Comunidade Sul-Americana de Nações: progressos e obstáculos
A idéia de integrar o subcontinente sul-americano – uma antiga aspiração progressista dos povos da região –, começa a tomar forma desde o impulso recebido a partir de vitórias eleitorais de candidatos com plataformas desenvolvimentistas e antineoliberais num conjunto de países da região (1) que resultaram em novos governos progressistas por toda a área. Fruto dessa nova situação, produto direto da fadiga de duas décadas de políticas neoliberais, criou-se uma nova situação, na qual a integração sul-americana foi alçada a um novo patamar de prioridade política. Assim, neste mês de dezembro será consolidado em Ayacucho, Peru, na reunião de Presidentes da América do Sul, o Acordo de Livre Comércio, estabelecido no âmbito da Aladi (2), entre o Mercosul e a Comunidade Andina (3), conformando, assim, o embrião de uma prometida integração regional mais ampla.
O Mercosul-CAN pode ser definido como um acordo comercial clássico, de comércio de bens e serviços – não envolvendo questões, a rigor, extracomércio, como vem se tornando padrão nas negociações com os países ricos. Determinados produtos terão suas tarifas rebaixadas a zero e outros, sensíveis, em até 15 anos. Num primeiro momento modesto, o acordo, no entanto, abrirá caminho para uma integração mais ampla. Assim, confirmada uma primeira etapa a integração comercial, o próximo desafio sul-americano será agregar o restante da América Latina (América Central e Caribe) e avançar na institucionalização do bloco, na formatação de políticas de desenvolvimento integradas, na integração das cadeias produtivas, no incentivo à utilização de insumos regionais, além da integração cultural e cientifica.
A idéia de unir o sul da América remonta a um sonho de libertadores como Simon Bolívar, dentre outros. Mas uma das primeiras tentativas efetivas de integração sul-americana é impulsionada pelo barão de Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira que, com sua visão estratégica, conforma o chamado Pacto ABC (Argentina, Brasil e Chile), precursor do atual Grupo do Rio – e depois sepultado por desconfianças e intrigas que prosperariam entre vizinhos, que chegaria ao ápice com a paranóia das ditaduras militares em considerarem o vizinho – e não o imperialismo estadunidense – como suposto inimigo estratégico. Do ponto de vista econômico, porém, a conformação da Comunidade Sul Americana de Nações remonta a 1960, quando da criação da Associação Latino-americana de Livre Comércio (Alalc), com forte apoio de Juscelino Kubitscheck, e antecessora da Aladi, criada em 1980 – hoje, base institucional legal para a criação da Comunidade Sul-americana de Nações.
Mas é em período recente, a partir da transição a uma nova realidade política na região e tendo como pólo propulsor da integração o Mercosul revitalizado (4), que se deram as condições para a formalização da Comunidade. Joga a favor da integração, particularmente, a existência de um coeso núcleo-duro das três das maiores nações da região (Brasil, Argentina e Venezuela), catalisadores da integração, bem como da coesão política do Mercosul – que deve se consolidar com a vitória da esquerda uruguaia. Nesses países, a reemergência da questão nacional e de uma agenda desenvolvimentista, joga a favor, na resistência, para a unidade e integração da região.
Essa opção soma-se a outros movimentos recentes, nos quais se afirma, também como luta de resistência, uma nova e contemporânea aliança sul-sul dos países em desenvolvimento em torno de causas progressistas e de seu interesse comum. Dentre outras iniciativas, com o mesmo sentido geral, poderíamos citar a criação do G-20 no âmbito da OMC; a recente realização da XI Unctad em São Paulo; o relançamento do Sistema Geral de Preferências Comerciais entre os países em desenvolvimento (SGPC); a revitalização de articulações como o Grupo do Rio, o G-77 e o Movimento dos Não-alinhados; a aliança de uma centena de países no âmbito da ONU contra a fome e a pobreza; a conformação do fórum IBAS (Índia, Brasil e África do Sul); e no âmbito estritamente regional, o relançamento do Mercosul, a protelação da Alca; e a participação mais intensa dos países da região na gestão de crises regionais, como Venezuela e Haiti. Em todas essas iniciativas, destaca-se o intenso protagonismo da diplomacia brasileira sob o governo Lula.
