Neodesenvolvimentismo e o governo
O novo governo, presidido por Luiz Inácio Lula da Silva, é visto pela maioria da população como um fator decisivo e uma oportunidade para a inauguração de um novo ciclo de efetivo desenvolvimento econômico, com democracia e justiça social. A atual tarefa desenvolvimentista e social exige a superação dos dogmas neoliberais acerca das relações entre Estado e mercado e entre soberania nacional e globalização imperialista. A herança da década de 1990 é perversa: imenso endividamento interno e externo, estagnação econômica, desemprego avassalador, miséria, fome, inflação, escalada da criminalidade. A dominação dos Estados Unidos, as políticas liberalizantes impostas pelas instituições multilaterais, o poder da oligarquia financeira internacional e o longo declínio das taxas de crescimento no mundo são fatores adversos a um modelo econômico alternativo em nosso país.
O diagnóstico da atual situação deve apontar claramente para a vulnerabilidade e dependência externas e dificuldades estruturais financeiras e tecnológicas da economia brasileira. A direção das mudanças exige o fim da submissão à ortodoxia do FMI, abandono do modelo neoliberal e adoção de novas políticas para regulação estatal da economia, com vistas ao objetivo desenvolvimentista. Assim, colocam-se em debate o papel do Estado e a condução do novo rumo da economia brasileira.
Nessas circunstâncias, especialmente no começo do governo, no processo de transição para um novo modelo, para não perder o rumo, para não retardar a mudança, para não se deixar arrastar pela dinâmica de medidas equivocadas e de difícil reversão, é absolutamente essencial distinguir as verdadeiras reformas – progressistas – das contra-reformas neoliberais impostas, sobretudo, pelos interesses financeiros e internacionais. Na verdade, para permitir o crescimento sustentado, em ritmo suficiente, são necessárias as seguintes reformas: i) do comércio exterior; ii) das transações com o capital externo, da conta de capital e do mercado de câmbio; iii) do endividamento interno e externo; iv) tributária; v) da política industrial; vi) da política de ciência e tecnologia; vii) das políticas agrária e agrícola; viii) do setor financeiro (Banco Central, bancos e mercado de capitais).
Reconstruir o Estado e resgatar o planejamento
“O Brasil deve reencontrar-se com a idéia de desenvolvimento” (TESES, 1997). A reconstrução do Estado e a adoção da agenda neodesenvolvimentista balizam a direção das mudanças no Brasil.
Os problemas suscitados pela experiência neoliberal e herdados pelo governo Lula são uma indicação para a direção da intervenção econômica governamental neste novo período, que ora se inicia. A título de exemplo, pode-se recordar que o desemprego, o recrudescimento das desigualdades regionais e a fragilização dos setores de bens de capital e de tecnologia de ponta eram aspectos preocupantes, no processo econômico em curso, até para os mais ardorosos defensores da política do governo Fernando Henrique (BARROS e GOLDENSTEIN, 1996).
No início do novo governo, ainda não houve manifestações claras relativamente ao debate sobre o projeto nacional e à elaboração de um planejamento econômico. A reconstrução da nação, após o fracasso neoliberal, exige a afirmação de um projeto nacional, com: i) metas; ii) estratégia de desenvolvimento; iii) planejamento. O planejamento deve ser estratégico, de longo prazo, flexível e ajustável às mudanças ante as diversas possíveis situações futuras. As decisões devem considerar a realidade econômica e social do país, concretamente, verificando as necessidades da população, prioridades claras, as condições da economia, as desigualdades regionais, os recursos disponíveis e os prazos. Os resultados devem ser avaliados, principalmente, pelas mudanças favoráveis à vida digna, à satisfação das necessidades básicas e ao direito às oportunidades para os trabalhadores e as pessoas pobres, além de outros aspectos como a redução das desigualdades regionais.
O novo modelo econômico, com forte intervenção estatal, deveria priorizar o mercado interno, com consumo de massas, com produção diversificada, integrada e com adensamento das cadeias produtivas, sem descurar da construção de uma economia internacionalmente competitiva, inserida soberanamente na economia mundial.
A questão central na implementação do modelo alternativo ao neoliberalismo é a reconstrução do Estado em bases democráticas. Impõe-se a necessidade de que o Estado se fortaleça, passe a planejar, atue seletivamente, implemente políticas industrial, agrícola e comercial, concentre esforços em educação e pesquisa tecnológica, apóie setores estratégicos (por exemplo, o segmento de bens de capital) na competitividade da economia, recupere sua capacidade de investimento em infra-estrutura (energia, estradas, transportes), leve a efeito as mudanças para o desenvolvimento, como as reformas da inserção internacional, tributária, do sistema financeiro, agrária.
Considerando o papel do Estado na economia, verifica-se no plano da comparação internacional, que o Estado neodesenvolvimentista possui algumas referências nas estratégias econômicas da Coréia do Sul, China e Índia.
A mudança democrática e progressista só terá chance de vencer a resistência oposta pelas elites e forças conservadoras, se houver vigorosa pressão dos “de baixo”. O novo desenvolvimento deveria contar com a participação das massas nos processos das principais decisões políticas e econômicas, refutando a suposta neutralidade e tecnificação da gestão pública, buscando-se desenvolver um processo em direção a um formato institucional de democracia ampliada. Os movimentos sociais e a mobilização dos trabalhadores, preservando sua autonomia, são indispensáveis para implementar mudanças econômicas progressistas. As câmaras setoriais, com participação tripartite e presença nos diversos setores econômicos, poderiam favorecer a negociação em áreas específicas. Do ponto de vista do processo de negociação, podem ser encontrados alguns elementos interessantes na experiência de planejamento na França, resultando em decisões para as políticas públicas e indicações para as empresas, apesar das imensas diferenças de contexto entre um país periférico e uma economia central.
