diante das Nações Unidas durante o primeiro governo de Ronald Reagan, Jeanne Kirkpatrick –, um duplo standard, com o qual Washington julga os governos e suas ações. Um desses padrões utiliza para avaliar a soberania dos Estados Unidos e seus aliados; e, o outro, bem diferente, para julgar a soberania de países neutros ou inimigos. A soberania nacional dos primeiros deve ser preservada e fortalecida, e a dos segundos, enfraquecida, podendo ser violada sem nenhum escrúpulo ou falsos dramas de consciência. Prisioneiros de suas fantásticas especulações, H&N não podem perceber essa inquietante dualidade e acreditam então na existência de uma “lógica global” acima dos interesses nacionais da superpotência e do indiscutido “centro” do império, os Estados Unidos. Para autores tão interessados em assuntos constitucionais e jurídicos como esses, o deplorável desempenho de Washington em matéria de reconhecimentos a tratados e acordos internacionais proporciona um oportuno banho de sobriedade. Como se sabe, os Estados Unidos repudiam qualquer instrumento jurídico internacional que signifique um mínimo menosprezo à sua soberania. E mais, tal como assinalou Noam Chomsky, na realidade os Estados Unidos “não ratificaram nenhuma convenção porque mesmo nos poucos casos em que o fez, o governo norte-americano as preparou para introduzir uma cláusula de reserva que diz o seguinte: ‘não aplicável aos Estados Unidos sem o consentimento dos Estados Unidos.’” (Chomsky, 2001: 63)

Esse parágrafo anterior sugere claramente que os nossos autores não chegaram a apreciar em toda sua magnitude a contínua relevância do Estado-nação e da soberania nacional – o que debilita irremediavelmente o núcleo de toda sua argumentação sobre o sistema imperialista em sua fase atual.

Com relação ao ocorrido com o Estado capitalista, nos parece que os erros anteriormente citados se tornam ainda mais graves. Primeiramente, há um problema inicial de importância nada marginal relativo à apregoada decadência final e irreversível do Estado: toda informação quantitativa disponível sobre o gasto público e o tamanho dos aparatos estatais se move em uma direção exatamente contrária à que imaginam H&N. Se algo aconteceu aos capitalismos metropolitanos nos últimos vinte anos, foi precisamente o notável aumento do tamanho do Estado, medido como a proporção de gasto público em relação ao PIB. Os dados fornecidos por todo tipo de fonte, de governos nacionais ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e do Banco Mundial ao FMI e a OECD, falam com uma só voz: todos os Estados dos capitalismos metropolitanos se fortaleceram nos últimos vinte anos, apesar de muitos de seus governos terem sido verdadeiros campeões em retórica antiestadista que se lançou com fúria a partir do início da década de 80. O que aconteceu a partir do advento da crise do capitalismo keynesiano, em meados dos anos 70, foi um descenso relativo na taxa de crescimento do gasto público; contudo, este continuou crescendo sem interrupção mesmo que em ritmo mais lento. É por isso que no informe especial sobre o tema, elaborado pela revista conservadora britânica The Economist, intitulado “Big government in Still in Charge”, o seu redator não pode ocultar seu desencanto diante da tenaz resistência de os Estados em se ajustarem e se reduzirem, como reza a cartilha neoliberal (H&N não parecem ter tido a possibilidade de examinar esse trabalho porque o último parágrafo do capítulo 15 de seu livro leva um título que por si só retrata os alcances do seu equívoco, em um tema crucial, para todo seu argumento teórico: “Big government is over!”). Em todo caso, depois de uma cuidadosa análise dos dados recentes sobre o gasto público em catorze países industrializados da OECD, o articulista conclui que apesar das reformas neoliberais iniciadas a partir das proclamadas novas metas de austeridade fiscal e da redução do gasto público, entre 1980 e 1996 o gasto público nos países selecionados aumentou de 43,4% do PIB para 47,1%, enquanto que em alguns países, como a Suécia – e, em menor medida, em outros – esse número supera com excesso os 50% (The Economist, 1997: 8), ao afirmar: “Nos últimos quarenta anos, o crescimento do gasto público nas economias avançadas tem sido persistente, universal e contraprodutivo”. E acrescenta que o objetivo tão fortemente proclamado de chegar a um “governo pequeno”, aparentemente foi mais um recurso de retórica eleitoral do que um verdadeiro objetivo da política econômica. Nem mesmo os defensores mais raivosos da famosa “reforma do Estado” e da redução do gasto público, como Ronald Reagan e Margaret Thatcher, conseguiram algum progresso significativo nesse terreno (The Economist, 1997: 48).