Não obstante, a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações defronta-se com um contexto internacional desfavorável – agravado com a reeleição de George W. Bush –, configurando-se como uma ação de resistência, ou numa contratendência relativa à tendência dominante – a ofensiva neoliberal – que no campo político e econômico configura-se como obstáculo para a consecução da integração da região.
Três classes de obstáculos à integração
O primeiro obstáculo é de ordem política. Em que pese as importantes vitórias eleitorais mencionadas – da qual a vitória frenteamplista no Uruguai é a mais recente –, subsistem na região governos à direita, ideologicamente cooptados pela ideologia dominante, que insistem em priorizar alianças políticas e econômicas com os países desenvolvidos, por vezes numa relação de aprofundamento de sua dependência econômica, não obstante, fortes movimentos contestatórios dessas opções por parte de seus povos – gerando constantes crises de governabilidade na região, como ocorreu na Bolívia em 2003 e, neste ano, no Peru, na sempre conflagrada Colômbia e novamente no Equador.
Assim, os limites à coesão política de toda a região e discrepância entre os países, em temas como a Alca, poderão ser explorados pelo imperialismo estadunidense ancorado em governos quinta-colunas na região.
Um segundo paradoxo enfrentado relaciona-se com a ofensiva dos países ricos (EUA e UE) no sentido de conformar acordos comerciais profundamente assimétricos, cuja consecução ameaça fortemente projetos de desenvolvimentos nacionais autônomos, como é o caso, por exemplo, do Tratado de Livre Comércio EUA-Comunidade Andina, em negociação.
Afinal, o atual modelo internacional de “livre comércio” transcende, em muito, meras reduções de tarifas, sendo extremamente restritivas em relação à manutenção de autonomia de políticas nacionais de desenvolvimento, pois, a rigor, trata-se de negociações que transcendem em muito comércio strito-senso. A lógica impõe limites à margem de manobra dos países em desenvolvimento, em economias bastante assimétricas. Desse modo, as dificuldades atuais verificadas para a assinatura de acordos comerciais com os EUA e a UE refletem seu objeto inconfesso de perpetuar a atual ordem econômica internacional, profundamente injusta e desigual. Países ricos sob o atual quadro de forças não aceitam “acordos ligth” – que preservem autonomia de políticas nacionais de desenvolvimento – por ampliação do acesso a seu mercado por parte dos países em desenvolvimento. Exigem, para assinar acordos comerciais, enormes concessões em mecanismos de política industrial – o que perpetuaria nossa dependência econômica, comercial e tecnológica. Essa é precisamente a causa básica dos impasses a que estão submetidos acordos regionais (Alca), intra-regionais (com a União Européia) e multilaterais (como na OMC, em que pese pequenos avanços no acordo de julho).
A UE, por exemplo, fala isso sem meias palavras, como nas recentes negociações com o Mercosul, ao centrar a crítica à proposta do Mercosul pela “salvaguarda a indústrias nascentes, abertura insuficiente nas compras públicas e exclusão de muitos setores industriais”. Diz o mediador europeu, por exemplo, que exigiu maiores concessões do Mercosul “em serviços, transporte marítimo, seguros, bancos, telecomunicações e outros” e o fim do “constrangimento” para empresas européias nas licitações públicas. Além disso, “desagradou à UE (…) sua insistência (do Mercosul) em ter a prerrogativa de criar subsídios para empresas nacionais, inclusive compensatórios para produtos que também são incentivados pela UE”(5). Algumas mudanças pedidas pela UE, diz o Itamaraty, exigiriam, inclusive, alterações constitucionais e legais dada as restrições para nossa soberania nacional que elas ensejam. Com os Estados Unidos, no âmbito da Alca não é diferente.
