Notadamente porque as veredas sistêmicas da elaboração cientifica de Marx são abertas e apontam sempre a um perene revolucionamento social das estruturas da história. Ontem e hoje.

Toquemos em três elementos agudos da problemática indicada. Transpassando a temática a seu modo, o famoso cientista Gilles-Gaston Granger (A Ciência e as Ciências, Unesp, 1994, p. 85) considera, por exemplo, "inaceitável" recusar a integração no estatuto de ciências humanas a história e suas diversas formas; e seus métodos de conhecimento – afirma Granger – estão sujeitos ao "mesmo tipo" de regras que submetem as ciências da natureza. Uma formulação que certamente não soaria estranha ao físico nuclear Roland Omnés (Filosofia da Ciência Contemporânea, Unesp, 1996, p. 10), quando constata que estamos hoje metidos numa crise epistemológica de vastas proporções: autores em moda "só conseguem ver nesta crise" incertezas, ausência de método ou paradigmas sem princípios duradouros. Imaginária conversa porventura interpelada enfaticamente, de algum modo, por Jean-Pierre Changeaux (neurobiólogo, Titular do Collège de France), ao assinalar: "defendo uma epistemologia materialista forte", pois esta seria a única aceitável a um cientista rigoroso e coerente (Matéria e pensamento, Unesp, 1996, p. 36).

Mares revoltos da história, da ciência e do materialismo, por conseguinte, ingrediências constitutivas da notável obra do marxista português José Barata-Moura. Filósofo e Reitor da Universidade de Lisboa, o professor Barata-Moura – afirmamos sem qualquer exagero –, é brilhante intérprete (e bem mais) da doutrina de Marx e Engels, da atualidade.

Doutrina cuja amálgama teórica e prática vêm sendo profundamente por ele dissecada, a partir de como realiza a articulação categorial sistemática e histórica do marxismo, no suposto de que, para Marx Engels e Lênin, nucleada pela dialética materialista, "a teoria não é, de modo nenhum, imposição extrínseca de conceitos (…) mas, sim, reflexo conceitual e orgânico da realidade objetiva vivida, experimentada e pensada"; ou, digamos, luminosidade emanada dos processos históricos transformadores e acompanhantes "dos avanços das ciências do tempo e suas vicissitudes" (Totalidade e Contradição. Acerca da Dialética, Livros Horizontes, 1977, p. 65).

Essa é a questão nodal, milimetricamente perseguida nas pesquisas por Barata-Moura: o primado do real movimentado – agente e agência de transformação, como costuma dizer. Em Da representação à "práxis" (Caminho, 1986) discorre ele sobre o tema com delicadeza e radicalidade. Diz lá que "A idealidade está estruturalmente dependente dos contextos materiais e é inseparável de uma mediação subjetiva, sempre intra-real, e nunca pré-real ou ante-real"! (p. 16). Exatamente porque a contradição entre materialismo e idealismo "não se estabelece nem se resolve por uma questão de opção": "a materialidade do real tem estatuto ontológico, não é um estatuto jurídico. Não se decreta… não se revoga" (p. 14).

Neste estudo – inteligente crítica marxista às subjetividades da práxis em Kant, M. Heidegger e Merleau-Ponty – o filósofo lusitano muito nos ilustra quando, a dado passo, flagra Heidegger (Teses sobre Kant) numa interpretação atropelada pelo real: "a relação entre pensar e ser é mesmidade, a identidade", assevera Heidegger. Para Barata-Moura, neste enfoque da teoria de Heidegger sobre a relação entre o pensamento e o ser (a existência), "o fundamental é que o ser não é real", mas distinto da materialidade, se apresentando como "função de alguém que o estabelece e o funda" (idem, p. 39).

Mas é em Materialismo e subjetividade. Estudos em torno de Marx (Avante!, 1997), livro valioso de ensaios, que Barata-Moura nos ensina acerca das mais relevantes questões da teoria marxista. Diríamos sinteticamente ser irrefutável sua poderosa argumentação sobre o caráter inédito da Epistemologia e da Ontologia em Marx. O que adquire especial importância no seu Marx e a cientificidade do saber (1983), e notável atualidade em Do comunismo. Marx e o programa comunista
perante os questionamentos contemporâneos da racionalidade (1992).

Assim, para Marx, a dialética despida do misticismo – como ciência – também era "arma revolucionária", cuja "penetração científica" implica em tarefa e numa "conquista para a classe operária e para as forças do progresso" (idem, 1983, p. 124). E num programa de transformação (o comunismo), "o movimento real da história das sociedades" estruturado e determinado materialmente, intrinsecamente contraditório; ou uma história de feitura humana, não como uma vontade sonhada, mas "como trabalho que em condições determinadas dialeticamente transforma" (idem, 1992, p. 248-9).