“Toda a política econômica no período de 2003 a 2006 deve ser concebida para viabilizar um crescimento médio de pelo menos 5%” (MAIS E MELHORES EMPREGOS, 2002). Ao Estado caberia tomar medidas para estimular o crescimento econômico. O objetivo de crescimento de 5% a 6%, ao ano, é factível diante da grande potencialidade do mercado interno brasileiro, das dimensões e características do parque produtivo nacional e das possibilidades de comércio exterior que podem ser construídas. Esse ritmo de crescimento, sustentado por longo período, é uma necessidade imperiosa e inadiável diante da estagnação econômica das duas últimas décadas, do gigantesco desemprego, da larga exclusão social e das persistentes desigualdades regionais. Essa expansão da economia deveria ser compreendida como um fator indispensável ao enfrentamento simultâneo das graves chagas sociais tão características da sociedade brasileira. Não há modelo de inclusão social coexistindo com recessão e desemprego. Nesse sentido, não se pode perder de vista uma informação essencial para todas as ações do novo governo: há um desempregado para cada quatro ocupados nas regiões metropolitanas, conforme as pesquisas do DIEESE (Departamento Intersindical de Estudos Sócio-Econômicos).
Reformar a inserção brasileira na globalização
“Rejeitamos a idéia de que a era dos Estados nacionais esteja superada e que devemos conformar-nos cada vez mais a renunciar cotas de nossa soberania” (TESES, 1997). A reforma da inserção (comércio e conta de capital) do Brasil na economia mundial é também necessária para a deflagração do novo ciclo de desenvolvimento. Depois dos desastres das aberturas comercial e financeira, não se pode duvidar da absoluta prioridade de reforma dos marcos regulatórios e dos mecanismos operacionais do nosso comércio exterior e das transações financeiras com capitais externos. Pode-se qualificar essa revisão profunda como a reforma chave para permitir o país escapar da armadilha da vulnerabilidade externa, reduzir a taxa de juros e ter chance de retomar o crescimento econômico.
O tipo de inserção internacional sempre foi um aspecto central nas condições de funcionamento da economia brasileira. A década passada representou um caráter subordinado e passivo na inserção do Brasil na economia mundial. “A abertura indiscriminada da economia nos anos 1990 cortou 2 milhões de empregos” (MAIS E MELHORES EMPREGOS, 2002). As aberturas comercial e financeira, a concentração de exagerado otimismo no papel do capital estrangeiro, a política macroeconômica de real sobrevalorizado (nos primeiros quatro anos do governo Fernando Henrique) e de taxas de juros elevadas, a aceleração do endividamento externo e interno, os reiterados déficits nas transações correntes no balanço de pagamentos criaram as condições de grave vulnerabilidade externa da economia brasileira.
Nos oito anos de governo Fernando Henrique, de modo inédito na história econômica brasileira, o país foi abalado por cinco episódios de crise nas contas externas, a saber: primeiro trimestre de 1995, repercutindo a crise no México; último trimestre de 1997, sob o abalo da crise no Sudeste asiático; de agosto de 1998 até o primeiro trimestre de 1999, após a crise na Rússia, com a desvalorização do real em janeiro de 1999; em meados de 2001; e na maior parte de 2002. Esses abalos ocorrem apesar do país ter pagado US$ 231 bilhões, de juros, amortizações e remessas de lucros e dividendos, entre 1994 e 1999.
O Brasil passou a depender de muitas importações. Na década da abertura abrupta, unilateral e sem planejamento, o coeficiente de penetração das importações na oferta doméstica cresceu aceleradamente. Entre os anos de 1990 e 2000, esse coeficiente no setor metal-mecânico era de 6,6% e passou para 24,4% e no setor de material de transporte era de 4,9% e atingiu 23,3%. Caberia vedar as importações de bens de luxo. Deveria-se proteger, de modo seletivo e temporário, a produção nacional de bens de consumo de massa, em um processo de substituição de importações. Em situações de vulnerabilidade externa, ameaça de destruição de setores produtivos e forte desemprego, são legítimas as medidas de proteção econômica, sem se resvalar para a autarquia do país, isolando-o.
Há uma armadilha herdada, que, ainda, cumpre ser desativada, a despeito do serviço já operado pela desvalorização cambial recente: não pode haver crescimento econômico porque há importante risco de insustentável taxa de expansão das importações, então se mantêm elevadas as taxas de juros a fim de bloquear o crescimento da economia.
Para escapar da pressão explosiva de importações, em decorrência da eventual retomada do crescimento econômico, seriam necessários significativos investimentos para a expansão da capacidade produtiva brasileira, ampliando, de modo sustentado, a oferta doméstica de bens, para substituir razoavelmente as importações. O governo Collor permitiu as aplicações de capitais externos em títulos e na Bovespa. Taxas de juros domésticas extremamente elevadas atraíram capitais de curto prazo, já liberados das restrições precedentes à sua movimentação. Esses capitais especulativos foram admitidos na operação de derivativos na Bolsa de Mercadorias e Futuros de São Paulo. Os controles sobre as remessas de divisas foram revogados. A liberalização da conta de capital expôs o Brasil à volatilidade dos fluxos internacionais de capitais. O regime cambial livre favoreceu a especulação e os ataques ao valor externo da moeda nacional, configurando-se bruscas variações no dólar, repercutindo nos preços domésticos e desaguando, por fim, na reiteração da política do Banco Central de elevação da taxa de juros. A desnacionalização de empresas no Brasil nos anos 1990 significou rápido e explosivo crescimento das remessas de lucros e dividendos, agravando o tradicional déficit na balança de serviços, já sobrecarregado pelo peso dos juros.
A reforma dos marcos regulatórios e das modalidades operacionais das transações financeiras com capital externo, da conta de capital e do mercado de câmbio deve dar um tratamento adequado aos problemas acima expostos. A centralização das operações cambiais no Banco Central é uma medida de prudência, em defesa de níveis de segurança das reservas internacionais, permitindo-se a identificação dos operadores com moeda estrangeira e o controle sobre essas operações, inclusive nas contas CC 5.
