Olga: revolucionária, sem perder a ternura
Olga Benario Prestes nasceu em Munique (Alemanha), a 12 de fevereiro de 1908. Filha de Leo Benario e Eugénie Gutmann Benario, cresceu numa família judia típica de classe média da Baviera. Seu pai, um advogado respeitado na cidade, era filiado ao Partido Social-Democrata Alemão. Liberal de idéias avançadas, ele dedicava-se à defesa de causas trabalhistas dos operários de Munique, violentamente atingidos pela crise que devastava a Alemanha nos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial.
Olga lembraria mais tarde que iniciou seu aprendizado dos problemas sociais no escritório paterno, folheando os processos dos trabalhadores defendidos por Leo Benario. Quem não podia pagar era atendido de graça, pois o pai de Olga era um homem generoso, que não vacilava em partilhar o dinheiro de que dispunha com os seus clientes desempregados e que passavam dificuldades. Aos 15 anos de idade, Olga já possui uma sólida base cultural, pois sempre gostara de ler. Na biblioteca do pai travara contato com os grandes escritores e poetas alemães. Começara a trabalhar numa livraria. Ao mesmo tempo, sensibilizada pelos problemas sociais que abalavam a Alemanha nos anos 1930, aproximou-se da Juventude Comunista, organização política na qual passaria a militar ativamente.
Nesse período, conheceu o jovem dirigente comunista Otto Braun. Com a ajuda dele, passou a estudar as obras dos clássicos do marxismo, consolidando suas convicções revolucionárias.
Aos 16 anos, apaixonada por Otto, Olga sai da casa paterna e, junto com o companheiro, viaja a Berlim, onde ambos, militando na Juventude Comunista, desenvolverão intensa atividade política no bairro operário de Neukölln. Ela se torna então uma militante revolucionária, decidida a dedicar sua vida à luta por uma sociedade mais justa e igualitária. O modelo, para os comunistas da época, era a União Soviética, único país em que a revolução proletária fora vitoriosa e que a construção do socialismo vinha alcançando inegáveis êxitos.
Em Berlim, os dias de Olga eram divididos entre o trabalho, na Representação Comercial da URSS, e sua atividade revolucionária, organizando manifestações, greves, pichações e cursos políticos para trabalhadores e jovens comunistas. Com o agravamento dos conflitos sociais na Alemanha, cresce a repressão policial aos militantes comunistas. Embora vivendo com nomes falsos, na clandestinidade, o casal corre o risco permanente de ser preso, o que acabaria acontecendo em outubro de 1926. Olga ficou na prisão de Moabit apenas dois meses, mas Otto permaneceu lá, acusado de “alta traição à pátria”. Em abril de 1928, a jovem revolucionária, à frente de um grupo de militantes, lidera um assalto à prisão para libertar o companheiro. A ação teve êxito total, pois, além de o prisioneiro ter escapado daquela prisão de “segurança máxima”, Olga e seus camaradas também conseguiram fugir incólumes.
Essa ação armada teve enorme repercussão, desencadeando uma grande caçada policial. A cabeça de Olga foi posta a prêmio pelas autoridades alemãs. Por decisão do Partido Comunista, o casal viajou clandestinamente para Moscou, onde Olga, com apenas 20 anos, se tornou dirigente da Internacional Comunista da Juventude. Na capital soviética, ela aprende russo, estuda inglês e francês – para poder viajar pela Europa Ocidental em missões delegadas pela Internacional juvenil – e aprofunda seus conhecimentos de marxismo. Faz também um curso de pára-quedismo e pilotagem de aviões, na Academia Zhukovski, da Força Aérea, mas não chega a concluí-lo, pois teve de viajar para o Brasil.