Contudo, enquanto os Estados progridem no coração dos capitalismos desenvolvidos, a história no mundo da periferia é completamente diferente. Na reorganização mundial do sistema imperialista, que teve lugar sob a égide ideológica do neoliberalismo, os Estados foram radicalmente debilitados e as economias periféricas submetidas cada vez mais abertamente, e quase sem a mediação estatal, aos influxos das grandes empresas transnacionais e às políticas dos países desenvolvidos, principalmente os Estados Unidos. Esse processo não teve nada de natural e é conseqüência das iniciativas políticas conscientemente adotadas no centro do império: o governo norte-americano, em seu papel dirigente, acompanhado de suas agências e lugar-tenente (FMI, Banco Mundial, OMC, etc) e respaldado pela militante cumplicidade dos governos do G7. Foi essa coalizão que forçou (em muitos casos através de brutais pressões de vários tipos) as endividadas nações do conjunto do Terceiro Mundo a aplicarem as políticas conhecidas como “Consenso de Washington” e a reconverterem suas economias em consonância com os interesses da coalizão dominante e, muito especialmente do primus inter pares (“o primeiro entre seus pares”), os Estados Unidos. Essas políticas favoreceram à praticamente ilimitada penetração dos interesses empresariais norte-americanos e europeus nos mercados domésticos das nações do Sul. Para isso, foi preciso desmantelar o setor público desses países; produzir uma verdadeira desestruturação do Estado; e, com o objetivo de gerar excedentes para o pagamento da dívida, reduzir ao mínimo o pressuposto público, sacrificando para isso gastos vitais e inadiáveis em matéria de saúde, moradia, educação e outros do mesmo tipo que deterioraram de modo impressionante a qualidade de vida de grandes massas da população. As empresas públicas foram, primeiramente, desbancadas e depois vendidas por valores irrisórios a grandes corporações dos países centrais – abrindo espaço ao máximo desenvolvimento da “iniciativa privada” (embora, em muitos casos, os adquirentes fossem empresas públicas de países industrializados!)

Nada disso teria sido possível, naturalmente, sem a incansável propaganda ideológica do neoliberalismo que, a partir de suas grandes usinas em Washington e nas principais capitais européias, satanizou o governo e a empresa pública e endeusou os mercados. Outra política imposta à periferia foi a abertura unilateral da economia, possibilitando a invasão de bens importados produzidos em outros países ao mesmo tempo em que os índices de desocupação aumentavam extraordinariamente.

Cabe assinalar que enquanto a periferia era forçada a abrir-se comercialmente, o protecionismo do norte se sofisticava cada vez mais. A desregulação dos mercados, sobretudo a do financeiro, foi também outro objetivo da “revolução capitalista” ocorrida a partir dos anos oitenta do século passado. Em seu conjunto, essas políticas tiveram como resultado um fenomenal debilitamento dos Estados na periferia, cumprindo o sonho capitalista de mercados que funcionam sem ter que se preocupar com as regulações estatais – e de fato os conglomerados empresariais mais fortes se encarregaram de “regulá-lo”. Obviamente, em proveito próprio. Como dissemos anteriormente, essas políticas não foram nada fortuitas nem produto de má sorte – o desmantelamento do Estado aumenta significativamente a gravitação do imperialismo e das firmas nacionais e estrangeiras em sua capacidade de controlar não apenas a vida econômica, mas também a vida política dos países da periferia. Nada disso, por certo, encontraremos na obra de H&N. Ao contrário, encontramos reiteradas declarações no sentido de que as relações imperialistas se acabaram, apesar da visibilidade adquirida por elas nas últimas décadas ser tão destacada que até os setores menos radicalizados de nossas sociedades não hesitam em reconhecê-las.