Novas políticas devem reverter a abertura para os fluxos dos capitais especulativos de curto prazo. Seria necessário limitar o acesso dos capitais externos à Bovespa. As emissões de títulos e as colocações de ADR deveriam ser restringidas. O regime cambial precisaria ser modificado, voltando-se ao câmbio administrado, vigente até 1990, com sua fixação e gestão pelo Banco Central, considerando as inflações interna e externa e o desempenho do comércio exterior.
Então, a partir de agora, os esforços do novo governo – ao formular as reformas referentes aos diversos aspectos que constituem o conteúdo da inserção internacional – devem ser orientados pelos critérios da soberania nacional e da retomada do desenvolvimento no Brasil. A entrada dos capitais externos de portfólio deve ser extremamente reduzida, enquanto o investimento externo direto deveria ser objeto de regulação por critérios seletivos, destinando-o a determinados setores econômicos, exigindo a satisfação de requisitos de desempenho das empresas.
Nas relações econômicas internacionais, o Brasil deveria preservar a diversificação, buscando realizar transações com países e regiões, indistintamente. O aprofundamento dos laços, inclusive com acordos bilaterais, tanto com a China quanto com a Índia serve aos interesses comerciais e fortalece certa resistência internacional às imposições econômicas dos Estados centrais. A China e a Índia fazem esforços de integração à economia internacional, porém preservam, tendo à frente a ação estatal, a construção de projetos nacionais. A China, em apenas dois anos, passou da 15ª para a 4ª posição, em 2002, dentre os principais países da relação de comércio com o Brasil.
O fortalecimento do Mercosul vincula-se à necessidade de retomada de crescimento nos seus países-membros, sobretudo Brasil e Argentina, do aprofundamento das relações interindustriais baseada na complementaridade das economias nacionais, de uma proporção extremamente significativa de comércio no interior do próprio bloco, na sua expansão para o conjunto da América do Sul, na preparação do processo da unificação monetária. O Brasil pode exercer uma liderança cooperativa nesse processo integração no âmbito do Mercosul, com destino à ampliação para a América do Sul, na perspectiva do Amercosul.
O Brasil precisaria recuperar sua participação no comércio mundial. O esforço exportador poderia ser um eixo complementar da estratégia de desenvolvimento, favorecendo maior participação brasileira no comércio internacional, inserção competitiva na economia mundial, estímulo à modernização tecnológica das empresas estabelecidas no país, direcionamento de filiais estrangeiras para vendas externas, redução da vulnerabilidade externa. Discutindo a situação brasileira, ainda em novembro de 2001, Aglietta chega a concluir que: “Hoje, a única maneira de reencontrar o dinamismo econômico é ter uma moeda que se desvalorize para poder ser competitiva. Mesmo que a demanda mundial seja baixa, quando se tem uma moeda competitiva, pode-se investir no comércio exterior” (AGLIETTA, 2001).
Depois de longos anos, a exportação brasileira tem um começo de recuperação, desde 2002, como reflexo direto da depreciação do real. Mas o importante saldo comercial de mais de US$ 12 bilhões, em 2002, decorreu majoritariamente do forte recuo das importações. A retomada do crescimento implicará em crescimento das importações. Dadas as condições produtivas nacionais, a corrente de comércio brasileira precisaria atingir um patamar superior, e com as exportações crescendo mais que as importações.
Há que se conter a pressão para especializar o Brasil como um exportador de commodities, salvo raras exceções como as exportações da Embraer. O nível das exportações poderia ser decisivamente influenciado por uma política tecnológica e de comércio exterior que contribuísse para a mudança da composição estrutural dos bens exportáveis, incorporando produtos diferenciados, com avançado conteúdo tecnológico e elevado valor adicionado. Na agenda neodesenvolvimentista deveria constar a tarefa de “transformar a estrutura produtiva, introduzindo nela os setores mais dinâmicos do ponto de vista de aumentos sistêmicos de produtividade e de fluxos de comércio e investimento internacionais – notadamente os setores intensivos em tecnologia [eletrônico, biotecnologia, novos materiais etc.] e produtores de bens de capital” (ERBER E CASSIOLATO, 1997, p. 42).
A reforma tributária, com as propostas de desoneração, poderá auxiliar no aumento da competitividade dos produtos brasileiros no exterior. Entretanto, na atual conjuntura recessiva mundial, as exportações têm seu potencial de dinamismo razoavelmente limitado, e, além disso, o Brasil não dispõe de empresas de capital nacional, com porte global, competindo internacionalmente em setores tecnologicamente avançados, onde a demanda cresce a taxas elevadas.
Por um novo modelo econômico
A criação do mercado de consumo de massas seria uma alavanca para um novo ciclo de crescimento no Brasil. Neste sentido, além da redução dos juros, é grave o problema da retração conjuntural do consumo em decorrência da violenta queda da participação dos salários na renda nacional durante o Plano Real. Nessas circunstâncias, o governo deve adotar medidas para contribuir para o alargamento massivo do consumo. Por exemplo, essa questão articula-se com a reforma tributária, ora em discussão, em que se deve lutar para que o foco da reforma seja os benefícios para a grande massa trabalhadora, com vistas à expansão da demanda. Isso se vincula à justiça fiscal, tanto do lado dos tributos, como do lado das despesas.
Assim, impõem-se tributação progressiva, isenção ou redução de impostos sobre bens de consumo de massa (alimentos, vestuário, material de construção), redirecionamento da carga tributária mais para a renda e patrimônio e menos para o consumo, programas de renda mínima. Do lado das despesas, há que se priorizar os gastos sociais e salta aos olhos que o elevadíssimo comprometimento dos recursos orçamentários com obrigações financeiras, como se herdou do governo Fernando Henrique, tem que ser interrompido.
Constata-se que o atual sistema tributário é marcado pelos tributos indiretos, cumulativos e regressivos ¹. As instituições financeiras têm sido excluídas de uma tributação mais significativa. Não foi regulamentado o imposto sobre grandes fortunas, pouquíssimo tributam-se heranças e doações, é uma insignificância a arrecadação do Imposto Territorial Rural. O governo federal aumentou o número e as alíquotas das contribuições, que não participam da composição dos fundos constitucionais para os estados e municípios. Diante dessa realidade, alinham-se os diversos interesses. Nesse sentido, a reforma tributária nunca será consensual, haverá ganhadores e perdedores, a partir da disputa entre setores econômicos e sociais e entes federados. Levantar-se-á a tradicional grita do capital contra os impostos.
