Quando seu Jorge desperta, a escuridão ainda persiste. Aos poucos, sombras difusas vão se formando e sons lhe chegam nítidos. Manchas passeavam pelo ambiente, falavam entre si. Uma voz desconhecida declarou, num arremedo de euforia:

      – Finalmente! Pensei que não acordava mais. Olha, Maria, nosso belo adormecido despertou.

      – Como vai, seu Jorge? Como se sente? – inquire a que ele supõe ser a tal Maria.

      – Onde eu tô, dona? Quem é a senhora? – devolve o antigo cabo de polícia.

      – Na Santa Casa. Eu sou Maria. Essa é Lucinete.

      – Eu não vejo ninguém. Só mancha.

      Maria e Lucinete se olham. A primeira sai. Lucinete volta-se para o paciente e passeia a mão diante de seus olhos:

      – O que o senhor tá vendo, seu Jorge?

      O velho retrai-se, como se um pássaro voejasse baixo em torno:

      – Qué isso, dona?

      – Estou mexendo minha mão.

      – Parece mais um trapo. (…) Quêde minhas filhas? E Inácia, quedê?

      – Fique tranqüilo. O médico vem conversar com o senhor…

      – Elas foram embora, não é? Me largaram, não foi? Diga; pode dizer.

      – Sua esposa teve alta semana passada. Ela e sua filhas… bem… tem uma semana que não retornam as ligações do hospital. O senhor foi encontrado inconsciente por uma enfermeira tem uns quatro dias. Pensamos em coma. Os médicos ainda analisam o seu caso. Foi bom o senhor ter acordado.

      – E o moço?

      – Que moço?

      – Teve um moço aqui. Chama Tenório. É meu filho.

      – O senhor tem um filho? Onde ele mora?

      – Filho meu mais Gulóra… Minto: mais Mariana. Minto ainda: meu filho só meu, nascido não sei de quem, vindo não sei daonde.

      Cala-se por um instante. Súbito, retoma:

      – Devia de chamar Moacir. A senhora leu Iracema? Eu li. Li muita coisa. Mas não sei de nada. Olhe, não sei o que me deu. Ou iantes sei: sei que ela me sorria. Uns dentes pequenos tinha ela. Carne morena… carnes de Gulóra, essas. A dela era dum queimado. Era pequena, eu sei. Chorava muito; pedia pela virgem. Rasgou minha farda, gritou pela mãe, pela irmã. Tive raiva, tive gana; bati nela, torei seu vestido. Moça virgem é boa, num sabe? Elas diz que não querem, mas, no fundo, são doida por um macho. E macho eu era; e macho eu fui, e sou! Que Cabo Jorge quando põe um olho numa moça, seja quenga, seja santa, ela é dele. E ela não queria, coitada. Trancou o chibiu, aí é que ficou melhor: meti foi rasgando. Eita, que foi uma gritaria. Aí é que eu gozava mais. Perdia ali as duas. Perdia Gulóra e o sossego. Perdia Inácia e Mariana. Glória, faz tempo que perdi. Perdi o juízo. Não teve jeito: tive que matar. O cabra veio no meu encalço, eu ia fazer o quê? Dançar com ele? Matei. Chegou na bodega e disse "te achei cabra". Voou cadeira , dona. No fim, ele ficou no chão, estrebuchando. Rasguei-lhe os intestino de baixo pra cima. Caí no mundo, na desgraça. Caí, dona, caí.

      A última frase foi dita já diante do médico e da enfermeira Maria. Lá fora, buzinas trombeteavam que a tarde caminhava pro fim.