Para concluir, nossos autores parecem não poder distinguir entre formas estatais e funções e tarefas dos Estados. Não há a menor dúvida de que a forma do Estado capitalista mudou no último quarto de século. Tendo em vista que o Estado não é uma entidade metafísica, mas sim uma criatura histórica – continuamente formada e reformada pelas lutas de classes e as intermitentes irrupções das classes e camadas populares –, suas formas dificilmente poderiam ser concebidas como essências imanentes que flutuam acima do processo histórico. Conseqüentemente, as formas do Estado democrático nos países capitalistas avançados foram mudadas. Em que sentido? Houve uma verdadeira involução democrática, da qual há alguns indicadores: uma progressiva perda de poder nas mãos de congressos e parlamentos; crescente incontabilidade dos governos, junto a uma acrescida concentração de poder em favor dos executivos; proliferação de áreas secretas de tomada de decisões (as abortadas negociações do MIA, a acelerada aprovação do Nafta, as atuais negociações a portas fechadas para criar a Área de Livre Comércio das Américas, etc); declinantes níveis de resposta governamental diante dos reclamos e demandas da sociedade civil; drástica redução da competência partidária devido à mimetização dos partidos políticos majoritários, seguindo o modelo do bipartidarismo norte-americano; tirania dos mercados – de fato, dos oligopólios que os controlam – que elegem dia a dia, e capturam a permanente atenção dos governos, enquanto que o público vota a cada dois ou três anos; em função do item anterior, as lógicas tendências à apatia política e à retração individualista; crescente predomínio de grandes oligopólios nos meios de comunicação de massa e a indústria cultural; e, por último, crescente transferência de direitos decisórios da soberania popular pata algumas das agências administrativas e políticas do império, processo este que se verifica tanto nas “províncias exteriores” do mesmo quanto no próprio centro. No caso latino-americano, isso significa que a soberania popular foi privada de quase todos os seus atributos e que nenhuma decisão estratégica em matéria econômica ou social se adota no país sem uma prévia consulta a – e a sua aprovação – alguma relevante agência de Washington. Como se entenderá, uma situação como esta não pode contradizer nos fatos a própria essência da ordem democrática: a soberania popular, reduzida a uma inverossímil letra morta.

Boaventura de Sousa Santos examinou as mudanças experimentadas pelos Estados sob a globalização neoliberal e suas análises confirmam que “não há crise total do Estado e muito menos uma crise terminal do Estado, tal como sugerem as teses mais extremas dos teóricos da globalização” (Sousa Santos, 1999: 64). As funções hobbesianas, repressivas, do Estado, gozam de total vigor tanto na periferia quanto no centro do sistema. No apartheid social do capitalismo contemporâneo, o Estado continua desempenhando um papel crucial: é o Leviatã hobbesiano dos guetos e bairros marginais, enquanto garante as benesses do contrato social lockeano para ricos, famosos e poderosos. Como conseqüência, esse Estado, supostamente em vias de extinção, segundo a ofuscada visão de H&N, continua seu caminho como um Estado cindido, quase esquizofrênico: para os pobres e excluídos um Estado fascista, para os ricos, um democrático. Contudo, a vitalidade do Estado-nação não se mede apenas nesses termos. Também é constatada quando se examina o papel cumprido em vários outros terrenos, tais como: unificação supra-nacional, liberalização da economia, abertura comercial, desregulação do sistema financeiro e elaboração de um marco jurídico-institucional propício à adequada proteção das empresas privatizadas e ao novo modelo econômico inspirado no “Consenso de Washington”. “O que está em crise é a função de promover intercâmbios não-mercantis entre os cidadãos”, conclui Sousa Santos (1999: 64).

