Dona Hermenegilda estava convencida: o feijão estragara. Também, dois dias fora da geladeira, só podia mesmo estragar. Bem que tinha sentido um cheiro de azedo ontem à noite, quando veio beber água na cozinha. Mas o sono era tanto; tanto tinha sido o trabalho durante o dia, que nem ligou uma coisa na outra, e voltou se arrastando pra cama.

      Odiava quando o feijão azedava. Temperava-o com tanto capricho, apurava o caldo pra ficar no ponto certo, calculava antes o tempo exato do cozimento para que não ficasse nem duro demais, nem desmanchado, que, quando via aquela espuma característica, ficava por conta.

      A culpada era sempre Marina. Chegava tarde da escola, metia qualquer colher dentro da panela, jantava e depois largava lá tudo aberto. E a Joana, sua cunhada, no dia seguinte, ao invés de tampar e guardar na geladeira, deixava do jeito que encontrava. “Ah, Gilda, não vai ter que esquentar mesmo pra comer depois? Então: já fica no fogão direto, uai!”

      Bom, não adianta chorar o leite derramado (ou o feijão estragado). O negócio é jogar esse fora e cozinhar outro. 

      Pegou a panela, acrescentou um pouco de água, mexeu e, não sem nojo, despejou tudo na privada. Praguejando, voltou à cozinha, lavou tudo e foi escolher meio quilo de feijão. Pra adiantar, já colocou água pra ferver.

      Neste meio tempo, sua mais nova acordou. Estremunhada, sentou-se na cama se coçando. Lembrou, de repente, que não tinha feito a lição ontem à noite. Tombou pra trás com um “não acredito!”. Ficou uns instantes batendo os punhos fechados no colchão, deu um sopro de aborrecimento e decidiu por se levantar.

      “Deixa eu escovar os dentes logo, vai” – pensou. Entrou no banheiro para o xixi matinal regulamentar. Quando levantou a tampa da privada, “Argh!! Que nojo!”.

      – Mãe, quem foi que não deu descarga aqui? 

      – O quê?

      – Usaram o banheiro e não deram descarga de novo! Aposto que foi o pai, aquele folgado!

      A mãe chegou até a porta pra saber do que se tratava.

      – Que foi, filha? 

      – Olha pra isso!

      – É feijão.

      – Credo! Ele não faz digestão não?

      – Ele quem?

      – O pai. 

      – Não, menina, isso é feijão azedo. Fui eu que joguei aí.

      – Ah…

      – Seu pai saiu tem tempo.

      – E custava a senhora dar descarga? 

      – E vai cair a sua mão se você der? Todo mundo pode esquecer alguma coisa aqui nessa casa, eu não?

      A menina, contrariada, deu descarga aos engulhos, enquanto dona Hermenegilda voltava pra cozinha. No caminho, foi pensando nas coisas a fazer. Diante da pia, lembrou do marido e imaginou como seria bom poder jogar na privada tudo o que estragasse seu dia.