Como as questões nacionais se tornam concretas no município?

Inácio Arruda – O município é a instância onde repercute com maior intensidade a natureza próspera ou conservadora de uma determinada gestão no país. Nesse sentido, a participação ativa da União torna-se fundamental para a concretização das questões no âmbito municipal. Temos, desse modo, na ponta, a materialização das questões nacionais no plano local. A responsabilidade é municipal, mas se a União traça políticas nacionais, se apresenta diretrizes e investimentos voltados para o tratamento dos problemas que se generalizam nas cidades, de preferência no bojo de uma política nacional de desenvolvimento municipal, teremos políticas públicas com eficiência, eficácia e impactos coordenados.

É o que pode acontecer, por exemplo, em relação a uma justa política habitacional para o Brasil, a única forma de oferecer um trato planejado ao problema do déficit de moradias nas metrópoles; à política nacional de saneamento que lastreia a saúde pública, se antecipando às epidemias. É o caso de dispositivos em operação como o Sistema Único de Saúde, o SUS, e o atendimento que prevê, em tese, a saúde da família em cada residência; ou do programa Segundo Tempo na Escola, com a segurança alimentar a serviço da educação, da geração de empregos e da inclusão social; ou, ainda, da renda mínima, em busca da cidadania. Não haveria como se resolver isoladamente essas questões com resultados satisfatórios em cada município.

De outro modo, se o município é tratado como um apêndice do Estado, e apenas quando se trata de cumprir a lei de responsabilidade fiscal – um instrumento da política de submissão aos organismos financeiros internacionais –, sofrendo, ainda, uma relação mesquinha à base de contingenciamentos que estrangulam suas possibilidades administrativas, temos uma evidente quebra do Pacto Federativo e a destruição dos fundamentos de uma nação – reunidos na instância local.

Se for examinada, a história recente do país mostrará preciosas revelações – constrangedoras para a oposição conservadora ao governo federal –: os descaminhos responsáveis pelo caos urbano brasileiro, os mesmos que levaram os municípios à insolvência atual, foram traçados sob essas premissas nos anos 1990, no berço neoliberal do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – que subordinou os investimentos no País ao apetite da banca financeira internacional.

Na última década e no início do atual século, o processo de degradação da vida urbana foi nitidamente influenciado pela reduzidíssima taxa de investimento em infra-estrutura, especialmente em saneamento e habitação, além dos sistemas de transporte coletivo de massas, sob o galopante endividamento externo e interno e pela rolagem e pagamento de juros descomunais dessas dívidas, em prejuízo do desempenho da economia brasileira. Sentimos na pele o escárnio dessa opção de política econômica, que incrementou formidáveis fortunas, a exclusão social e a deterioração das cidades.

Hoje, a construção de novos caminhos exige políticas nacionais e um período de carência – o qual desejamos breve e bem inferior ao do tempo de destruição – para que comecem a surgir os primeiros sinais de recuperação das maltratadas cidades brasileiras.

Entendemos, portanto, que, pela primeira vez em nossa História, torna-se exeqüível a recuperação das nossas cidades. Para isso, a União deve intervir no enfrentamento de um elenco crítico de questões, que inclui um acentuado grau de segregação social urbana em interação com a extrema concentração da renda e da riqueza. A União deve agir em conjunto com os administradores públicos municipais no sentido de liberar os recursos para os investimentos em todas as esferas do interesse popular. Para tanto, depende da ruptura com o atual modelo e de uma nova orientação para o país. Seu sucesso estará articulado à mobilização de energias represadas nas possibilidades de uma efetiva Reforma Urbana, concretizando-se em cada cidade brasileira.

É assim que o debate político articulado ao desafio da nacionalização das campanhas municipais deve, sem medo, ser explicado e enfrentado – em suas raízes.

Qual o ponto principal (ou principais) de uma reforma urbana em Fortaleza que contemple o objetivo de apropriação popular do espaço urbano?

Inácio Arruda – Em Fortaleza, ou em qualquer outra cidade, o administrador público dispõe de riquíssimos dispositivos, postos à disposição das classes e camadas populares pelo Estatuto da Cidade, que regulamentou o capítulo da política urbana da Constituição Federal – beneficiando mais de 80% dos brasileiros que moram hoje nas cidades. Esse instrumento permite a efetivação das diretrizes gerais da política urbana, buscando a garantia do direito a cidades sustentáveis, o planejamento do desenvolvimento, a proteção do meio ambiente e do patrimônio cultural e, sobretudo, a recuperação de investimentos que valorizaram imóveis urbanos, atribuindo-lhes uma finalidade social.

O Estatuto estabelece regras para o uso do solo urbano e cria dispositivos para a regularização fundiária de áreas de favelas em terrenos particulares; mantém o tratamento oneroso da terra urbana ociosa, com a instituição dos tributos sobre imóveis urbanos diferenciados em função do interesse social; e a usucapião especial coletivo. Além disso, demanda a revisão da legislação urbanística e também prevê a criação de leis municipais específicas. Nas regiões metropolitanas (RMs), a Lei de Uso e Ocupação do Solo (16.176/96) e o Plano Diretor terão que ser adequados a um novo momento do desenvolvimento urbano.