Definitivamente, o atual modelo de “livre comércio” distorce a simples liberalização dos fluxos comerciais entre os países, isto sim, de interesse dos países em desenvolvimento.
Além disso, a luta pelo desenvolvimento dos países em desenvolvimento esbarra nos escandalosos subsídios agrícolas dos países ricos, estimados em US$ 1 bilhão/dia. O caso dos subsídios dos EUA ao algodão, por exemplo, tornaram-se simbólicos para alguns países pobres da África – amplificados com a decisão preliminar da OMC de condená-los. Segundo estudo encomendado pelo Brasil, não fosse a superprodução norte-americana possibilitada pelos subsídios, os preços internacionais de algodão seriam 12,6% mais altos. Para cada dólar recebido pelos produtores norte-americanos de algodão, o governo pagou-lhes outros 89,5 centavos de dólar. Assim, artificialmente a participação norte-americana no comércio mundial de algodão cresceu de 17% na safra 1998-99 para 42% na safra 2002-03. Os subsídios ao algodão nos EUA, da ordem de US$ 13,1 bilhões no período, beneficiam 25 mil agricultores enquanto jogam na miséria 15 milhões de africanos que vivem da cultura do algodão, arruinando países como Benin, Burkina Fasso e Mali, cujos ingressos de exportação com algodão, representam, respectivamente, 71%, 62% e 57% de suas vendas totais(6).
Por fim, uma terceira contradição refere-se aos profundos constrangimentos a que foram submetidos os países sul-americanos com a adoção de políticas neoliberais, no sentido de limites à capacidade de realizar urgentes investimentos para a modernização e integração em infra-estrutura. Como é evidente, aspecto medular da integração regional é a expansão da infra-estrutura em estradas, ferrovias, energia, comunicações etc, visando a condições para o pleno intercâmbio de bens e serviços. Mas o alto nível de endividamento público e as crescentes obrigações financeiras – aliados a legislações nacionais restritivas ao gasto público – impostas a partir de fora, por pressão dos organismos financeiros internacionais, são características comuns a quase todos os países da América do Sul e constituindo fortes obstáculos à integração regional.
Assim, também nesse campo, vem freqüentando com assiduidade os comunicados e declarações bilaterais ou multilaterais na região a idéia de retirar os investimentos públicos do cálculo do superávit primário, bem como a de criar uma Autoridade Sul-americana de Investimentos. Além disso, a reativação do mecanismo CCR (Convênio de Crédito Recíprocos), uma espécie de caixa de compensação entre os países quase desativados por governos neoliberais na década de 90 – que funciona como uma garantia de financiamentos sem o uso de divisas como o Dólar –, ativa a cooperação no financiamento da integração física da América do Sul.
No caso da integração da infra-estrutura, base para a efetiva integração regional, destaca-se a ênfase política que vem alcançando a idéia da integração energética. Além de gestos concretos – como a concessão de financiamentos energéticos do BNDES ou da Petrobras na Argentina, em Cuba e na Venezuela –, ganha terreno a idéia de associação das maiores empresas de energia da região (PDVSA, Petroecuador, Petrobras e outras) num conglomerado denominado PetroAmerica ou PetroSul.
Como diz Darc Costa, “foi no campo da energia que a América do Sul conseguiu os maiores avanços nos últimos 20 anos, dos quais alguns realmente importantes, que incluem o domínio do ciclo nuclear completo por parte da Argentina e do Brasil; a construção da maior represa de Itaipu, construída pelo Brasil e o Paraguai; o de-senvolvimento da industria petrolífera, em especial o domínio tecnológico da prospecção e exploração em águas profundas obtido pela Petrobras no Brasil” (171:2003)(7). Apenas a conformação do conglomerado PetroAmerica faria surgir uma empresa que controlaria 13% da produção mundial de petróleo(8), algo de grande importância estratégica nestes tempos de “guerra por petróleo”.
