O mundo inteiro discute a biossegurança. No Brasil não tem sido diferente. No ano passado, depois de ter editado duas medidas provisórias sobre a soja transgênica do sul do país, o governo Lula enviou ao Congresso Nacional o projeto de Lei de Biossegurança (nº 2401/03), que disciplina as normas de segurança e fiscalização de atividades que envolvam Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) e seus derivados.

O Projeto do Poder Executivo começou a tramitar na Câmara dos Deputados em outubro de 2003. No mês seguinte, foi criada a Comissão Especial para oferecer parecer a respeito disso e designado o deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP) para relatá-lo. Depois de realizar vários seminários, audiências públicas e de ouvir pesquisadores, ambientalistas, entidades, parlamentares e a sociedade civil em geral, Rebelo apresentou seu relatório.

Antes que o relatório fosse submetido à apreciação da Comissão Especial, Aldo Rebelo licenciou-se da Câmara para assumir o ministério da Coordenação Política do Governo Federal. Fui, então, escolhido o novo relator do Projeto de Biossegurança. Recebi de Rebelo um parecer, resultado de muito debate, que era consistente, avançado e que colocava o Brasil na vanguarda em termos de legislação em biossegurança. O parecer visava dirimir o contencioso jurídico, estabelecer um marco regulatório claro, permitindo que o país recuperasse décadas de atraso no tratamento das questões de biotecnologia.

Coube-me, inicialmente, a missão de disponibilizá-lo para a discussão na Comissão Especial. Retomamos o processo de auscultar os diversos segmentos envolvidos no debate, da comunidade científica aos ambientalistas. Ouvimos ainda as lideranças partidárias, os parlamentares membros e não-membros da Comissão Especial. Foi uma verdadeira maratona de conversas que buscaram, inclusive, construir, através da negociação política, o apoio parlamentar necessário à aprovação da matéria no plenário.

Durante este processo, surgiram muitos elogios ao parecer do deputado Aldo Rebelo. E também foram feitas várias sugestões que, ao nosso ver, equilibravam melhor o texto, tornando-o mais harmônico. Razão pela qual, incorporamos essas propostas ao nosso substitutivo que, acredito, põe o Brasil bem situado em termos de pesquisas com transgênicos e reduz as disputas judiciais em torno da produção e comercialização desses organismos. O projeto está em fase de tramitação no Senado Federal.

Orientei-me pela necessidade de dotarmos o país de um marco regulatório que propiciasse um ambiente de tranqüilidade para investimentos no setor. Buscando dotar o país de uma lei moderna, democrática e eficiente, com mecanismos que garantam agilidade nas análises, além de instâncias decisórias com competências bem definidas, diminuindo os espaços para liminares da Justiça. Além disso, tive a preocupação de agir com responsabilidade em relação à saúde humana e ao meio ambiente. Sem perder de vista o interesse econômico e tecnológico que a matéria envolve e dando relevo aos objetivos estratégicos para o nosso desenvolvimento e para a soberania nacional.

A experiência da relatoria é extremamente rica porque obriga o exercício democrático da construção de uma maioria que dê sustentação ao relatório. É como diz o ditado popular: um olho no queijo e outro no gato; ou ainda, um olho no padre e o outro na missa. O relator deve conduzir o processo como se fosse um maestro que tem um objetivo a ser alcançado e, para tanto, precisa harmonizar os diversos instrumentos da orquestra, executando, no tempo devido, sua partitura. No processo legislativo, há questões onde é possível avançar mais que em outras. O parâmetro para isso é ter a sustentação na sociedade e dispor de maioria parlamentar.

Neste processo, diferentes segmentos se mobilizaram, defenderam suas opiniões, realizaram pressões legítimas, buscando aprovar os seus pontos de vista. Procuramos absorver a energia trazida por esses movimentos para consolidarmos a defesa do interesse público. Todos precisaram ceder um pouco para que o país ganhasse um marco regulatório claro, moderno, que preserva a soberania nacional e que impulsiona a pesquisa.