Sintetizando, os mercados globais fortalecem a competência entre as gigantescas corporações que dominam a economia mundial. Tendo em vista que essas firmas são transnacionais pelo alcance e grau de suas operações – embora sempre possuam uma base nacional –, para ter êxito nessa luta sem quartel, requerem apoio de “seus governos” com o fim de manter seus rivais comerciais na linha. Conscientes dessa realidade, os Estados nacionais oferecem a “suas empresas” um menu de possibilidades entre as quais se incluem as seguintes: a concessão de subsídios diretos; gigantescas operações de resgate de firmas e bancos custeados em muitos casos com impostos aplicados a trabalhadores e consumidores; imposição de políticas de austeridade fiscal e ajuste estrutural encaminhada para garantir maiores taxas de ambições das empresas; desvalorizar ou apreciar a moeda local com o objetivo de favorecer algumas frações do capital em detrimento de outros setores e grupos sociais; políticas de desregulação dos mercados; ”reformas trabalhistas” orientadas para acentuar a submissão dos trabalhadores, debilitando sua capacidade de negociação salarial e de seus sindicatos; garantir a imobilidade internacional dos trabalhadores ao mesmo tempo em que seja facilitada a ilimitada mobilidade do capital; “lei e ordem” garantidas em sociedades que experimentam regressivos processos sociais de reconcentração de riqueza e ingressos, e massivos processos de empobrecimento; a criação de um marco legal adequado para ratificar com todo ímpeto da lei a favorável correlação de forças que gozam as empresas na fase atual; estabelecimento de uma legislação que “legalize”, nos países da periferia, a sucção imperialista de mais-valia e que permita que as superambições das firmas transnacionais possam ser livremente remetidas a suas matrizes. Estas são algumas das tarefas que realizam os Estados nacionais e que a chamada “lógica global do império”, tão exaltada nas análises de H&N, não pode garantir se não for através dessa imprescindível mediação do Estado-nação (Meiksins Wood, 2000: 116-117). Somente sob a suposição de que a classe capitalista se constitua de profundos imbecis poderia se entender por que as suas mais proeminentes e influentes integrantes estejam trabalhando ativamente para destruir um instrumento tão útil e formidável como o Estado-nação (nos apressamos a esclarecer, para retirar possíveis dúvidas, que o Estado capitalista não é tão somente uma ferramenta da burguesia, mas sim muitas coisas mais – não interferindo para que também seja um instrumento imprescindível no processo de acumulação de capital).

Desventuras da democracia absoluta

Um segundo tema que gostaríamos de abordar nestas páginas é a teorização sobre democracia, publicada por H&N em OSAL. Em relação a ela – para antecipar sinteticamente nossa opinião –, digamos que a mesma contém numerosos erros que a tornam inaceitável do ponto de vista de um projeto socialista de emancipação humana. Nesse artigo, os autores introduzem a noção de “democracia da multidão”, uma concepção que apenas se insinua no Império. Assim sendo, que significa exatamente isso? Seguindo os passos de Baruch Spinoza, os autores asseguram que se trata de uma “democracia absoluta” e, por isso mesmo, “ilimitada e incomensurável”.