A desoneração da tributação precisaria se voltar para a produção, exportações e também o consumo. Não se pode aumentar a tributação das empresas, mas também não se pode reduzir a carga tributária global, dadas as necessidades de reorganização e nova atuação do Estado. O propósito deve ser a redistribuição dessa carga tributária, fazendo com que os ricos, os detentores de grandes fortunas e patrimônios e os beneficiários de grandes lucros passem a pagar mais. Além da reforma, destaca-se a necessidade da elevadíssima sonegação e fraude de tributos.
A trajetória da indústria nas duas últimas décadas é motivo da mais grave preocupação. No balanço do setor industrial, destacam-se a quase estagnação no longo prazo e a instabilidade resultante dos ciclos de curta duração, constata Júlio Gomes de Almeida (2002). Confirmando o primeiro comportamento, observa-se que a taxa média de variação do PIB da indústria nos últimos 20 anos foi de apenas 1,7%. Essa taxa no período do Plano Real, até 2001, foi de paralisantes 1,5%, sob a forte concorrência externa e os elevados juros. O estratégico setor de bens de capital encolhe de 1995 a 1999. O setor de bens duráveis de consumo cresceu muito no início do Plano Real, mas defronta-se com grande queda desde 1997. É esclarecedor em muitos sentidos o crescimento negativo (dado o crescimento da população) do setor de bens não duráveis de consumo, após fugaz expansão com o início do Plano Real, evidenciando-se o encolhimento da massa salarial e a magnitude elevada do desemprego.
Para imprimir uma tendência nova e consistente na produção industrial são necessárias medidas enérgicas e profundas, de médio e longo prazo, para a substituição de importações, promoção das exportações, desenvolvimento tecnológico. Impõem-se o fim da cumulatividade tributária, redução da taxa de juros e crédito a longo prazo para o investimento. São esforços indispensáveis a fim de se liberar a expansão do setor mais decisivo na determinação da dinâmica do conjunto da economia. A necessidade é de que a indústria brasileira consiga uma mudança estrutural, em um processo de longo prazo, adquirindo competitividade, enfrentando a concorrência externa, adquirindo inserção internacional, com produtos de maior valor agregado, com elevado conteúdo tecnológico.
Os setores estratégicos para o investimento produtivo, a inovação tecnológica, e a retomada do desenvolvimento reclamam importante grau de participação direta do Estado na forma de empresas estatais produtoras de bens e serviços, como tem ficado demonstrado, por exemplo, nas áreas de transportes, energia elétrica, petróleo e petroquímica. Nas circunstâncias de um país como o Brasil, a presença de empresas estatais não é coisa do passado. As lições da privatização na década de 1990, como se vê hoje no caso do setor elétrico, de um lado, e os efeitos da globalização neoliberal e imperialista, de outro, oferecem um dado de realidade no sentido da exigência de manutenção da ação do Estado, sobretudo na infra-estrutura econômica brasileira. Além disso, o Estado deveria pressionar as empresas privatizadas para que adotem compromissos claros de investimentos. Segundo a Confederação Nacional da Indústria, são necessários investimentos da ordem de R$ 39 bilhões por ano em infra-estrutura, durante os quatro anos do governo Lula, nos setores de energia elétrica, petróleo e gás, ferrovias, sistema portuário e saneamento básico.
O setor de energia elétrica e as estradas e transportes, por exemplo, são gargalos para a volta do desenvolvimento econômico. A retomada do crescimento econômico do país não pode ser inviabilizada em razão da ameaça de colapso energético. O governo Fernando Henrique privatizou, desorganizou e estagnou a oferta de energia elétrica. O descalabro construído no setor elétrico evidencia nestes três fatos: 1) o período de racionamento de energia; 2) o contraste dado pelo comportamento da Eletricité de France, estatal estrangeira, colocada à frente da Light, que pratica aumentos das tarifas indexadas ao dólar, no Brasil, colaborando para a inflação, enquanto implementa uma redução média de 14,5%, em quatro anos, na França, favorecendo a competitividade sistêmica francesa; 3) a inadimplência da AES em relação aos empréstimos do BNDES. Portanto, a superação das restrições de energia e a revisão do modelo energético devem ser uma prioridade do novo governo.
Os anos 1990, sobretudo o período Fernando Henrique, presenciaram um vigoroso processo de desnacionalização. Uma das formas mais evidentes dessa nova penetração do capital estrangeiro na economia brasileira é dada pela aquisição de bancos e empresas dos mais variados setores, desde, por exemplo, energia, telecomunicações, autopeças até a indústria alimentícia. Por isso mesmo, a empresa nacional, sobretudo a pequena e média, deve ser objeto de um tratamento mais favorável do Estado em comparação com a empresa estrangeira, em relação, por exemplo, às compras governamentais. A mudança constitucional já ocorrida, em 1995, e as pressões internacionais, inclusive a proposição da Alca, contrapõe-se a essa distinção benéfica à empresa com controle de capital e gestão em mãos de residentes no Brasil.
A inovação tecnológica tem sido tradicionalmente financiada e desenvolvida pelo Estado no Brasil, mesmo que em insignificante proporção. Historicamente, destacavam-se os laboratórios públicos de pesquisa tecnológica, a exemplo do Centro de Pesquisas Elétricas (CEPEL-Eletrobrás), Centro de Pesquisa e Desenvolvimento (CPqD-Telebrás) e o Centro de Pesquisas da Petrobrás (CENPES).
