Ancinav: regulação econômica, não cultural
O ataque foi agressivo e abrangente, com o objetivo de afirmar a versão absolutamente improcedente de que o anteprojeto não passa de uma iniciativa do governo federal para atingir a liberdade de expressão. Criou-se até uma teoria conspiratória sobre um suposto surto autoritário do governo, que chegou a ser definido por um colunista como “democrático de dia, soviético de noite”. Muitas pessoas ainda acreditam nesta versão, sem nunca ter lido a proposta. Até hoje, aqui e ali, alguém ainda se apresenta para atacar o espírito autoritário da Ancinav e defender a liberdade de expressão. Como se o governo fosse contra. Ora, o ministro Gilberto Gil – que por tanto tempo foi vítima da censura e da ditadura – seria o último a defender e a assinar um projeto de cunho intervencionista.
Pelo contrário, o projeto que cria a Ancinav resulta do acúmulo de demandas e propostas do próprio setor audiovisual, que desde o III Congresso Brasileiro de Cinema, realizado em 2000, em Porto Alegre, defende explicitamente a criação da Ancinav. Todos os grandes cineastas, representantes da televisão, da distribuição e da exibição discutiram abertamente e defenderam não só a agência, como também muitas das taxas que propomos no projeto. Agora, o governo teve vontade política de trazer à tona uma antiga reivindicação. Todos sabem que não se trata de regras para a cultura, mas para a economia da cultura. Não se trata de censura, nem de limites à liberdade de expressão. A Ancinav não é xenófoba, apenas compartilha direitos e deveres com as empresas que exploram a atividade. Quem nunca teve deveres, só direitos – ou melhor, privilégios – tem medo desse debate democrático.
Adotar um modelo contemporâneo de regulação, testado em diversos países, significa mudar paradigmas que, ainda hoje, inibem o crescimento econômico das nossas indústrias culturais e excluem boa parte da população do acesso aos bens audiovisuais produzidos no país. Por mais que o povo brasileiro se interesse pelo conteúdo brasileiro, o mercado amesquinhado, entregue à sua própria sorte, sem regras claras, não permite a construção de uma economia poderosa. Mais de 90% dos municípios brasileiros não possuem uma sala de cinema sequer. Somente 8% dos brasileiros costumam ir ao cinema. O mercado de exibição é dominado pela produção norte-americana. Não há igualdade de oportunidades. E o grau de liberdade de escolha, no atual modelo, é extremamente reduzido. Neste ano, por exemplo, dois filmes norte-americanos ocuparam dois terços do nosso parque exibidor.
Enquanto a sociedade brasileira renova muitas dimensões de sua vida coletiva, no setor audiovisual ainda estamos perdendo tempo, com uma legislação defasada e a ausência de mecanismos efetivos de fomento, regulação e proteção dos agentes econômicos brasileiros. Como enfrentar os desafios que a convergência digital e outros processos colocam para a nossa indústria? Ainda não fomos capazes de pensar num modelo contemporâneo, democrático e economicamente sustentável de indústria audiovisual, que se viabilize e veicule a riqueza cultural deste imenso Brasil no próprio país e no exterior. Somos prisioneiros de um modelo concentrador, gerado pela doutrina de segurança nacional, da época do regime militar, que via com desconfiança a nossa diversidade e o livre acesso aos conteúdos audiovisuais de múltiplas origens, produzidos fora das empresas de radiodifusão ou dos padrões estéticos norte-americanos.
Claro que não podemos ignorar o que já foi conquistado até aqui pelas emissoras de televisão como modelo de criação, produção, padrão e nível técnico. Mas é um erro de igual dimensão ignorar questões como a necessidade de integrar todo o mercado audiovisual e valorizar as expressões locais. Ainda não assimilamos o fenômeno da convergência tecnológica. Mais de 70% da renda de um filme não se realizam mais nas salas de exibição, mas em outros meios e suportes, como a televisão aberta e fechada, os DVDs e os vídeos. Condenar nossos filmes às salas de exibição, em uma competição desigual com os filmes norte-americanos, significa inibir a realização do vasto potencial criativo, econômico e social que a nossa indústria do audiovisual apresenta hoje, apesar dos problemas.
Boa parte da cobertura sobre a Ancinav eclipsou propositalmente o conceito de regulação econômica, criticando o projeto por seu suposto “dirigismo cultural” e “intervencionismo”.
A Constituição garante a liberdade de expressão. O anteprojeto reitera os princípios constitucionais. Mas é preciso que se diga: no caso da economia audiovisual, o mercado não assegura a liberdade de expressão, pois ela se materializa não apenas na produção, mas no acesso. A liberdade só é possível quando o artista e sua obra têm meios para alcançar a tela. Tela de tevê, cinema, computador ou outra qualquer. A quantidade de filmes sem distribuição no Brasil revela que esse estrangulamento econômico é uma verdadeira censura do mercado, que pode ser tão cruel quanto a censura do Estado. Devemos rejeitar ambas.
Filmes brasileiros sem espaço para exibição em nossas telas são obras artísticas censuradas. Livre expressão comprometida, e não por dirigismo de Estado, mas por um mercado desregulado, permissivo a práticas monopolistas, por um modelo anacrônico que ainda não assimilou que o cinema e a TV são setores de uma mesma economia.
O Estado não pode ficar alheio a uma questão tão importante e complexa. Além dos artistas sem tela, o Brasil possui milhões de brasileiros sem acesso a salas de cinema. A omissão de governos anteriores permitiu que nosso circuito exibidor diminuísse, aumentando o preço dos ingressos. É uma questão fundamental para a democracia contemporânea. Hoje o Brasil tem capacidade para 3000 salas, mas tem aproximadamente 1800.
Muitas leis de países democráticos não permitem que uma empresa de radiodifusão veicule somente produções da própria empresa. Em países como França, Austrália, Coréia do Sul e EUA há marcos regulatórios que garantem a exibição de filmes nacionais e de produção independente de televisão. Marcos regulatórios não interferem no conteúdo, mas nas condições objetivas de acesso à produção e ao que é produzido. A regulação pactuada publicamente é a garantia da liberdade de expressão e da liberdade de escolha para os artistas e produtores nacionais, e para a população. É também a garantia de uma economia forte num país rico, plural e democrático como o Brasil.
Trata-se, em suma, de uma repactuação das relações no setor, e nas relações do setor com a sociedade, incluindo responsabilidades para as partes. Cabe ao Estado, através de políticas públicas, garantir a saúde desse mercado, criando um ambiente economicamente favorável para o seu desenvolvimento. Pensamos que o potencial reprimido desta economia e a crise do setor no Brasil apontam para a necessidade de um choque de capitalismo, com responsabilidade social.
A regulação é uma prática que busca restabelecer o princípio básico do liberalismo clássico, de garantia das condições de concorrência nos mercados, ao mesmo tempo em que considera as demandas de inclusão social e cultural da sociedade e suas definições estratégicas. O governo quer dividir com o setor a responsabilidade do investimento.
Empresários e produtores precisam de regras claras na hora de investir. Os atuais mecanismos não estimulam o espírito empreendedor essencial ao desenvolvimento da atividade. O governo deve atuar pela sustentabilidade do próprio setor, em parceria com ele e em diálogo com a sociedade, para que o Brasil se afirme na globalização como produtor e exportador de conteúdos audiovisuais próprios, e não apenas como consumidor.
Juca Ferreira é sociólogo e Secretário-Executivo do Ministério da Cultura. Texto publicado originalmente na revista Caros Amigos.
EDIÇÃO 75, OUT/NOV, 2004, PÁGINAS 79, 80