Sendo compreensível a desconfiança que gera uma proposta tão grandiosa como essa, H&N procuram acalmar momentaneamente a inquietude do leitor ao afirmarem que uma realização democrática desse porte é impensável, e irrealizável, no marco das arcaicas instituições do império. Esta constatação os leva a concluir que “o único caminho para realizar a democracia da multidão é a revolução” (H&N, 2002: 163). Seria, pois, uma “democracia revolucionária”: só que, diferentemente das outras que a precedem e que tiveram uma fugaz e turbulenta existência, esse tipo de democracia nada tem a ver com a nação ou com o Estado nacional. É precisamente o contrário o que a define: sua vocação de encarnar “o luta contra a nação”. Por razões parecidas, a “democracia revolucionária” não guarda nenhuma correspondência com o conceito já obsoleto, segundo H&N, de “povo”, ligado, como se sabe, à própria idéia de Estado-nação e à noção da “identidade-unidade” que lhe é substancial. O povo seria, por definição, limitado, e os seus limites são precisamente a condição de possibilidade de sua representação política. A população, em compensação, é ilimitada e infinita e, por isso mesmo, irrepresentável. “A população – dizem H&N – desafia a representação porque é uma multiplicidade ilimitada e incomensurável” (H&N, 2002: 162). Nos tempos do império, argumentam nossos autores, as fronteiras são flexíveis e móveis e a soberania imperial é ilimitada. Poderia se dizer, em conseqüência disso, que o caráter ilimitado da multidão não seria senão o reverso dialético da constituição do império – embora, como se sabe, nossos autores recuariam horrorizados diante da simples menção da palavra “dialético”. No império, o povo – ou melhor, os povos – se desfigura por completo e em seu lugar aparece a figura dominadora da multidão: móvel, multiforme, avassaladora.

Em virtude desse raciocínio, H&N concluem que os conteúdos essenciais da nova democracia da população não podem se referir às velhas instituições da democracia representativa e nem mesmo às da democracia direta, como a que heroicamente exerceram os communards de Paris. Tais conteúdos remetem, em compensação, ao conceito de “contrapoder”.

O “contrapoder” implica em três componentes: resistência, insurreição e poder constituinte. Depois de analisar as mutações sofridas por esses elementos na transição de modernidade a pós-modernidade, H&N asseguram que nas diversas experiências insurgentes ocorridas na época da sociedade moderna – um amplo e bastante indefinido arco histórico do início do capitalismo até o advento da sociedade “pós-moderna”, nas décadas finais do século XX – a noção de “contrapoder” se reduz a apenas um de seus componentes: a insurreição. Contudo, segundo nossos autores, a “insurreição nacional era na realidade ilusória”. É preciso buscar a causa dessa frustração no enleio internacional, que nessa época histórica fazia com que a insurreição nacional comunista fosse condenada a desembocar numa guerra internacional crônica, o que “oferece uma armadilha à insurreição vitoriosa, transformando-a em regime militar permanente”. Contudo, se o papel sumamente relevante do sistema internacional é indiscutível – como o atesta a obsessiva preocupação que manifestaram por esse assunto os grandes revolucionários do século XX, de Lênin e Trotsky a Fidel e Che Guevara, passando por Gramsci, Mao Tsetung e Ho Chi Min –, não é menos certo que, tal como ocorre reiteradamente no Império, H&N incorrem em graves erros de apreciação histórica quando falam em caráter “ilusório” das tentativas revolucionárias que balizaram o século XX. Que significa “ilusório”? O fato de uma insurreição popular pôr em movimento os mecanismos internacionais de submissão e controle em um leque de políticas, que vai desde o isolamento diplomático até o aniquilamento dos insurretos, demonstra precisamente o contrário do que alegam H&N: em uma situação tal não há nada de “ilusório” mas sim de muito real; e as forças imperialistas reagem diante do que consideram uma inadmissível ameaça a seus interesses com sua conhecida ferocidade. Nesse caso, qualquer que seja a experiência insurrecional analisada ao longo dos séculos XIX e XX, torna-se evidente que a guerra internacional é muito menos atribuível à intransigência dos revolucionários do que à fúria repressora que aniquila a insubordinação das massas.