Hoje, com as grandes mudanças regressivas na economia brasileira, agrava-se a dependência da importação de tecnologia pelas empresas. Uma maior quantidade de equipamentos, componentes e insumos para telecomunicações, setor elétrico etc. são adquiridos externamente, em detrimento de fornecedores nacionais. Na voragem das privatizações, aquisições externas, perderam-se ou reduziram-se os esforços de capacitação tecnológica nacional em empresas como Telebrás e Metal Leve. Desmantelaram-se centros de pesquisas e desenvolvimento, programas de financiamento de pesquisas foram desestruturados. Assim, há todo um esforço por ser feito para reabilitar a política de inovação no Brasil.
A política industrial de cunho tecnológico, com o novo papel do Estado, articula-se logicamente com aspectos de proteção econômica, com a questão da competitividade e com a promoção das exportações. A institucionalidade e operacionalidade nos marcos da interação sistemática entre políticas setoriais – industrial, agrícola, tecnológica e comercial – precisariam se refletir no fortalecimento das cadeias produtivas nas áreas da indústria, dos agronegócios, da mineração e dos serviços, repercutindo positivamente no crescimento doméstico, na substituição das importações e nas exportações.
A agricultura defrontou-se com perda de renda, retraimento de sua competitividade internacional dada a sobrevalorização cambial, quebradeira em razão das altas taxas de juros, desemprego e novo êxodo rural. Entretanto, no período mais recente, o incremento da produtividade do trabalho, a incorporação de técnicas modernas e a desvalorização cambial têm favorecido a agricultura voltada para a exportação, como atestam a supersafra do ano passado e o desempenho das vendas externas.
A reforma agrária massiva deveria ser um instrumento indispensável no novo modelo de desenvolvimento. A democratização do acesso a terra deve ser acompanhada de políticas de fortalecimento dos pequenos produtores, de viabilização da agricultura familiar e de condições de comercialização das safras, conforme um Plano Nacional de Reforma Agrária, como uma etapa imediata na mobilização social e transformação progressista no país.
A estagnação econômica, as restrições orçamentárias de Estados e municípios e o aprofundamento dos desequilíbrios regionais têm abalado o pacto federativo. O federalismo reclama políticas tanto de fortalecimento dos entes federados frágeis quanto de desconcentração econômica. O desequilíbrio é brutal: São Paulo concentra 35% da renda nacional, enquanto vinte estados detêm 22% da renda. A reorganização do Estado e o desenvolvimento econômico e social devem-se articular com a retomada e renovação das políticas, planejamento e aparatos institucionais para enfrentar o desafio estratégico da integração nacional.
A retomada do crescimento, retirando a indústria da estagnação, preservando o êxito da grande e moderna agricultura, inaugurando um novo tratamento da agricultura familiar, priorizando setores como construção civil e turismo poderiam contribuir significativamente na geração de empregos. Além disso, há necessidade de expansão e melhoria dos serviços públicos em educação, saúde, proteção ambiental etc., também repercutindo favoravelmente na criação de empregos. O combate ao desemprego exigiria outras medidas, obviamente, como a redução da jornada de trabalho, sem redução de salários, e a redução das horas extras.
A reforma trabalhista, conforme a expectativa dos mercados financeiros e a lógica neoliberal, é o aumento da flexibilização das relações de trabalho para suprimir direitos e conquistas trabalhistas, em um contexto de explosivo desemprego, expansão do trabalho informal e queda da massa salarial, a fim de reduzir ainda mais os custos das empresas com a mão-de-obra em um país já esmagado por insuportável concentração de renda. A grande, verdadeira e imediata reforma trabalhista no Brasil é a expansão da formalização do trabalho, a fim de se assegurar, pelo menos, os direitos legais aos milhões de trabalhadores que hoje são privados da mínima regulação do mercado de trabalho, com repercussão positiva no custeio da previdência e na ampliação dos fundos de poupança compulsória, como FGTS e PIS-Pasep.
A reforma previdenciária merece maior esclarecimento sobre a verdadeira realidade nessa área, porque hoje o tratamento deste tema encontra-se bastante viciado, sob as óticas dos mercados financeiros e da mídia, ignorando-se completamente as opiniões dos maiores interessados que são os trabalhadores e aposentados. Na previdência, há que se considerar: (i) os impactos da estagnação econômica, do desemprego e da queda do salário médio; (ii) os custos do sistema ao longo do tempo; (iii) as diversas fontes; (iv) a sonegação e a fraude; (v) a natureza das diferenças entre os atuais regimes de previdência; (vi) os aspectos da equidade, da proteção social e da responsabilidade do Estado. A “desvinculação das receitas de contribuições sociais (Cofins e CSLL), conforme emenda constitucional 27, (…) vem drenando recursos da seguridade social para o caixa do Tesouro. Além disso, em virtude do mecanismo de contabilização das contas do INSS, [justos] benefícios de caráter mais assistencial que previdenciário, normalmente concedidos à margem da obrigatoriedade contributiva, são considerados como benefícios do sistema contributivo” (PROGRAMA DE GOVERNO, 2002). A gritante flexibilização trabalhista vigente faz com que 56% da população ocupada, conforme dados da PNAD/IBGE-1999, não contribuam para o sistema previdenciário.
O desafio do financiamento do desenvolvimento
A taxa de poupança total registrada nos momento de maior ritmo de crescimento econômico no Brasil foi de apenas 23% do PIB. Trata-se de um persistente problema.
Agora, na perspectiva da retomada do desenvolvimento, volta à pauta a complexa questão do acesso a recursos em larga escala e a longo prazo para o investimento industrial, a infra-estrutura econômica e demais atividades vinculadas ao mercado interno. As lições da história e o passivo externo dos anos 1990 recomendam que o financiamento da retomada do crescimento deve contar principalmente com a poupança doméstica, apesar das limitações.
O registro histórico mostra que os bancos estrangeiros tinham forte presença no Brasil nos primeiros anos do século XX. Concentrados no comércio exterior e no mercado de câmbio, esses bancos tinham vínculos insignificantes com as atividades do mercado interno. Com a crise financeira internacional de 1929 e o processo de industrialização, cria-se, a partir dos anos 30, um sistema bancário nacional, e o governo passa a controlar o mercado cambial.
