Quando Glória chega à recepção do andar, encontra lá um homem de estatura mediana, atarracado, gorducho. Fora avisada de uma visita para seu pai. Como o sujeito recusasse se apresentar, teve de ir até ele:

      – Pois não?

      – Você é?

      – Glória. E o senhor?

      Argemiro, ao ouvir o nome, toma um susto.

      – É o que do Cabo?

      Glória endurece a face. A carta vem-lhe toda à memória.

      – Sou filha dele. O senhor é quem?

      – Um conhecido do Cabo. Soube que ele tava doente, internado, e vim fazer uma visita.

      – O senhor deve ter um nome…

      – Ô, me perdoe: me chamo Argemiro, Argemiro Vieira. Conheci seu pai quando eu era ainda um moleque, lá em Saco das Varas. Posso ver ele?

      – O senhor é parente dele?

      – Não, sou não. É capaz de ele nem lembrar de mim.

      – E como ficou sabendo da… doença dele?

      – Na oficina.

      – Oficina…

      – A oficina onde ele conserta a kombi. Encontrei ele lá. Quando voltei pra acertar umas coisinhas no meu monza, fiquei sabendo que ele tinha vindo pra cá.

      – O senhor não quer se sentar?

      – Eu queria era falar com ele.

      – Ele ainda não acordou. Sente-se, por favor. O senhor não veio pra uma visita, não é?

      – Vim, vim sim.

      – Não, acho que não – diz Glória, serena. O senhor veio aqui trazer o passado; veio certificar se Mariana e Glória estão devidamente vingadas. Eu, por agora, não saberia dizer ao senhor se sim, ou se não. Mas avise lá a todos que o enviaram que, se era pra ele morrer, fracassaram. Mas se era pra desarranjar sua vida e iniciar o seu inferno, estão indo no bom caminho.

      Argemiro recosta-se na poltrona e olha fixo para Glória. Procura absorver o máximo de seu discurso. Que diacho de semelhança era essa, meu deus…

      – Meu pai, que o senhor chama de Cabo Jorge, teve um avc. Operou e, segundo os médicos, ficará com seqüelas. Talvez fique paralisado de um lado, não sabemos, mas não será o mesmo. Ninguém, na verdade, será mais o mesmo. Não depois da carta.

      – Que carta?

      – Não há necessidade de se fazer de inocente, seu Argemiro. Aliás, agradeça à minha sobrinha Lucinda pelas coisas que nos revelou. Diga a ela que, após ler sua carta, minha mãe teve um enfarte e está agora em outro quarto deste mesmo hospital se recuperando. Diga também que ela tem primos e que sua outra tia, Mariana, está sob efeito de sedativos, por causa dos nervos em frangalhos.

      – Mariana?

      – Sim, minha irmã, que não foi estuprada por nenhum cabo de polícia e que até agora não acredita que recebeu o nome de uma mulher violada por seu próprio pai.

      Argemiro está diante de uma máscara de ironia áspera, cujas palavras traem a dor e o ódio contidos. O homem não se sente atingido. Intui que aquilo tudo se dirige a outrem…

      – Olhe, moça, se seu pai está dormindo, volto outro dia e…

      – Não, o senhor fica – comanda Glória, com firmeza e serenidade. – E vai me dar detalhes de toda a história de meu pai – tim-tim por tim-tim.

      Argemiro volta a se sentar. Vê diante de si Gulóra em seus melhores tempos. Não sabe que milagre é esse que se opera, mas mais uma vez intui: é por ali que a coisa vai vir – só não sabe se a passeio, ou a galope.