De outra parte, afirmar que as revoluções triunfantes cercadas pelos exércitos e as instituições imperialistas – com um repertório de iniciativas que inclui sabotagens, atentados, bloqueios comerciais, boicotes, guerras “de baixa intensidade”, invasões militares, bombardeios “humanitários”, genocídios, etc – se convertem em “regimes militares permanentes” implica num monumental erro de interpretação do significado histórico de tais experiências. Esse equívoco, diga-se de passagem, é típico da ciência política norte-americana que procede dessa mesma forma quando, por exemplo, coloca numa mesma categoria – os famosos “sistemas de partido único” – regimes políticos tão diferentes, como o da Itália de Mussolini; da Alemanha nazi; da Rússia de Stálin; e da China de Mao.

Nossos autores subestimam os fatores históricos que ao longo do último século obrigaram às jovens revoluções se armarem até os dentes para se defenderem das brutais agressões do imperialismo, a anos-luz das sutilezas do império imaginado por H&N. Se a revolução cubana sobrevive nesta época de suposto “império sem imperialismo”, se explica tanto pela imensa legitimidade popular do governo revolucionário quanto pela provada eficácia das forças armadas, que dissuadiram Washington de tentar novamente uma aventura militar na Ilha. De outro lado, a interpretação de H&N revela igualmente o grave equívoco em que incorrem ao caracterizarem as emergentes formações estatais da revolução.

Uma coisa é lamentar-se pela degeneração burocrática da revolução russa e, outra, bem diferente, é afirmar que lá se constituiu um “regime militar”. Da mesma forma em relação ao fato de Cuba ter sido obrigada a inverter grande quantidade de recursos materiais e humanos para defender-se da agressão imperialista – isso não a transforma num “regime militar”. Só uma visão irremediavelmente insensível diante do significado histórico dos processos revolucionários pode caracterizar desse modo essas formações sociais resultantes das grandes revoluções do século XX. Por último, e dando-nos conta de todas as suas limitações e deformações: pode-se dizer efetivamente que as revoluções, russa, chinesa, vietnamita e cubana foram apenas uma ilusão? Uma coisa é criticar os erros e desvios desses processos e, outra, bem diferente, é dizer que se tratou de simples miragens. Terá sido uma simulação baudrillardiana a paliçada sofrida pelo colonialismo francês em Dien Bien Phu? E a vergonhosa derrota dos Estados Unidos diante do Vietnã? Terá sido tão-somente uma visão alucinada de sessentistas macilentos ou ocorreu de verdade? Essa fuga desesperada pelo teto da embaixada norte-americana de Saigon, onde espiões, agentes secretos, assessores militares e torturadores policiais destacados no Vietnã do Sul, matavam-se entre si para subir no último helicóptero que os conduziria sem escalas do inferno vietnamita ao American dream (“sonho americano”) terá sido verdadeira ou mera ilusão? Os 43 anos de fustigamento norte-americano a Cuba, são produto do aborrecimento provocado pelo caráter ilusório da revolução cubana em Washington? E, para nos aproximarmos de nossa realidade atual, o aberto envolvimento do governo norte-americano no frustrado golpe de Estado da Venezuela terá sido propiciado pelo caráter ilusório das políticas do “chavismo”?