Depois de um amplo debate no plenário, o substitutivo foi aprovado em votação simbólica, em 4 de outubro de 2004. Não houve sequer pedido de verificação nominal, mesmo se tratando de matéria muito polêmica. Este fato só ocorre quando a esmagadora maioria do plenário fica satisfeita com o projeto apreciado. Isto demonstra que se chegou “naquele momento” ao texto mais avançado possível, assegurando a sustentação política para aprová-lo.

Nos próximos parágrafos, farei uma breve descrição dos principais pontos do projeto, a fim de facilitar a compreensão e o alcance da nova Lei de Biossegurança Nacional.

Com a nova lei, a CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), ligada ao ministério da Ciência e da Tecnologia, passa a ter poderes totais em relação à pesquisa de OGMs. Caberá, portanto, aos 27 membros da comissão o licenciamento, ou não, da pesquisa. Todos os membros da comissão terão de possuir título de doutor, sendo que doze deles ainda deverão ser especialistas de notório saber científico nos setores de pesquisa vegetal, ambiental e de saúde humana.

O processo será desenvolvido da seguinte forma. O projeto chegará à CTNBio, que autorizará a pesquisa. Quanto à comercialização, a CTNBio emitirá um parecer técnico. Se este parecer for contrário à comercialização, o processo estará encerrado. Se for favorável, o processo seguirá para o CNBS (Conselho Nacional de Biossegurança), que o distribuirá aos órgãos técnicos das áreas correspondentes. Esses órgãos terão o prazo máximo de 120 dias para emitirem os seus pareceres. Em seguida, o processo retornará ao CNBS que dará a palavra final sobre a comercialização.

O CNBS será formado por 15 ministros e se responsabilizará pela formulação e aplicação da política nacional sobre OGM. O conselho deliberará no prazo de 45 dias, após as manifestações da CTNBio e dos órgãos e entidades de registro e fiscalização competentes. Estes prazos são importantes para evitar que a morosidade ou a má vontade de algum órgão retarde a análise do projeto. Contudo, não pode ser tão curto a ponto de inviabilizar a apreciação criteriosa da matéria.

A lei também estabeleceu a obrigatoriedade para toda instituição que usar técnicas e métodos de engenharia genética, ou OGM, de criar uma Comissão Interna de Biossegurança (CIBio). Assim como instituiu o Fundo de Incentivo ao Desenvolvimento da Biossegurança e da Biotecnologia para Agricultores Familiares (FIDBio). Esse fundo proverá universidades e entidades públicas de recursos para projetos de pesquisa e desenvolvimento em biotecnologia e engenharia genética. O objetivo desse dispositivo é fazer com que o agricultor familiar também tenha acesso à pesquisa de novos cultivos e de produtos e insumos utilizados predominantemente por eles. E, ainda, o fundo permitirá a ampliação do conhecimento científico sobre os produtos componentes da cesta básica do brasileiro.

Os recursos do FIDBio virão de contribuição de intervenção no domínio econômico sobre a comercialização e a importação de sementes e mudas geneticamente modificadas, cuja alíquota será de 1,5%. No âmbito do Ministério da Ciência e Tecnologia, o projeto cria o Sistema de Informações em Biossegurança (SIB), que se destina à gestão de informações decorrentes das atividades de análise, autorização, registro, monitoramento e acompanhamento das atividades que envolvam OGM e seus derivados.

Houve a preocupação em assegurar ao consumidor o direito de escolha. Em relação à rotulagem, ficou determinado que os produtos destinados ao consumo humano e animal que possuam transgênicos, ou que sejam produzidos a partir deles, deverão apresentar essas informações em seus rótulos.
As infrações ao disposto na lei poderão ser punidas, independentemente das medidas cautelares de apreensão de produtos, suspensão de venda e embargos de atividade. As sanções vão da advertência à proibição de contratar com a administração pública, por período de até cinco anos. Aos órgãos e entidades de registro e fiscalização, caberá definir critérios e valor e aplicar multas de R$ 2 mil a R$ 1,5 milhão.

