Existem poucas categorias de cidades brasileiras se analisarmos somente seus aspectos de localização, problemas sociais e econômicos e se quisermos agrupá-las para melhor entendê-las no contexto nacional.

Identificamos as cidades da costa brasileira que inclui a maior parte das regiões metropolitanas, as
pequenas e médias cidades que gravitam em torno dos centros maiores no interior do país, as da floresta Amazônica, e dos conglomerados agropecuários voltados para a exportação. Esta é a característica geográfica principal da ocupação urbana do território brasileiro. Uma grande concentração de cidades próximas à costa e alguns grandes pólos regionais no interior do país e, sem dúvida, a maior rede de cidades localizadas no sudeste.

A concentração da riqueza também reflete esta distribuição territorial, bem como a trajetória dos investimentos públicos e privados. Mesmo a riqueza oriunda das grandes propriedades rurais se conecta, remete e atrai investimentos em direção ao centro sul do país.

As tecnologias de informação e comunicação possibilitam conexões de negócios, de padrões de produção, de consumo e a reprodução de padrões de comportamento que se irradiam a partir da região sudeste influenciando o modo de viver de todas as regiões de maneira artificial; contudo, sem conseguir destruir as culturas locais, que passam a conviver com as “novidades”, mas, mantêm seu saber, nem que seja no íntimo de seus lares e grupos sociais.

Já não é suficiente entender que a maior parte da população do Brasil vive nas cidades, são 85% dos nossos habitantes. Há realidades muito distintas do ponto de vista econômico, social e cultural.
Mário de Andrade na década de 30 percorreu o país recolhendo e registrando expressões culturais de diversas localidades, quase que prenunciando as mudanças que o desenvolvimento econômico e social do país poderia provocar na cultura popular.

As regiões metropolitanas que formam grandes cidades contínuas, independentemente dos limites políticos administrativos, concentram o interesse do mundo do trabalho.

Suas oportunidades são maiores do que o trabalho de carteira assinada. Sua localização e pulsação desdobram o mercado de trabalho em inúmeras atividades de uma extensa cadeia produtiva que vai dos serviços de alta tecnologia aos mais simples do mercado informal do comércio de alimentos nas ruas.

As ruas e praças são por si só locais de grande atração, pelo trabalho, pelo lazer e pela cultura.
A caracterização da especialização dos serviços muda hábitos e interesses culturais urbanos. O interesse pela informática, pelas práticas esportivas e pelo grafite em muros e edifícios são parte do mesmo universo dos jovens das grandes metrópoles que não têm a praia como ponto de encontro.

Quando São Paulo era a grande metrópole industrial, o movimento diurno dos operários das fábricas mostrava um outro modo de viver da metrópole e talvez a vida urbana não fosse tão noturna como é hoje, quando, a tendência de consolidação como metrópole de serviços se apresenta como o futuro da cidade.

Jovens saem do trabalho, dos escritórios, dos centros de serviços e se dirigem aos cursos noturnos. Bares e restaurantes da cidade geram conflitos com os bairros residenciais vizinhos, mas são a tônica do turismo de negócios da maior cidade da América do Sul, e quarto maior conglomerado urbano do mundo.

A presença da mulher no mercado de trabalho exige novas formas do uso do espaço urbano. Homens e mulheres saem cedo para trabalhar e a convivência com os filhos fica para o horário noturno.
Os filhos mudam suas referências com relação à vida familiar, onde a família passa a se estruturar em inúmeras atividades do mundo do trabalho e estudo para garantir melhores oportunidades de emprego, gerando necessidades do cuidado com as crianças e os adolescentes em período integral.
Nas cidades médias e nos pequenos municípios, o interesse pelas oportunidades de emprego também é uma motivação importante para as escolhas que se fazem para viver nesta ou naquela cidade. No entanto, o interesse pela evolução cultural e educacional também é fator importante nas escolhas. Muitos filhos de trabalhadores rurais não querem mais viver da terra.

Os problemas urbanos mais urgentes em todas as categorias de municípios se concentram na área de saúde, educação e transportes, em menor ou maior escala; estes são os problemas de sobrevivência das famílias que se colocam como um dos maiores reclamos, logo atrás do problema da busca por emprego.

Mas, o entendimento da realidade urbana necessita de um maior conhecimento de quais são as expectativas dos habitantes de cada cidade em relação à melhoria da sua qualidade de vida, a sua forma de enxergar a cidade, a seu modo de viver e como se espera que o poder municipal cuide da cidade e responda a suas expectativas.