De todo modo, nossos autores nos advertem de que se trata de perguntar se, na realidade, já não são anacrônicas porque, segundo eles, na pós-modernidade as condições que tornam possível a insurreição moderna, com todo seu ilusionismo, desaparecem “de tal forma que inclusive até parece impossível se pensar em termos de insurreição.” (H&N, 2002: 164). Contudo, o pessimismo que se destaca dessa afirmação se atenua diante da constatação de que a decadência da soberania nacional e a lassidão que caracterizaria o império também levaram consigo as condições que submetiam a insurreição às restrições impostas pelas guerras nacionais e internacionais. Adiemos por um momento a crítica a essa segunda hipótese, a que anuncia a “emancipação” dos processos insurrecionais das guerras nacionais e internacionais, e vejamos o que significa a insurreição no capitalismo pós-moderno. Se para a sociedade moderna ela era “uma guerra de dominados contra dominadores”, na pós-modernidade a sociedade “tende a ser global ilimitada, a sociedade imperial como totalidade” (H&N, 2002: 165). Sob essas condições, a resistência, a insurreição e o poder constituinte se fundem na noção de contrapoder que, presumivelmente, seria a prefiguração e o núcleo de uma formação social alternativa. Tudo isso é sumamente discutível, todavia, mesmo assim compreensível. Não acontece o mesmo no momento em que nossos autores definem, num êxtase poético, o que denominam fundamento último do “contrapoder” – sua matéria prima. Tal fundamento não se encontra em nenhuma nova construção social ou política nem em nenhum outro produto da ação coletiva das massas, senão na carne, “a substância viva comum na qual se fundem corpo e alma” (H&N, 2002: 165). Segundo esse argumento, os três elementos do contrapoder “brotam conjuntamente de cada singularidade e de cada um dos movimentos dos corpos que compõem a multidão” (H&N, 2002: 165). É por isso que “Os atos de resistência, os atos de revolta coletiva e a invenção comum de uma nova constituição social e política atravessam conjuntamente inumeráveis microcircuitos políticos.

Dessa forma, se inscreve na carne da população um novo poder, um contrapoder – algo vivo que se levanta contra o Império. Aqui surgem os novos bárbaros, os monstros e os gigantes magníficos que emergem sem parar nos interstícios do poder imperial e contra esse poder.” (H&N, 2002: 165).

Desse modo, a proposição de nossos autores adquire um tom inequivocamente vitalista aproximando-se muito mais das emanações metafísicas de Henry Bergson do que dos ensinamentos de Spinoza, ao passo que os afasta irreversivelmente da tradição do materialismo histórico. Não seria preciso se esforçar muito para descobrir os inquietantes paralelos existentes entre a doutrina do “impetus vital” do filósofo francês e a exaltação da carne feita por H&N. Em todo caso, e para resumir, digamos que uma impostação dessa natureza dissolve por completo o caráter histórico-estrutural dos processos sociais e políticos na singularidade dos corpos que conformam a multidão, com o que se chega a uma conclusão desoladoramente conservadora: nessa formulação se desvanecem as especificidades do capitalismo, enquanto modo de produção, e as relações de exploração que lhes são próprias. Em segundo lugar, se aniquila sem maiores problemas qualquer pretensão de tentar levar a termo um dos projetos inconclusos da modernidade: a “democracia popular e representativa”.

Esta, não apenas é considerada inacabada e incompleta, como também, pior ainda, é tida como irrealizável – o que não causaria maiores objeções se H&N sugerissem pelo menos que a frustração do projeto democrático originado na modernidade, e expandido com a experiência da Comuna de Paris e os sovietes, deveu-se à intransigente oposição da burguesia e ao bloqueio dominante por ela hegemonizado, que não mediram esforços para sabotar um projeto que em sua expressão mais radical foi incompatível com sua dominação de classe.

A alternativa proposta por nossos autores é a reivindicação de uma democracia de novo tipo, a democracia alternativa da população, uma democracia “nova, absoluta, ilimitada e incomensurável”. Contudo, desafortunadamente, apenas se limitam à enunciação, a uma invocação apaixonada, a favor de uma nova forma política definida em termos tão categóricos, como os que enunciamos anteriormente; porém, sem aventurar-se a identificar quais poderiam ser os sujeitos de semelhante projeto emancipador e, ainda menos quais seriam as formas institucionais que o mesmo poderia assumir. É muito difícil para quem se identifica com a tradição do realismo político que coloca numa linha vermelha, autores como Maquiavel, Marx, Lênin e Gramsci, não expressar seu profundo pessimismo diante de uma eclosão de romanticismo político tão acentuado como o que se reflete nos escritos de H&N. Uma democracia absoluta e ilimitada? Bem… Contudo, seus advogados deveriam saber que toda forma estatal – e a democracia és indubitavelmente uma forma estatal – repousa sobre uma ordem econômica e social dividida em classes. Essa ordem é, o que eles denominam império, o capitalismo.

