A carta – capítulo 29
Depois que médico e enfermeira se vão, seu Jorge pôde sentir sua filha tensa. Nunca viu ternura naqueles olhos, mas sinceramente esperava que, diante dos acontecimentos, isso mudasse. De fato, algo mudou: havia mais sombras naquele rosto que ele nunca soubera decifrar, apesar de tão simples, claro.
– Cadê sua mãe? E Mariana?
Glória teve ímpetos de dizer "Estão lá, esfrangalhadas! A primeira, enfartada! A segunda, um trapo porque tem o nome de uma estuprada!". Mas conteve-se. Como dizer? O que dizer? Estava ali por que mesmo? Olhava o pai e não sentia nada. Nem compaixão. Riu pra si aquele riso soprado, que ninguém sabia se era desdém, se era indignação. Vai ver, eram os dois.
– Mariana está descansando. Você sabe que ela não agüenta muito bem o tranco.
Seu Jorge repara no "você". Ela sempre o chamara de "senhor", assim como Mariana, mas, ao contrário da caçula, era um "senhor" carregado de ácidos. Esse "você" tinha uma nota aguda de desprezo.
– E Inácia?
Um quê de perversidade perpassou a face da moça. Podia fechar a conta já, aniquilar tudo; pra que prolongar, adiar o inevitável?
– Mamãe não está bem.
– Como assim?
– Ela passou muito mal. Teve que fazer também uma cirurgia.
– Meu Deus!
– Fique calmo. Ela já está bem, se recuperando. Devagar, mas se recuperando.
– O que ela teve?
– Um enfarte.
– Meu…
– Não adianta muito chamar por ele. Os médicos já resolveram tudo. Ela operou e, segundo a equipe, está tudo sob controle.
Seu Jorge engole as lágrimas. Não se lembra de tê-las derramado alguma vez. Quem sabe em criança. Já teve outros acessos deste, mas sempre se controlara. Sobretudo, depois de seus arranca-rabos com a filha. Nunca deu o braço a torcer. Não seria agora, que ela se apresentava ainda mais ferina. Recompôs-se.
– Você não gosta mesmo de mim, não é?
– Não – respondeu grave sua mais velha.
– Muito bem. Talvez seja melhor que você não fique por aqui. Chame Mariana.
– Mariana está cuidando da mãe. E eu vou cuidar de você – goste ou não disso. Depois que se recuperar, precisamos es… acertar um conjunto de coisas.
– Vocês vão me mandar prum asilo, suponho.
– Pode ser. Mas há coisas mais sérias para decidir antes. Tenho que ir. Alguém me espera na recepção. Precisa de alguma coisa?
– Não.
– Quer que chame a enfermeira?
– Não.
Glória se vira e volta para retomar seu diálogo com Argemiro. Seu Jorge, sozinho no quarto, planeja lances num tabuleiro que se desenrola diante de si. Uma lágrima rola pelo canto do olho esquerdo. Seus maxilares apertam firme a mágoa que ameaça roer-lhe por dentro.