Olga, que a essa altura já se separara de Otto Braun, era então uma destacada combatente da revolução mundial – uma internacionalista, segundo a concepção dos comunistas da época, para os quais a vitória do socialismo em escala mundial estava posta na ordem do dia. No final de 1934, ela recebeu da Internacional Comunista a tarefa de acompanhar Luiz Carlos Prestes, que estivera trabalhando na URSS entre 1931 e 1934, em sua viagem de volta ao Brasil. Sua missão era zelar pela segurança do líder político, uma vez que o governo Vargas decretara sua prisão. Olga já conhecia de nome o “Cavaleiro da Esperança”, cujos feitos à frente da Coluna Prestes, que percorrera 25 mil quilômetros Brasil adentro, sem sofrer nenhuma derrota das forças legalistas, tinham repercutido no continente europeu. Mas pela primeira vez encontrava-se pessoalmente com o ex-líder tenentista, que havia aderido ao comunismo, tendo sido aceito no Partido Comunista do Brasil (PCB) em agosto daquele ano. Sua viagem com Prestes foi para ela mais uma tarefa a cumprir em prol da revolução mundial, de acordo com o célebre apelo do Manifesto Comunista de Marx e Engels: “Proletários de todos os países, uni-vos!”.
Prestes e Olga partiram de Moscou no final de dezembro de 1934, viajando com passaportes falsos, como marido e mulher, apesar de estarem se conhecendo naqueles dias.
Durante a longa e acidentada viagem rumo ao Brasil, os dois se apaixonaram, tornando-se efetivamente marido e mulher. Tinha início um grande amor, que contribuiria para intensificar ainda mais, por parte de ambos, o ardor revolucionário e a dedicação à causa abraçada, de libertação da humanidade da exploração do homem pelo homem.
Prestes e Olga chegam ao Brasil em abril de 1935, passando a viver clandestinamente na cidade do Rio de Janeiro. Em março, no Teatro João Caetano, ele é aclamado presidente de honra da Aliança Nacional Libertadora (ANL), uma ampla frente única, cujo programa visava à luta contra o imperialismo, o latifúndio e a ameaça fascista que pairava sobre o mundo. No Brasil crescia o movimento integralista, versão brasileira do fascismo europeu. Plínio Salgado, principal líder desse movimento, fundara em 1932 a Ação Integralista Brasileira (AIB), cuja atuação provocadora, sob o lema “Deus, Pátria e Família”, estava dirigida principalmente contra as forças democráticas e progressistas que procuravam congregar-se na ANL. Ao mesmo tempo, o lema da ANL, “Pão, Terra e Liberdade”, mobilizou amplos setores populares e da opinião pública brasileira, o que, em grande medida, viria a contribuir para o fechamento da entidade pelo governo Vargas, em julho de 1935.
Olga era a responsável pela segurança do marido, servindo também de elemento de ligação entre ele e os companheiros, tanto do PCB quanto da ANL. O “Cavaleiro da Esperança” torna-se a principal liderança do movimento antifascista no Brasil. Assessorado o tempo todo pela mulher, ele participa dos preparativos de uma insurreição armada contra o governo Vargas, que deveria estabelecer no país um Governo Popular Nacional Revolucionário, representativo das forças sociais e políticas agrupadas na ANL.
Com o insucesso dos levantes de novembro de 1935, desencadeia-se violenta repressão policial contra os comunistas e aliancistas, como eram chamados os membros da ANL.
Em 5 de março de 1936, Prestes e Olga são presos por agentes do famigerado capitão Filinto Muller, então chefe da polícia de Vargas, no subúrbio carioca do Méier. A ordem expedida aos agentes policiais era clara – a liquidação física de Luiz Carlos Prestes. Mas, no momento da prisão, Olga salvou-lhe a vida. Interpondo-se entre o marido e os policiais, ela impediu seu assassinato. Prestes e Olga foram violentamente separados. Ele, conduzido para o antigo quartel da Polícia Especial, no Morro de Santo Antonio, no centro do Rio de Janeiro. Ela, após uma breve passagem pela Polícia Central, levada para a Casa de Detenção, situada então à Rua Frei Caneca, onde ficou detida junto às demais companheiras que participaram do movimento da ANL.
Prestes e Olga nunca mais se veriam. Em setembro de 1936, grávida de sete meses, ela era extraditada para a Alemanha hitlerista pelo governo de Getúlio Vargas. Junto com Elise Ewert, outra comunista e internacionalista alemã que participara da luta antifascista no Brasil, foi embarcada à força, na calada da noite, no navio cargueiro alemão La Coruña, viajando ilegalmente, sem culpa formada, sem julgamento nem defesa. O comandante do navio recebeu ordens expressas do cônsul alemão no Brasil para dirigir-se direto a Hamburgo, sem parar em nenhum outro porto estrangeiro, pois havia precedentes de portuários espanhóis e franceses resgatarem prisioneiros deportados para a Alemanha, quando tais navios aportavam à Espanha ou à França. Após longa e pesada travessia, as duas prisioneiras foram conduzidas incomunicáveis para a prisão de mulheres de Barnimstrasse, em Berlim, onde Olga deu à luz sua filha Anita Leocádia, em novembro de 1936.