Pode o capitalismo admitir uma proposta democrática como a que dão alento H&N? De nenhum modo, tendo em vista que nem sequer a modesta “democracia burguesa” consegue ser plenamente aceita. Pode uma proposta como essa existir palmo a palmo com um regime universal de exploração? Tampouco. Que grau de credibilidade pode ter então um argumento que enquanto propõe uma novíssima forma de democracia – absoluta, incomensurável, ilimitada – guarda um estrondoso silêncio diante das estruturas de exploração e opressão classista, sexista e racista que constituem a base de sustentação do império? Poderia se argumentar que H&N dão por supostas todas essas considerações. Lamentavelmente, não é isso o que ocorre. Não se trata, sem embargo, de uma premissa silenciosa eficazmente subjacente a um argumento de uma nova democracia, mas sim de uma radical subestimação do que significa o capitalismo – e a sociedade capitalista – em sua fase atual. Parafraseando o que certa vez disse Nicos Poulantzas, quem não está disposto a falar sobre capitalismo deve permanecer em silêncio quando a democracia entrar em discussão. É precisamente essa indiferença diante da especificidade do capitalismo que torna possível prenunciar uma proposta democrática como a que estamos vendo – que silencia em relação ao capitalismo e corta na raiz qualquer pretensão de aboli-lo. Como eliminar a suspeita de que levados pela mão de um certo ecletismo teórico e político nossos autores não estejam negando a existência de uma incompatibilidade entre uma democracia absoluta e esse tipo histórico de sociedade que, supostamente, já não seria mais capitalista, mas pós-moderna e, por conseguinte, livre dos condicionamentos estruturalmente antidemocráticos descobertos por Marx? Poderíamos responder a essa objeção dizendo que tudo isso está implícito nas proposições de H&N e que é dado como hipótese. Sem embargo, um tema tão importante como esse não pode permanecer nas sombras, especialmente levando-se em consideração os erros grosseiros de interpretação que caracterizam o argumento central do Império. Em todo caso, continua em pé a instigante proposição, anteriormente colocada – que poderíamos reformular desta forma: “Até que ponto é possível formular um discurso democrático spinoziano – independentemente de nossas dúvidas acerca de que seja a maior herança teórica à qual valer-se para repensar o tema da democracia em nosso tempo – abstendo-se por completo de abordar a problemática da exploração capitalista?”

Numa forma belamente poética, H&N dizem: “Oxalá possamos, misturando a carne com a inteligência da população, gerar através de uma grande obra de amor uma nova juventude para a humanidade.” (H&N, 2002: 166). Talvez se refiram ao que Marx delineou como a necessidade de pôr fim à pré-história bárbara da espécie humana para dar início à verdadeira história da humanidade. Com uma diferença: enquanto que para o filósofo de Tréveris isso só seria possível uma vez consumada a revolução socialista, convertido o proletariado em classe dominante e cumprido o programa de transição em direção à sociedade sem classes – o que teria como resultado o fim de toda exploração –, para H&N essa empresa histórica se resolve no nível macro e no plano dos corpos, apelando para as virtudes da salvadora mistura de carne com inteligência.
Contudo, não há nada na história da humanidade que permita avaliar tamanha ilusão.
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Atilio A. Boron é secretário Executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e professor de Teoria Política e Social na Universidade de Buenos Aires – Argentina.

Notas
Todas as referências entre parênteses pertencem à edição em espanhol da obra, publicada sob o título Império (Buenos Aires: Pidós. 2002)
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