O Brasil e a integração sul-americana
Para o Brasil, a integração regional é um destino e uma opção estratégica. Nesse sentido, acerta o governo Lula ao efetivamente colocar a questão no topo da agenda de sua política externa.
Não obstante, enfrentamos, todavia, uma batalha de idéias na sociedade brasileira sobre qual modo de inserção internacional de nosso país – refletindo-se, sobretudo, em preocupações que volta e meia circulam em certos meios empresariais e na imprensa conservadora. O estancamento da Alca, por exemplo, tem gerado manifestações inequívocas desse sintoma.
Nelas, importantes frações das classes dominantes – desprovidas de sentido de projeto nacional, e exalando forte pragmatismo segmentado –, como setores da indústria paulista, segmentos mais atrasados do agronegócio e o mercado financeiro vêm numa crescente onda de ataques ao Mercosul e à opção regionalista do governo brasileiro.
Alguns mais afoitos chegam a propor até mesmo o abandono do Mercosul, na tentativa de impor um retrocesso na política comercial do governo Lula, e numa volta a uma submissão quase que incondicional às grandes potências – numa expectativa de obter um naco de um rico mercado para seu nicho, ignorando a totalidade dos interesses do Brasil como nação. Um de seus porta-vozes é nada menos que o sr. Fernando Henrique Cardoso como, em palestra recente, criticou a política comercial do governo Lula, que para ele deve “tomar uma posição ofensiva e ter uma visão econômica mais clara” (9). A julgar por seu governo, talvez FHC esteja lamentando o abandono de sua política de bajulação aos ricos, em troca de algumas migalhas e de soberba e arrogância em relação aos países em desenvolvimento.
A estratégia de inserção internacional do Brasil passa necessariamente pela consolidação do espaço sul-americano como espaço fundamental para contrabalançar os desequilíbrios de um mundo unipolar, sendo, nesse sentido, uma opção estratégica para nosso país e para toda a América do Sul.
Ronaldo Carmona é graduando em ciências sociais e membro da Comissão de Relações Internacionais do PCdoB.
Notas
(1) Dentre outras, destaca-se a de Hugo Chávez (1998) na Venezuela; Lula (2002) no Brasil; Nestor Kirchner (2003) na Argentina; e Tabaré Vasquez (2004) no Uruguai.
(2) Associação Latino-Americana de Integração, sucessora da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc), criada em 1960 pelo Tratado de Montevidéu e constituída pelos países sul-americanos, pelo México e por Cuba.
(3) Trata-se do chamado Acordo de Complementação Econômica (ACE) nº 59, subscrito pelos quatro integrantes do Mercosul e por três países da Comunidade Andina (Colômbia, Equador e Venezuela). Dos outros três países andinos, Chile e Bolívia já são membros associados ao Mercosul e o Peru já havia assinado o ACE nº 58 (Mercosul-Peru).
(4) Ver Programa de Trabalho do Mercosul 2004-2006 (Mercosul/CMC/DEC nº 26/03), idéia em execução visando à revitalização econômico-comercial, física e energética, cientifica e tecnológica, social e institucional do Bloco, proposta pelo governo brasileiro e aprovada na reunião de Montevidéu em dezembro de 2003.
(5) Para as citações deste parágrafo, e razões do fracasso do acordo, ver CARMONA, Ronaldo, “O fracasso do acordo com a União Européia e o Projeto Nacional” (2004) in www.vermelho.org.br
(6) ver “Subsídios norte-americanos ao algodão”, nota do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, in www.mre.gov.br
(7) COSTA, Darc. (2003). Estratégia Nacional – A Cooperação Sul-Americana como caminho para a inserção internacional do Brasil. Porto Alegre: L&PM Editores.
(8) Ver FRAGA, Rosendo, “La energia como factor politico em America del Sur”, in: www.nuevamayoria.com/ES.
(9) in Folha on line, edição eletrônica, 25/11/2004.
EDIÇÃO 76, DEZ/JAN, 2004-2005, PÁGINAS 38, 39, 40, 41, 44