Sobre a pesquisa com células-tronco. Proíbe-se a clonagem humana para fins reprodutivos; a produção de embriões humanos para servir como material biológico; e a intervenção em material genético in vivo. No entanto, se houver aprovação pelos órgãos responsáveis, haverá exceções neste último caso para a clonagem terapêutica com células-tronco. Ou seja, para pesquisa com fins de diagnóstico, prevenção e tratamento de doenças.

Este é o tema mais delicado do texto. Num primeiro momento, pretendíamos deixar essa parte para ser tratada pelo deputado Colbert Martins (PPS-BA) – o relator de vários projetos que dispõem sobre essa matéria na Câmara dos Deputados. Contudo, verificamos que, como esta lei revoga a legislação de 1995, não poderíamos deixar de fazer alguma referência ao tema, apesar de entendermos que o seu aprofundamento deverá ocorrer, de fato, quando entrarem na pauta do Congresso Nacional as proposições específicas sobre células-tronco. Em conversa recente, o deputado Colbert Martins me informou estar em fase avançada de elaboração do seu relatório. Esse foi o tratamento possível naquela circunstância.

Mas, temos a compreensão de que, dada a relevância do assunto, o debate acurado será feito em outra oportunidade. Até porque, tivemos a percepção de que ainda não havia o chamado “acúmulo de discussão” sobre células-tronco nem na sociedade, nem no parlamento. Tanto que o assunto apenas tangenciou as grandes polêmicas surgidas no âmbito da Comissão Especial.

No processo de discussão foram desenvolvidas pressões onde se buscava assegurar garantias de comercialização para os produtos transgênicos. O argumento principal desse segmento era de que a incerteza sobre a autorização para a comercialização serviria para desestimular o investimento em pesquisas. Tal premissa é inaceitável. Não é o fato de uma empresa investir em pesquisa que a autorizará, a priori, a lançar o produto no mercado. Hoje para um medicamento ser comercializado, é preciso a análise, a aprovação e a autorização da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Se assim é para um medicamento convencional não devemos suprimir tal procedimento para um medicamento que envolva produto feito com transgênico. Constatado que o produto traz danos à saúde humana, é justo impedir que o mesmo chegue ao consumidor. Este é um papel do qual o Estado não pode abrir-mão.

Também tivemos a preocupação, no arcabouço do nosso texto, de criar espaços institucionais para a preservação do interesse nacional no que tange a decisões sobre a comercialização do OGM. Imaginemos que uma multinacional entre com pedido para lançar no mercado uma determinada semente transgênica e que haja uma instituição pública nacional de pesquisa desenvolvendo uma semente similar à dessa empresa. Neste caso, o CNBS poderá atuar tendo em vista o interesse nacional, visando premiar o esforço científico e o interesse econômico do país.

Quando promulgada, a nova lei substituirá a legislação de 5 de janeiro de 1995 (Lei nº 8.975), evitando que o plantio e a comercialização das safras de soja transgênica sejam disciplinados por medidas provisórias – o que vem acontecendo nos últimos dois anos.

Quanto à soja transgênica já plantada no país, ampliou-se o alcance da medida provisória, convertida em lei (nº 10814/03), que liberou o plantio para a safra 2003-2004. O projeto autoriza esse mesmo direito para essa safra de 2004-2005, desde que os agricultores interessados assinem um termo de compromisso e de ajuste de conduta com o governo – como já era previsto nas medidas provisórias.
Na tramitação no Senado Federal é até possível que novas contribuições venham a melhorar o texto aprovado na Câmara. É bem provável igualmente que, em alguns anos, seja necessário fazer novas adequações na lei. Inclusive porque o texto aprovado claramente responde à premente necessidade de recuperar o tempo perdido em relação às pesquisas com transgênicos.

Com as modificações que serão feitas no Senado Federal, o projeto retornará à Câmara dos Deputados. Quando isso ocorrer, não teremos dificuldade em agasalhar as modificações do Senado que forem feitas para tornar o texto mais equilibrado e mais eficiente.

*Renildo Calheiros é deputado federal pelo PCdoC/PE e foi relator do projeto da nova Lei de Biossegurança na Câmara Federal.

EDIÇÃO 73, MAI/JUN/JUL, 2004, PÁGINAS 22, 23, 24