– Cara, não me fale em desinteria!

      – Por quê?

      – Nossa, nem te conto. Já se passaram dezesseis anos, mas até hoje não consigo me esquecer daquele congresso.

      – Que congresso?

      – Alguns o conhecem por congresso do racha, quando o MR8 abandonou o congresso e começou o processo para formação de uma outra entidade nacional, paralela à UBES. Outros o conhecem como o primeiro congresso de sua vida, e a grande maioria o conhece como o congresso da cagada. Foi o primeiro congresso que participei, estava lá na grande bancada da UJS; todos gritávamos palavras de ordem. Chegamos na quinta de manhã, depois de uma longa viagem de Florianópolis a Brasília. Estávamos empolgados, nos sentíamos os fortes e prontos para derrotar a oposição à nossa entidade maior. Estava tudo bem, até depois do almoço.

      – E aí, o que aconteceu?

      – Bom, foi como um daqueles filmes de ficção científica. Como um ataque silencioso de alienígenas. Primeiro eu vi – mas até aí não posso garantir se já se tratava do ataque propriamente dito – um garoto sair sorrateiramente de nossa bancada e ir em direção ao banheiro. Com o passar das horas, a tarde e os debates ficando mais intensos, mais pessoas se dirigiam aos banheiros. A coisa foi ficando visível. De repente se via a gurizada desmaiando aqui e ali; os dirigentes começaram a perceber que não se tratava de focos isolados, mas sim de um grande ataque de desinteria. Todo o congresso estava contaminado por uma bactéria conhecida pelo estranho nome de staphylococcus aureus que veio escondidinha nos marmitex dos estudantes.

      – Caramba! Te atacou também?

      – Até aí não. Fui examinando as informações que chegavam. Uns diziam apavorados: “Tem que tomar muito líquido, tomar coca-cola faz bem”. Outros diziam: “Tomem muito líquido, mas cuidado com a coca-cola, não faz bem”. Num momento eu estava com a coca (cola, tá?) na mão e a primeira informação na cabeça quando chegou a segunda. Joguei o refrigerante fora. Quando voltaram com a primeira informação já era tarde, eu estava sem o refrigerante e sem dinheiro. Eu estava ainda bem quando um dos dirigentes da nossa entidade estadual de Santa Catarina reuniu a bancada e começou a pedir calma para todos, dizia que era algo simples, que nada ia acontecer com os estudantes (enquanto ele falava passava enfermeiros levando pessoas para os hospitais da região), que não nos preocupássemos e… Desmaiou, o cara desmaiou! Deu um daqueles gritinhos rápidos, meio estranho, do tipo aaaii e desmaiou, na frente de todos que estavam, até aquele momento, calmos.

      – E aí?

      – Aí foi cada um por si. Eu estava calmo, mas minha barriga não. O tal do staphylococcus aureus me achou e me levou via aérea para o banheiro mais próximo, por coincidência, o mais sujo, mesmo porque não existia banheiro limpo nem quando estava tudo bem. Fiquei numa fila de jovens pálidos e suados por alguns minutos e felizmente consegui entrar no box que, apesar de imundo, tive a impressão de ser o paraíso. Estava lá usufruindo meu direito de estar ali, da minha oportunidade única de poder por pra fora tudo que estava sentindo, quando um estudante perdeu a paciência e, como eu já estava a mais tempo dentro daquele banheiro, começou a suplicar com uma voz que misturava desespero, concentração e um forte sotaque nordestino: “Irmãozinho, por favor, me ajude. Veja, estou desesperado. Ai, meu padim padi Ciço. Será que é meu fim? Irmãozinho, me atenda por favor, estou apertado”. Lá dentro eu ficava imaginando a figura desesperada do outro. As pernas cruzadas para não deixar tudo cair por terra, as mãos batendo freneticamente na porta, o rosto suando em bicas e o staphylococcus aureus lhe atacando por dentro. Então eu disse, para tentar ganhar tempo: “Calma, estou com diarréia”. E ele lá de fora: “Ôxe, eu também num tô, não!?”

      Fui solidário e saí. Eu estava melhor, procurei ver em que pé estavam as coisas, comecei andar pelo colégio onde acontecia o congresso, tinha merda por todo lado, menos nas pias. Apesar da caganeira, nada estava quebrado, tudo em ordem. De repente. Ai. Fui para a rua, não consegui mais usar os banheiros entupidos do colégio. Andando meio desesperado, era um bairro residencial, encontrei um colégio infantil, um tipo de creche. Fui falar com algumas mulheres que estavam na porta apreciando a correria. “Moça, posso usar o banheiro da escolinha, estou muito necessitado”. E as mulheres: “Ah! Você é lá do evento da caganeira?” “Sou, sim. Mas veja, moça, não tenho muito tempo”. “Olha, só tem o banheiro das crianças, é tudo muito pequeno”. “Não tem problema, não sou muito exigente numa hora destas”. Fui. Era tudo realmente muito minúsculo. Era tão pequeno o vasinho que eu tinha que me aliviar no estilo prestação: uma aliviada, uma descarga; uma aliviada, uma descarga.

      – Rapaz!

      – Pois é, e o pior não foi isto.

      – O que foi.

      – O pior é que quando eu estava mais aliviado, com as costas doendo por está sentado em um local tão baixo; depois que pude abrir os olhos e limpar o suor da testa, dei de cara com o cascão na parede logo em frente do vaso rindo pra mim e com um balãozinho saindo de sua boca que dizia: “Eu não tomo banho por que sou Cascão, não seja cascão se limpe bem, mas economize papel”. Não ri, não. Aquilo me deixou traumatizado. Até hoje não tenho coragem de comer marmitex e não vou muito com a cara do Cascão.