“Os países [estão] 'amarrados' por uma violenta blindagem liberal. Essa é a realidade, o resto é poesia!”

      Essa é uma frase escrita por um comunista, muito amigo meu, na Tribuna de Debates da 9ª Conferência Nacional do PCdoB. Ele é do Pará, jornalista. Não sei se é apreciador de poesia. Creio até que seja. Contudo, e apesar de comunista, jornalista e meu amigo, devo dele discordar. Não de que haja uma “violenta blindagem liberal” a amarrar nosso país. Mas de que poesia e realidade vivam em divórcio; de que poesia é fraseologia vazia, ou viagem na maionese.

      Essa concepção de poesia é muito comum. Os poetas são sempre encarados como sonhadores, seres de outro planeta, envoltos numa aura romântica. A poesia, algo inofensivo, feito para moças e almas delicadas, preenchedora de tempo livre, própria para o lazer do espírito e viagens com ou sem canabis. Numa expressão, poesia serve mesmo é pra encher lingüiça.

      Para pessoas objetivas e dadas a análises rigorosas e fundamentadas, como meu amigo, poesia é coisa subjetiva, feita de inspiração: baixa o santo, o cara senta, pega um guardanapo e escreve um poema. “Faz aí um poema, fulano”, pedem os amigos. E quando o cara manda à merda, o pessoal estranha e se pergunta que diabo de poeta é esse que faz caso de uns versos pros amigos. Poeta que é poeta, diz o senso comum, improvisa, faz ali no ato. 

      Platão, um dos três maiores filósofos gregos, discípulo de Sócrates, mestre de Aristóteles, expulsa, em um de seus textos, os poetas da República. Não sem alguma razão: poeta pode ser, de fato, um bicho perigoso. É só lembrarmos Camões, criador de Os Lusíadas, exilado na Índia. Lembremos também Castro Alves, abolicionista, não muito bem quisto pela monarquia e pelos pais das donzelas. Lembremos, antes, o inconfidente Cláudio Manuel da Costa, “suicidado” na prisão como, séculos depois, o foi Herzog, companheiro de profissão de meu amigo jornalista. E já que tocamos no assunto, podemos citar o exílio de Ferreira Gullar, durante a mesma ditadura que matou Herzog, e de Brecht, durante o nazismo alemão; o suicídio de Mayakóvsky; as reiteradas expulsões de Pablo Neruda, do Chile; a caça fundamentalista dos aiatolás a Salman Rushdie; os livros queimados pelos discípulos do Füher e pela Inquisição; e Saramago auto-exilado em Lanzarote por conta de seu Evangelho. A lista é longa. A vida, breve.

      Donde vem esse pânico do poder diante do espectro da poesia?

      Porque poesia é, meu amigo e meus pacientes leitores, como tudo que é humano, instrumento de intervenção humana na realidade: para uns, esteio de análise; para outros, anzol que pesca verdades não palpáveis pela razão. Para muitos, arma de combate contra uma realidade adversa à liberdade e ao povo (essa categoria difusa que insiste em crescer e chamar-se operário, camponês, trabalhador – escravos modernos).

      Não sou jornalista, embora exerça o ofício. Sou escritor. E comunista, como meu amigo. Na minha humilde opinião de praticante da arte que se escreve e reconta o mundo para recriá-lo outro possível, poesia é instrumento de transformação da realidade. Há os que se arrepiem diante de uma assertiva dessas. Acadêmicos, torcem os narizes de cera. Mas o fato é que muitos – dentre eles, certamente, não está meu amigo – nos querem expulsos da República, assim como querem expulsos os comunistas. Por que será?