Em São Paulo se corre muito, pois as distâncias são longas para conciliar emprego com estudo, com lazer e moradia; daí a importância do transporte de massa de qualidade. O metrô de São Paulo é muito valorizado pela população. As preocupações dos habitantes de cada cidade se alteram de acordo com seu tamanho, localização e formação.

Nas regiões metropolitanas o problema de degradação do meio ambiente aparece com força ao lado dos problemas dos transportes públicos insuficientes, caros ou sem qualidade. Assim como o problema da segurança urbana.

Nos municípios pequenos com maioria da população idosa, a preocupação com a saúde e também com a herança histórica é mais palpável.

Nas pequenas cidades nordestinas que sofrem com a seca, o problema da fome, do emprego e da água têm destaque maior.

Nas metrópoles da região amazônica, ganha importância o debate da soberania nacional e a proteção da maior floresta do mundo, da biodiversidade e sua relação com a sobrevivência das populações ribeirinhas.

Nas cidades da orla nordestina, em São Paulo, Rio de Janeiro ou em Santa Catarina, o conflito entre turismo e qualidade de vida dos habitantes se reflete na solução de infra-estrutura como um grande problema a ser enfrentado.

As cidades portuárias, que dependem do turismo da orla, mas, que também dependem do movimento dos portos para gerar empregos e negócios, possuem uma especificidade na abordagem dos projetos urbanos para renovação de áreas degradadas.

Em todas as cidades se coloca o debate de questões relacionadas com o desenvolvimento econômico nacional e uma nova geografia do território brasileiro que se reflita no nível do emprego urbano e um debate de caráter local que aborde o dia-a-dia da cidade e sua qualidade de vida.

As grandes metrópoles, como São Paulo, apresentam uma forma urbana que delimita a segregação social e econômica das classes sociais, mas, ao contrário do que se prega sobre a existência de uma fragmentação do espaço urbano, da diversidade cultural existente, podemos dizer que a história de cada cidade é uma só, das relações e conflitos das diversas classes sociais que coabitam o mesmo espaço urbano. Não há várias histórias, mas, sim, várias estórias de seus habitantes que escolheram a cidade para transformar sua vida e uma história que reflete as decisões do poder político e dos investimentos públicos e privados na estruturação do espaço urbano.

No meu entender, a atração pelas grandes regiões metropolitanas de alguma maneira se estabilizou, havendo um movimento interno às regiões, de deslocamento das populações, em vista do empobrecimento, mas, que se dá geograficamente na mesma cidade ou núcleo urbano, esquecendo aqui dos limites políticos administrativos dos municípios.

Acredito também que não haverá um esvaziamento dessas metrópoles, pois as oportunidades de evolução cultural que se colocam – principalmente para as classes mais desfavorecidas –, vão além da mera busca pelo emprego.

Mudou o modo de vida, mas, a população quer ver respeitados sua cultura, seus valores e suas referências da terra natal. Não raro em São Paulo, famílias nordestinas reúnem-se para comemorar o São João como na sua terra. Portanto, a existência de lugares que recebam manifestações culturais de diversas culturas é uma boa prática para romper barreiras de segregação urbana.

Assim, cidades como São Paulo, que já nasceram com caráter metropolitano, ou cosmopolita, cuja extensão do seu território foi delimitada pelos antigos aldeamentos indígenas construídos pelos jesuítas para dominação daqueles, serviram para fomentar uma mistura de culturas nativas com estrangeiras e criar uma espécie de cultura própria que se reflete na solidariedade de absorver aqueles que aqui chegam de diferentes grupos culturais e nacionalidades.

Mudar a realidade urbana no Brasil é entender as cidades como espaço único e fomentar políticas e projetos que articulem os interesses gerais de seus habitantes com os projetos de desenvolvimento regional e local.

Deve-se procurar sempre as diversas escalas de abordagem, mas com uma visão integrada. Os garotos que procuram o futebol nos estádios querem fazer parte de uma tribo maior, que é sua cidade, seu time, sua torcida. Mas, eles também querem o “campinho” perto de casa para brincar com seus amigos do bairro, do prédio, ou da rua.

Todos querem freqüentar o parque mais importante da cidade e, além disso, ter a praça perto de suas casas para encontrar vizinhos e amigos.