Em 1952, o Estado cria o BNDE, responsável pelo Fundo de Reaparelhamento Econômico, com recursos oriundos do adicional de 15% sobre o imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas e 25% das reservas técnicas das companhias de seguro. Os setores de energia e transporte têm a totalidade dos recursos do BNDE em 1952, 82% desses recursos em 1956 e 62% em 1961, quando a siderurgia fica com 22%. O BNDE, a partir de 1968, conta com recursos orçamentários e parte da arrecadação do IOF.
Carlos Lessa, presidente do BNDES, tem dito que o BNDES voltará a ser um banco de desenvolvimento ², depois da negativa experiência de banco de negócios dos oito anos do governo Fernando Henrique. O BNDES tinha se desviado para financiar privatizações e empresas multinacionais.
As instituições financeiras públicas – BNDES, BB, CEF, Bancos regionais – deveriam ter uma política seletiva de abertura e ampliação do crédito, em condições favoráveis, para a pequena e média empresa, para a agricultura familiar, para as regiões atrasadas economicamente.
Esse crédito, a partir das instituições públicas, busca a criação de emprego e geração de renda, e deveria, a depender da natureza de cada empreendimento, favorecer aspectos específicos como as condições de vida (habitação, saneamento, saúde, educação), inovação tecnológica, exportações etc. Ainda assim, é de custo elevado, numa comparação internacional, o financiamento do BNDEs – com TJLP, spread e ainda as taxas dos bancos intermediários. Portanto, as linhas de crédito deveriam ter seu custo rebaixado e ter sua oferta direcionada para as empresas nacionais, para a substituição de importações e para as exportações.
A década de 1970 assiste ao processo de concentração bancária e no final dos anos 1980 consolidam-se os conglomerados bancários. Trata-se da expansão do sistema bancário em bases nacionais (público e privado). No período de governo do presidente Fernando Henrique – com a quebra de grandes bancos privados nacionais, privatização e aquisição -, fomentou-se, unilateralmente, sem reciprocidade internacional, o crescimento da presença de bancos estrangeiros no Brasil. Prometia-se maior competição e, por isso, melhoria do acesso ao crédito.
Na verdade, mantém-se o oligopólio bancário, com spreads extravagantes, com recorde de lucros ³, beneficiado com a política vigente de altas taxas de juros, especializado no ganhos seguros advindos dos títulos da dívida interna e dos rendimentos dos créditos de curto prazo, contatados com taxas de juros de até 150% ao ano. Para os setores produtivos, persiste a histórica ausência do crédito de longo prazo, necessário aos investimentos, e tornou-se proibitivo até mesmo o crédito para capital de giro. O crédito ao setor privado não chega a 30% do PIB. A reforma bancária justifica-se por esse lastimável e crônico estado de coisas.
“Nosso governo terá uma atitude ativa no sentido de buscar a redução das taxas de juros” (PROGRAMA DE GOVERNO, 2002). Uma medida central e decisiva é a redução do spread hoje praticado pelos bancos. Com a reforma busca-se um sistema financeiro voltado para os requerimentos do desenvolvimento do Brasil. Os bancos públicos (Banco do Brasil, Caixa Econômica, BNDES, Banco do Nordeste-BNB, Banco da Amazônia-BASA), com um papel diferenciado, deveriam assumir a oferta de crédito a taxas de juros menores, favorecendo projetos estratégicos, porém de pouca rentabilidade, e contribuindo para induzir o sistema bancário a operar linhas de crédito mais favoráveis para o setor produtivo. A coordenação da política de crédito volta-se para a convergência dos fundos dos bancos públicos, viabilizando-se, seletivamente, recursos para os investimentos governamentais e as políticas especificas, a exemplo do apoio às exportações.
A própria volta do crescimento, com a redução do desemprego, ampliaria os fundos de poupança compulsória (FGTS, PIS-Pasep e FAT). Esses fundos capitalizam o BNDES e têm sido a única fonte do financiamento de longo prazo no Brasil.
A “poupança externa”, como por exemplo se apresenta agora em 2003 na faixa de até 2% do PIB, tem aspecto complementar. O investimento direto externo seletivo é importante ao satisfazer os requisitos de ampliação da capacidade produtiva do país, direcionar-se sobretudo às vendas externas, favorecer a modernização tecnológica.
Difunde-se insistentemente a idéia de que não há prévia acumulação de poupança doméstica para o financiamento do crescimento. Entretanto, o próprio processo de incremento da produção significa expansão da renda, a qual, em uma parte, passa a constituir poupança, como explicava Keynes.
A dinâmica econômica – dada por taxas expressivas de crescimento do produto, cumulativamente – viabiliza a capitalização interna das empresas, no que diz respeito aos lucros retidos. Essa nova dinâmica poderia ser associada ao surgimento de condições para uma reforma redirecionando o crédito bancário, para o investimento industrial no longo prazo, e fortalecimento do mercado de capitais, permitindo-se a expansão da emissão de ações.
Entretanto, não se pode perder de vista que “um dos motivos por que o funding interno não atende a todas as necessidades do financiamento a longo prazo é que mais da metade da população brasileira não tem sobra de renda líquida para aplicar no mercado financeiro. A maior especificidade (e perversidade) do capitalismo brasileiro é que ele tem a pior concentração de renda entre os países industrializados” (COSTA e DEOS, 2002, p. 37).
A hipótese do crescimento econômico implicaria aumento da arrecadação de receita, favorecendo, na implementação do plano de desenvolvimento, a mobilização de recursos pela União e Estados para financiamento por repasses fiscais e para concretização de empreendimentos e atividades. Com o crescimento econômico, haveria a redução do desemprego fazendo crescer os fundos sociais utilizáveis no financiamento da economia, enquanto a expansão do mercado consumidor favoreceria a ampliação dos lucros, viabilizando o autofinanciamento das empresas.