Numa exígua cela dessa prisão, submetida a regime de rigoroso isolamento, conseguiu criar a filha até os 14 meses, graças à ajuda, em alimentos, roupas e dinheiro, que recebeu da mãe e da irmã de Prestes. Ambas se encontravam em Paris, dirigindo a campanha internacional de solidariedade aos presos políticos no Brasil. Com a deportação de Olga, a campanha se ampliara em defesa da esposa de Prestes e de sua filha. Várias delegações estrangeiras foram à Alemanha pressionar a Gestapo, a polícia de Hitler, obtendo afinal a entrega da criança à avó paterna – Leocádia Prestes, mulher valente e decidida, a quem o grande poeta chileno Pablo Neruda dedicou o poema Dura elegia, que se inicia com o verso: “Señora, hiciste grande, más grande, a nuestra América” (“Senhora, fizeste grande, maior ainda, a nossa América”).
A campanha internacional, que atingiu vários continentes, não conseguiu, contudo, a libertação de Olga. Logo depois ela seria transferida para a prisão de Lichtenburg, situada nas imediações de Prettin, cem quilômetros ao sul de Berlim. Tratava-se de uma fortaleza tenebrosa, cercada por altíssimas muralhas, construídas ainda pelas tropas de Napoleão. Um ano mais tarde, Olga era confinada no campo de concentração de Ravensbrück, onde, juntamente com milhares de outras prisioneiras, seria submetida a trabalhos forçados para a indústria de guerra da Alemanha nazista. A situação de Olga seria particularmente penosa, pois carregava consigo duas pechas consideradas fatais – a de comunista e a de judia. Em abril de 1942, Olga era transferida, numa leva de prisioneiras marcadas para morrer, para o campo de concentração de Bernburg, onde seria assassinada numa câmara de gás.
As cartas que Olga conseguiu escrever para a família e o testemunho de suas companheiras de infortúnio, tanto no Brasil quanto na Alemanha, revelam sua firmeza inabalável de caráter – a convicção profunda na justeza dos ideais revolucionários que abraçara e, em particular, seu espírito de solidariedade e justiça. Olga conquistou a amizade, e a admiração, das companheiras com quem conviveu nas trágicas condições das prisões e dos campos de concentração nazistas por onde passou.
Prestes permaneceu preso no Brasil durante nove anos, até ser libertado pela anistia conquistada em abril de 1945, quando da redemocratização do país. As cartas que, apesar dos percalços, recebeu de Olga, da mesma maneira a sua própria correspondência da prisão, já são, hoje, de domínio público. Estão reunidas na obra Anos tormentosos. Luiz Carlos Prestes: correspondência da prisão (1936-1945). São cerca de novecentas cartas – correspondência pessoal ativa e passiva – em sua maioria até então inéditas, que fazem parte do arquivo particular de Lygia Prestes, a irmã mais moça do líder revolucionário. Foram conservadas por ela durante mais de seis décadas – malgrado as perseguições, exílios e toda sorte de dificuldades por que passou a família num período extremamente conturbado da história do país e da vida dos comunistas brasileiros.
A grandeza dos sentimentos humanos, que transparece na correspondência de Prestes e de Olga com a família e, no caso de Prestes, com alguns amigos e companheiros de luta, vem desmentir a tão propalada insensibilidade dos comunistas, a sua suposta intolerância e frieza perante os seus semelhantes e, em particular, desmistificar a imagem de Prestes “fabricada” por seus inimigos durante décadas – a de um homem desumano, cruel, indiferente, frio, calculista e arbitrário. Da documentação apresentada desponta a personalidade de um combatente, cuja firmeza de caráter provoca admiração, de um revolucionário dedicado inteiramente à sua causa e que, por isso mesmo, não perdeu as características do mais legítimo humanismo. Como diria mais tarde Che Guevara, outro revolucionário admirável, “é preciso endurecer, sem jamais perder a ternura”.