Devemos buscar o ponto de vista cidadão. Identificar o que é importante para o cidadão em relação ao cuidado com a cidade; que lugares ele valoriza como sendo centro da cidade e o seu centro de bairro.
A recuperação do espaço da moradia popular está na construção de praças bem cuidadas, mesmo que pequenas, na limpeza urbana, na iluminação pública e no aconchego para os idosos e crianças com ruas e calçadas generosas, sem grandes obstáculos, coloridas e arborizadas.

As pequenas cidades oferecem a rua com maior tranqüilidade para a convivência da vizinhança, e os habitantes das grandes metrópoles também buscam o espaço público, os parques, a praia, para o lazer, a cultura e o encontro das tribos.

As lutas urbanas da década de 1980 e dos anos 1990 conquistaram a aprovação do Estatuto da Cidade que abre uma nova perspectiva para o meio urbano brasileiro, mas as ações ainda são dispersas e não refletem um projeto nacional que garanta à vida nas cidades a qualidade para aqueles que buscam a vida urbana para transformar sua condição de vida.

Os problemas de falta de infra-estrutura ainda atingem todas as médias e grandes cidades, as ocupações de terra são a alternativa para a moradia popular. Todos procuram ficar mais perto de onde há escolas, postos de saúde e a possibilidade de vender suas “coisinhas” na feira ou na rua.

É preciso recuperar o espaço físico da vida urbana. É preciso criar espaços de cidadania a exemplo do CEU em São Paulo, onde, o que importa, além da sala de aula, são as possibilidades de lazer, de cultura, de aprender informática, de participar de um grupo de teatro, dança ou de uma banda.
A inserção em grupos culturais não necessita chegar a um produto artístico, mas, o processo de se sentir fazendo parte de algo em elaboração coletiva, que valoriza a atividade criadora, é que transforma as pessoas para a construção de uma visão crítica.

Ter um espaço público de qualidade urbanística estimula as pessoas a investirem no espaço da
própria casa, movimenta a economia local, traz credibilidade para a gestão pública. As distâncias ficam menores, e cresce a auto-estima, mobilizando as pessoas para se inserirem numa vida mais comunitária, solidária e de participação política.
O desafio de governar ou legislar em benefício da maioria dos habitantes das cidades brasileiras coloca algumas questões que merecem ser enfrentadas.

Primeiro: há que se democratizar as relações de gestão do espaço urbano. Criar conselhos de representantes que possam discutir e decidir sobre os projetos das cidades. Democratizar a cidade de um modo geral. Garantir a todos o acesso a equipamentos de qualidade oferecidos pela cidade na área de saúde, educação, lazer, e cultura; e, por isso, o transporte deve ser prioridade. Em São Paulo, há transporte gratuito para as crianças irem à escola, para os portadores de deficiências freqüentarem seus tratamentos especializados e para os idosos.

Segundo: há que se entender a vocação de cada cidade, buscando entender as razões históricas e geográficas de sua formação e suas potencialidades futuras, segundo uma ótica de desenvolvimento econômico popular e progressista.

Terceiro: buscar formas de financiamento para os projetos urbanos através de uma política redistributiva dos ganhos resultantes da atividade econômica de maior peso nas cidades, da revisão da Lei de Responsabilidade Fiscal, da elaboração de Planos Diretores Urbanísticos, integrar projetos e programas para potencializar os recursos municipais disponíveis.

Quarto: valorizar as formas coletivas de apropriação do espaço urbano; portanto, dando maior valor aos espaços públicos sem restrições de acesso, ou seja, a rua, a praça, os parques, as calçadas, os monumentos históricos, os equipamentos públicos de lazer, de natureza cultural e esportiva. Deve-se cuidar da paisagem urbana para que ela seja despoluída e limpa.

Quinto: buscar os valores que traduzam e estimulem a identidade dos habitantes com a cidade, seus espaços de referência e que permanecem no tempo e no espaço construído da cidade, com a simbologia de seus usos e formação histórica. Valorizar também o patrimônio imaterial que inclui todas as manifestações culturais e científicas existentes nas cidades, os saberes populares na prática de construir, na culinária, na medicina, na religião. Para isso é necessário introduzir uma educação patrimonial no sistema educacional de um modo geral. Valorizar e promover as festas populares nas ruas com infra-estrutura digna de respeito ao cidadão.

Sexto: desenvolver práticas de educação e projetos voltados à preservação do meio ambiente urbano.

Rosana Miranda é arquiteta e doutora em urbanismo pela USP.

EDIÇÃO 74, AGO/SET, 2004, PÁGINAS 29, 30, 31, 32