O Estatuto da Cidade inova com o conceito do direito à cidade, e enquanto instrumento legislativo de intervenção política e administrativa – à disposição dos planejadores interessados em lutar pela qualidade de vida nas cidades em oposição ao acelerado crescimento dos dramas urbanos, percebendo-as a favor de suas populações, submetendo o lucro imobiliário ao interesse coletivo, o
privado ao público.

A ação do Estado, ao distribuir serviços e equipamentos públicos, favorece a sociedade sob duas ferramentas essenciais: a Gestão Democrática, mediante a ação de conselhos de política urbana, das leis de iniciativa popular e da realização de debates, audiências e consultas públicas para a aprovação e a implementação dos planos diretores – agora obrigatórios para cidades com mais 20 mil habitantes – e das leis orçamentárias.

Ampliando as condições para o cumprimento da função social da propriedade (art. 182, 1º e 2º, da Constituição Federal), admite o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios para evitar a ociosidade de vastas extensões de terras urbanos já dotadas de infra-estrutura; o IPTU progressivo no tempo para combater a ociosidade dessas terras; a desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública, semelhante à que ocorre para fins de reforma agrária; a usucapião especial de propriedade particular, dispositivo auto-aplicável da Constituição que amplia a possibilidade de usucapião coletiva, facilitando a regularização fundiária de favelas.

Além dessas, temos agora a concessão de uso especial para fins de moradia, na qual imóveis públicos ocupados até 30 de junho de 2001 e há mais de cinco sem oposição, podem ter a posse regularizada; o direito de superfície, que faculta transferência (gratuita ou onerosa) por escritura pública, do direito de construir, sem prejuízo do direito de propriedade; o direito de preempção, que assegura preferência ao poder público na compra de imóveis; operações urbanas consorciadas entre poder público e setor privado para transformações urbanísticas; o estudo de impacto de vizinhança, com base em lei municipal, que limita empreendimentos ou atividades que afetem a qualidade de vida da população de uma dada área.

Entretanto, a aplicação da Lei exige decisão política e qualificação dos gestores municipais na socialização dos benefícios, e uma nova pressão social. O acesso a uma melhor qualidade de vida está associado a um novo projeto de Brasil, avesso à violência e ao desemprego, com amplo acesso à terra e à moradia, aos sistemas adequados de transporte público, saneamento e saúde universalizados, crianças na escola, espaços públicos dotados de equipamentos e atividades de lazer e recreação – tudo sob a ótica de uma cada vez mais justa partilha da renda nacional.
É a isto que denominamos apropriação popular do espaço urbano.

O caso de Fortaleza é emblemático do trabalho que terá a sociedade e o administrador público, munidos desses dispositivos. Em 1800, essa cidade contava 1200 habitantes. Cem anos depois, em 1900, crescia para 100 mil. Mais cem anos e chegamos a mais de dois milhões, com um déficit habitacional de 160 mil unidades – principalmente entre as famílias com renda inferior a três salários mínimos – e aproximadamente 440 mil famílias dotadas de moradia. De acordo com a Federação das Associações de Bairros e Favelas de Fortaleza (FBFF, que presidi no início dos anos 1980) temos 620 favelas, onde mais de 700 mil habitantes convivem num ambiente degradante – poluído e com acesso e infra-estrutura muito precários. (Em 2000, o IBGE revelou a presença de assentamentos irregulares em quase 100% das cidades com mais de 500 mil habitantes.)

Fortaleza é uma das capitais brasileiras que mais cresce desde 1996, com inquietante queda da qualidade de vida, exigindo a mobilização da sociedade como elemento propulsor das mudanças necessárias. Aos 278 anos, é uma cidade que se verticaliza desordenadamente, palmilhada pelos contrastes, desordem e apartação produzidos no século passado. Mas conta com um povo bom, simples, trabalhador e orgulhoso de sua metrópole. Disposto a compartilhar de uma experiência de reconstrução a cidade, movido até pela auto-estima elevada que o empurra para frente nas mais difíceis situações; a se apropriar do espaço urbano nas condições de uma administração democrática e popular, sabendo o que quer, sobre todos os obstáculos.

Foram essas as principais conclusões da jornada empreendida nos quatro primeiros meses deste ano de 2004 – em 14 seminários voltados para o 5º Encontro da Cidade, realizados em 114 bairros da região metropolitana, reunindo mais de duas mil pessoas. Envolvendo intelectuais, técnicos das ONGs e o elemento popular para pensar a cidade em conjunto, iniciamos a apropriação do espaço urbano pelo percurso de cidadania, onde o fundamento foi o plano de trabalho participativo no cotidiano dos bairros e o resultado foi uma matriz estratégica na qual o planejamento será coisa popular.

EDIÇÃO 74, AGO/SET, 2004, PÁGINAS 40, 41, 42