Cara Luciana,

      Muito obrigado por sua carta publicada em 2 de outubro neste Vermelho, em que você comenta a novela A carta. Quero antes me desculpar por responder-lhe somente agora. É que, além dos compromissos todos a que temos que atender, tem aquela digestão que toda observação crítica ou elogiosa merece.

      João Cabral de Melo Neto diz, em uma sua conferência sobre criação poética, que há procedimentos criativos que nenhum escritor deve revelar. De fato, fazemos coisas inconfessáveis em literatura. Todavia, não considero "quebra de decoro literário" revelar que A carta era pra ser um conto em quatro partes. A idéia é que não passasse de um primeiro passo, um modesto ensaio no rumo da narrativa longa. No entanto, a conversa foi se esticando, os personagens ganhando contornos, eu me animando, e olha aí o sujeito claudicando numa noveleta sem rumo.

      Isso mesmo, sem rumo. Lá pelas tantas eu me disse: "Sujeito, trate de arrumar sentido pra isso, se não você está é lascado". Aí foi que me veio uma idéia e mergulhei nela.

      Pensa que me facilitou? Nada: aí é que ficou mais complicado. Em havendo um norte, o diabo foi manter a nau no rumo. Uma tentação danada de abrir mais quatro, cinco núcleos dramáticos. "Sossega, sujeito" — tornei a me dizer —, e fui em frente, no rumo do projeto.
Finda a faina, eis que releio tudo e, sinceramente, encontro tonelada e meia de lacunas. É aquilo: o lance seguro é escrever e reescrever e reformular e cortar e recortar. Até que, passados uns dez anos, você dê à luz uma obra que se possa dizer definitiva.

      Tudo isso eu aprendi lendo e estudando Mário de Andrade, para quem publicar algo antes de uma década de trabalho é sair nu a passeio. E tudo isso considerei — muito tarde, é verdade —, quando já ia no meio da confusão. Aí pensei: "o que está feito, remediado está. Agora não tem como voltar atrás. É mãos à obra e dar cabo disso. Depois, você não é Mário e não tem pretensão ao definitivo".

      O fato é que escrevi essa novela quase que no joelho. Os capítulos saíram de um dia para o outro. Foi uma fabulosa experiência, que não aconselho a ninguém. Primeiro, porque o trabalho sai muito a desejar. Segundo, que você fica com a casa cheia de hóspedes: os personagens. Eles entram com você no banho, deitam na cama e fazem uma zoada infernal: ou você dá um jeito na vida deles, ou eles irão assombrá-la pro resto da vida.

      De qualquer forma, livrei-me de tudo e de todos. Por agora, vou retomar uns continhos, umas crônicas da vida pedestre e me preparar para uma próxima. Tenho aqui umas duas idéias. São antigas. Se nenhuma outra furar a fila, como essa A carta, até o final do ano teremos outra noveleta aqui no Portal.

      Quanto à sua carta, Luciana, reitero meu agradecimento. Não sei se mereço os elogios. Certamente, não. Sobretudo no que respeita Raduam Nassar. Mas, se você se agradou da história, é porque algo nela a fez viver uma experiência estética pessoal e intransferível. Só por isso, já valeu a pena escrevê-la e publicá-la.

      Um abraço,
      Elder