Assim, dada a importância macroeconômica e social da distribuição de renda, há que se considerar que o sistema tributário, a administração fiscal e as conseqüências dos encargos financeiros da política de endividamento interno público devem ser avaliados segundo os objetivos concernentes à retomada do crescimento econômico, baseado no mercado interno de massas.
Historicamente, o mercado de capitais sempre foi incipiente no Brasil. Depois das privatizações, o volume de negócios da Bovespa despencou, oscilando entre três ou seis, sete centenas de milhões de reais, ao dia, em desacordo com o tamanho da economia brasileira. Recuou o número de empresas de capital aberto. Há limitadas emissões de ações. A volta do crescimento econômico e uma perspectiva de certo fortalecimento de grupos econômicos nacionais constituiriam uma possibilidade de um novo significado ao mercado acionário na formação da poupança no Brasil.
Um dos grandes interesses na reforma da previdência no Brasil deve-se à possibilidade de se passar a contar nos mercados financeiros com grande volume de recursos novos, através dos fundos de pensão. Isso seria viabilizado pela previdência complementar e privada para os valores de aposentadoria acima do teto dos regimes básicos. Alega-se que essa privatização da previdência seria um mecanismo decisivo no financiamento da economia. Porém, cabe esclarecer que há grandes riscos com a expansão descontrolada dos fundos de pensão, tanto para os próprios trabalhadores que poupam com vistas à futura aposentadoria, quanto para a dinâmica macroeconômica no país 4. Richard Farnetti denuncia o papel negativo da supremacia dos fundos de pensão (e também dos fundos de investimentos coletivos), identificando sua atuação com as causas de crises cambiais e financeiras, desmonte de estratégias produtivas de empresas (dominadas pela governança corporativa dos fundos). Ele afirma que a camada ultraminoritária de gestores dos fundos de pensão monopoliza as decisões, além de principal beneficiária dos lucros, concluindo que é “impossível considerar os verdadeiros proprietários” destes fundos (FARNETTI, 1998, p. 205).
Chile, Argentina, Uruguai e Peru adotaram formas de previdência pelo regime de capitalização de contas individuais de poupança dos trabalhadores. Essa privatização da previdência, com os fundos de pensão, não contribuíram para evitar a emergência de processos de grave crise econômica e social, como os últimos anos têm revelado a respeito de quase todos esses países latino-americanos.
Reforma do endividamento
Uma reforma fundamental para a retomada do crescimento, a partir do governo Lula, é a renegociação das dívidas externa e interna. É a reforma do endividamento, porque os encargos financeiros estão tornando-se impagáveis, asfixiando o Estado e a economia. A dívida pública interna e externa bruta, no final do ano passado, chegou a R$ 1,25 trilhão, passando o PIB. Tornou-se insustentável o absurdo nível de transferência de recursos orçamentários para os rentistas. A retrospectiva histórica evidencia que a opção pelo “excessivo” apelo aos recursos externos resulta invariavelmente em vulnerabilidade externa, como atestam as suspensões do pagamento da dívida em 1989, 1914, 1931. No final dos anos 1950, no governo Juscelino, há a ruptura com o Fundo Monetário Internacional. No final dos anos 1970 desenvolve-se a estatização da dívida externa. Os anos 1980 são o período da crise da dívida externa, com a moratória em 1987. Entre 1994 e 2001, o passivo externo cresceu 102,1% e a dívida externa bruta, 42,5%. Nesse período, a dívida externa cresceu, a despeito do país ter efetivado o pagamento de vultosas cifras. As insuportáveis altas taxas de juros internas, inviabilizando o crédito doméstico, funcionavam como estímulo para o acelerado endividamento privado no exterior.
Hoje, há importantes empresas brasileiras muito endividadas, com dificuldades de refinanciamento, desde o agravamento da vulnerabilidade externa, a partir de 1998. Esses problemas agravaram-se com a desvalorização do real, desde janeiro de 1999, apesar das operações de hedge.
A reforma da dívida pública externa brasileira deveria observar a preservação dos créditos comerciais e das operações legítimas; a auditoria dos contratos e operações, identificando-se as dívidas ilegítimas; e o controle prévio e sistemático do Congresso Nacional sobre endividamento, limite orçamentário para pagamento das obrigações externas, classificação entre dívidas destinadas à negociação e obrigações passíveis de suspensão do pagamento 5.
A dívida mobiliária federal passou de R$ 61,7 bilhões, em dezembro de 1994, para R$ 639,4 bilhões em meados de 2002, apesar do governo Fernando Henrique ter contado com os recursos das privatizações e ter deixado de fazer investimentos. Juros são capitalizados, acumulando-se os encargos da dívida. Novos papéis são emitidos, refinanciando a maior parte dos encargos de títulos precedentes.
O Banco Central, sem responsabilidade fiscal, patrocinou hedge, em proporções abusivas, sangrando recursos públicos, mediante a correção cambial dos títulos da dívida pública em 2002, como já tinha feito largamente no segundo semestre de 1998, em 1999 e em 2001. É assim que o governo torna-se presa fácil dos especuladores, que aposta contra o real, a fim de obter lucros imensos, como mostram os prejuízos de R$ 11 bilhões do Banco Central apenas no primeiro semestre de 2002.
No período da tímida tentativa governamental de mudança nas condições dessa dívida, com remodelagem do mercado primário e estímulo ao mercado secundário, em 2000 e 2001, verifica-se que o mais longo título prefixado era de apenas 18 meses. Os elevados e certos rendimentos dos papéis públicos não motivam os grandes operadores dos mercados para que prefiram alongar e prefixar os títulos.
O Tesouro e o Banco Central deveriam iniciar a implementação, ainda em 2003, a depender das condições macroeconômicas, de um programa de conversão de títulos, negociando o alongamento e a mudança do perfil da dívida pública federal interna, com prevalência significativa de papéis prefixados. Preparando gradualmente as condições para o momento de implantação desse programa, o governo, diante das necessidades de refinanciamento da dívida, em algumas colocações de títulos novos, buscaria uma combinação envolvendo títulos com prazos maiores e taxas de juros menores relativamente, redução dos títulos atrelados ao dólar, aquisição de parcela dos títulos pelos bancos públicos e certa proporção de emissão de moeda para pagamento no vencimento de parcela das obrigações (OLIVEIRA, 2002). Essa reforma da dívida pública, dados sua precedência e impacto na dinâmica econômica geral, não pode ficar esperando longamente pela prévia situação de redução da vulnerabilidade externa, a retomada do crescimento econômico e a minimização das dimensões dos encargos financeiros diante das possibilidades orçamentárias.