Em suas cartas enviadas do cárcere à mãe, que se encontrava exilada no México em companhia da filha Lygia e da neta por elas resgatada da prisão nazista, Prestes revelava a preocupação de que a filha Anita Leocádia soubesse que nem ele nem Olga se sentiam infelizes com a sorte que o destino lhes reservara. Pelo contrário, apesar dos sofrimentos, apesar da imensa tristeza de se encontrarem separados um do outro, longe da filha e das pessoas que mais amavam, consideravam-se felizes por terem consciência do “dever cumprido”. E nisso, para eles, consistia a mais completa felicidade.
Segundo testemunhos de companheiras do campo de concentração, Olga jamais se entregou ao desespero nem ao conformismo, lutou até o último momento de sua curta vida, infundindo coragem e confiança no futuro em todos aqueles que a rondavam. Prestes saiu da prisão para a luta; seu objetivo jamais foi a vingança, mas a conquista de um futuro melhor para o povo brasileiro e para a humanidade. Foi a esta causa generosa que ele dedicou o restante de sua vida.
Anita Leocádia Prestes é professora no Departamento de História da UFRJ e autora, dentre outros livros, de Luiz Carlos Prestes e a Aliança Nacional Libertadora: os caminhos da luta antifascista no Brasil (1934/35) (Petrópolis, Vozes, 1997). Este artigo foi originalmente publicado na revista Nossa História, nº 9, jul 2004. O Livro e o filme
Entrevista com Fernando Morais
Como “Olga” surgiu em sua vida?
Eu me lembro de ter ouvido falar de Olga Benario pela primeira vez quando era garoto, meu pai era um militante (era gerente de banco), comentava o crime que Getúlio e Filinto Müller tinham cometido, mandando a mulher de Prestes, judia e comunista, grávida para a Gestapo. Cresci, virei jornalista e nunca perdi de vista a perspectiva de um dia descobrir e contar essa historia. Isso só foi possível com o fim da ditadura e foi por aí, no começo dos anos 80, que comecei a pesquisar sobre o assunto.
Porque a vida de Olga tem tanta ressonância hoje, mais de 60 anos depois de sua morte?
Isso é algo que me intriga há muito tempo. Sobretudo, agora, com o filme que, em três semanas de exibição, já está batendo nos 2 milhões de espectadores – isso a despeito da opinião da critica. O que prova que Nelson Rodrigues tinha razão quando dizia que critico não consegue levar nem uma bactéria ao cinema. Olga foi traduzido em mais de vinte países, com enorme sucesso em alguns deles. Acredito que Olga continua atual porque é uma denuncia contra a intolerância política e étnica e contra o machismo – fenômenos que continuam muitos vivos. E também porque chama bastante a atenção dos jovens para o fato de que houve uma época em que as pessoas eram capazes de dar suas vidas em defesa de idéias e de princípios.
Olga foi uma mulher alem de seu tempo. Será que, com sua liberdade de escolha, corresponde à mulher e sua condição no inicio do século XXI?
Creio que sim. Se nos dermos conta de que a história dela se passa no começo do século XX, com todo o conservadorismo da época, torna-se ainda mais surpreendente que Olga Benario tenha ocupado papéis que eram exercidos quase exclusivamente por homens. Nesse sentido também ela era uma mulher à frente da sua época.
Comente a relação entre o livro e o filme. O filme é um retrato do que está publicado no livro de sua autoria?
Jorge Amado oferecia um conselho a autores que tinham livros adaptados para o cinema ou televisão: “Não vejam”. Faz sentido. Livro é livro, filme é filme. Apesar de estar prevenido, achei o filme de Jayme Monjardim e Rita Buzzar muito fiel ao livro. È muito comum, no processo de adaptação, se eliminar personagens, criar outros e até fundir dois personagens num só. No caso de Olga, o filme essas liberdades dramatúrgicas são muito poucas, e ainda assim, sem mutilar a historia real. Eu gostei muito.
EDIÇÃO 75, OUT/NOV, 2004, PÁGINAS 68, 69, 70, 71, 72