Espiou pela fresta. Viu-a lá fora de braços cruzados, balançando os quadris em sinal de impaciência. "Tá puta comigo", pensou. Imaginou todas as rotas de fuga: pelo fundo, não dava. O cachorro ia fazer aquela festa e lá se ia a mentira de que não estava em casa. Pela janela do quarto, difícil. Sobrado alto. Depois, a vizinha, que vive varrendo o quintal, ia cacarejar até não mais poder. Capaz até de chamar a polícia. Tinha o porão. Mas o vitrô era tão miúdo que nem criança passava ali.

      – O que fazer, meu Lênin?!

      Situação difícil. Não tinha materialismo-dialético que resolvesse.

      Conheceu-a numa reunião do Partido. Filiada nova, vinha com aqueles olhos lindos de quero saber por quê. Ele, destacado para fazer a intervenção inicial, já tinha traçado toda estratégica e tática de abordagem.

      Tomaram café juntos. Juntos, marcaram o cinema. E juntos se embolaram no quarto dele, para, a partir daí, entabularem uma relação que já ia pra quase um ano. Ano do qual seis meses foram o maior love e, os seguintes, marcados por infidelidades dele e iras santas da parte dela.

      A campainha tocou mais uma vez.

      – Eu sei que você está aí, Armando! Abre essa porta.

      Ih, vai dar barraco. E ele odiava barraco. A mãe dele costumava armar uns lá na vila onde nascera. O pai chegava balão e a velha falava o monte. Só que aos berros. A vizinhança inteira ouvia. E ele morria de vergonha.

      O negócio era abrir a porta. Afinal, ele era um homem ou o quê? Resolveu não insistir na pergunta. Foi ao espelho, bagunçou o cabelo, tirou a roupa, pôs um calção, desarrumou a cama, arranjou uma cara de sono e foi enfrentar seu destino. Atendeu-a esfregando os olhos.

      – Oi, linda. Faz tempo que tá aí?

      – Cê não tem vergonha, não, Armando?

      – O que foi, meu amor…?

      – Fazer de conta que tava dormindo?!

      – Como fazendo de conta? Tava no maior sono e…

      – Armando, uma vez na vida, assuma suas pataquadas!

      – Olha pra isso! Cê vem na minha casa, fica gritando na minha porta e ainda vem me chamar de mentiroso?

      – Eu, gritando?…

      – É, gritando, apertando a campainha feito uma doida. Tá pensando que não ouvi?

      – Como, se você tava dormindo?

      Silêncio. Ele, mudo, piscando; ela, de short, as coxas poderosas tremelicando de nervoso, mão esquerda no quadril, mão direita pendente, segurando um livro.

      – Linda, senta aqui. Senta, vamos conversar.

      – Conversar o que, Armando?

      – Sobre nós, nossa relação. Sabe, eu tive pensando. Acho que tudo tem a ver com um sentimento de posse, entende?

      – Sentimento de posse…

      – É, sei lá, acho que esse lance de ciúme tem até uma dimensão ideológica…

      – Dimensão ideológica…

      – Tipo assim uma visão burguesa de relaç…

      Não deu tempo de terminar. O livro pegou de quina em sua testa e ele foi ao chão. Nem viu ela sair. Só ouviu a porta bater. Ergueu-se zonzo, ainda sem saber direito o que tinha acontecido. No chão, viu o que o atingira: "Clara Zetkin e a emancipação feminina".