Pautar o debate do neodesenvolvimentismo
Na economia não existem modelo e estratégia neutros em relação aos interesses nacionais e sociais. O neoliberalismo impôs suas reformas, argumentou sobre a seqüência dessas alterações, mas o resultado, no final da década de 1990, foi a regressão econômica, como ensina a Argentina, e o desemprego massivo, como evidencia o Brasil. Mais do mesmo tem sido a proposta das instituições financeiras internacionais, impondo a chamada segunda geração de reformas, que, no caso do Brasil, seriam as reformas tributária, previdenciária, trabalhista etc., além da independência do Banco Central e continuidade das privatizações, por exemplo, dos últimos restantes bancos estaduais.
No âmbito da gestão da conjuntura macroeconômica, ao que parece, há setores do novo governo sensíveis às respostas convencionais, como demonstram a persistência da política de absurdas taxas de juros – eficaz na geração de desemprego -, e os cortes orçamentários e ampliação da meta de superávit primário para insuportáveis 4,25% do PIB, a fim de se destinar recursos para credores financeiros. Adota-se uma política pró-cíclica, extremamente ortodoxa, retraindo os elementares mecanismos de gastos públicos que seriam necessários para estimular a demanda agregada, contribuindo, conjunturalmente, para a recuperação do nível de atividade da economia. O governo – com os ministérios e o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – deveria ouvir a sociedade civil, e formular uma proposta de projeto nacional, em que constassem os princípios das reformas e as diretrizes do plano de desenvolvimento. Caberia polarizar a atenção da sociedade, pautando o debate em torno de um planejamento do desenvolvimento econômico e social, em vez de se galvanizar a opinião pública com a insistência em contra-reformas.
O Conselho, apesar da exagerada presença empresarial, deveria ser mais um espaço para explicitação dos interesses e aprofundamento dos debates sobre as propostas do desenvolvimento econômico. Há que se perceber que no Conselho não há possibilidade de certa equiparação entre as partes e solução dos problemas cruciais, em razão do mero diálogo entre um representante do grande capital e um líder sindical. Esperar identidade de opiniões na sociedade brasileira, tão profundamente desigual, em torno de reformas e mudança do modelo econômico, é mais o cúmulo da ingenuidade do que sagacidade política. A condução das mudanças deve requerer concertação política, o que difere de pacto entre classes sociais.
Os banqueiros, os grandes investidores financeiros nacionais e estrangeiros, os beneficiários da política econômica anterior não querem, em hipótese alguma, perder posições nos seus esplêndidos ganhos. A mídia opera como se fosse um grande partido para a conservação do status quo. As reformas e a mudança de modelo econômico produzirão vencedores e perdedores, relativamente. A transição para um novo modelo econômico não pode ser confundida com preservação da política econômica neoliberal nem mecanismo de retardamento da mudança. Um fator político decisivo para a mudança do modelo econômico é a afirmação e consolidação da nova coalizão de forças no poder, afirmando a hegemonia das correntes progressistas, a partir da implementação de um alternativo projeto nacional, social e democrático.
*Renildo Souza é economista e membro do Comitê Central do PCdoB.
Notas:
1. A carga tributária em 2002 foi distribuída da seguinte maneira: bens/serviços: 48,32%; salários: 27,42%; capital e outras rendas: 16,48%; patrimônio: 3,41%; comércio exterior: 1,67%; demais: 2,70% (ESTUDO, 2003).
2. O BNDES vulnerabilizou-se bastante com empréstimos vultosos, sem garantias sólidas, sobretudo no processo de privatização. Hoje, o BNDES enfrenta algumas dificuldades, a exemplo da insuficiência de, pelo menos, R$ 6 bilhões, para garantir o seu orçamento de R$ 34 bilhões, em 2003 (BNDES, 2003).
3. Em 2002, a rentabilidade média do setor bancário foi de 24,5%, com melhor resultado em cinco anos já marcados pelas grandes remunerações dos bancos. O aumento de 89,5% fez com que os lucros saíssem de R$9,27 bilhões, em 2001, para R$ 17,58 bilhões, em 2002. “A maior parte do resultado veio da elevação dos juros e da desvalorização cambial, que remuneraram os papéis indexados à Selic (as Letras Financeiras do Tesouro, pós-fixadas) ou aqueles corrigidos pela variação do dólar (os contratos de swap de câmbio, ou as Notas do Banco Central – série Especial)”, diz Erivelto Rodrigues, presidente da consultoria Austin Asis (RENTABILIDADE, 2003).
4. Os Estados Unidos e a Inglaterra são os mercados em que houve um crescimento explosivo dos fundos de pensão, a partir dos anos 1960 e 1970. Isso contribuiu para uma transformação estrutural em favor de finanças desreguladas, de mercado, com operações especulativas e submetidas ao curto prazismo, favorecendo a vulnerabilidade sistêmica a partir da globalização financeira.
5. A especulação e a volatilidade nos mercados financeiros internacionais promovem e sustentam um estado de vulnerabilidade sistêmica global, o que tem significado uma espada de Dâmocles especialmente sobre os chamados mercados emergentes, ou seja, países industrializados, porém periféricos, como o Brasil. Nessas condições, surgem apelos por uma nova arquitetura financeira internacional. Com propostas alternativas, apresentam-se organizações como ATTAC (Associação para a Tributação sobre Transações Financeiras e de Apoio ao Cidadão) e o CADTM (Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo).
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EDIÇÃO 69, MAI/JUN/JUL, 2003, PÁGINAS 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28