Existe um interessante paralelo entre a Alemanha e o Brasil neste momento: ambos passam por uma crise política que, por motivos muito diferentes, pode dar um novo rumo às esquerdas, tanto a institucional-partidária quanto a social.

Um novo governo que a princípio seria de centro-esquerda foi eleito sob grande esperança por por mudanças de rumo da política conservadora e por uma política social que apresentasse soluções para a grande massa de desempregados, que desenvolvesse e fomentasse políticas ecológicas (principalmente passando da produção de energia nuclear para fontes de energia sustentáveis), enfim, com partidos que estariam do lado da classe trabalhadora, com fortes laços no movimento sindical, e provenientes de importantes movimentos sociais, como o movimento ecologista. O partido social-democrata (SPD) e o partido Verde (Bündnis90/Die Grüne) assumiram o governo em 1998 após 16 anos no poder do conservador-liberal, liderado por Helmut Kohl. Já no início de seu primeiro mandato, este governo chamado de “vermelho-verde” dava significativos sinais de sua verdadeira face: a importante figura da esquerda do SPD, o “keynesiano” ministro da economia Oscar Lafontaine abandona seu cargo no governo e no partido por estar em desacordo com as políticas conduzidas por Schröder e seus compromissos com grandes empresários. Também nesse primeiro mandato, a Alemanha põe, pela primeira vez após a Segunda Guerra Mundial, seus tentáculos militares para fora do país ao entrar através da OTAN nas guerras de Kosovo e Afeganistão. Esta política militarista e alinhada aos EUA é feita precisamente sob o “comando central” de um partido nascido do movimento pacifista, ecólogo e antimilitarista, o partido verde.

Schröder se reelegeu em 2002 opondo-se à invasão do Iraque. No mesmo mês em que as forças imperialistas atacavam esse país, março de 2003, Schröder fez seu mais importante discurso no parlamento alemão, lançando seu principal programa: a chamada Agenda 2010. O que essa agenda representa é a consolidação do neoliberalismo a esse país: o total desmantelamento dos direitos trabalhistas, dos direitos sociais, a institucionalização da pobreza (com a dissolução da ajuda social e ajuda ao desemprego em uma só remessa que tem um valor bem abaixo dos até agora proferidos), a consolidação legal da precarização do trabalho e da vida (com o fomento a mini-empregos, empregos a 1,00 Euro/hora e inclusive a obrigatoriedade de se aceitar qualquer tipo de emprego sob perigo de sanções e cortes da ajuda estatal). Com isso, importantes valores foram redefinidos: a população é chamada a mostrar mais “trabalho voluntário”, é exigido do indivíduo que assuma responsabilidade sobre sua própria condição social, e o conceito de justiça social é totalmente redefinido nos discursos políticos. Enfim, o existente Estado de Bem-estar Social é apresentado como um “fardo” carregado por aqueles que “realmente trabalham” e o(a) desempregado(a) é exposto(a) como “preguiçoso(a)”. Este pacote de “reformas” tem muitas medidas que não cabe serem detalhadas neste espaço. Importante é que elas foram introduzidas passo a passo, abafando a possibilidade de uma revolta e mobilização geral da população.

Essa estratégia, no entanto, não funcionou por completo. Ao anunciar o conjunto de medidas relativas ao mercado de trabalho, seguro desemprego e seguro social (subpacote “Hartz”, denominado pelo nome do presidente da comissão que o elaborou, o diretor da Volkswagen Peter Hartz), talvez o governo “vermelho-verde” não tivesse contado com a massa de desempregados e trabalhadores precarizados que ocuparam as ruas das principais cidades do leste da Alemanha durante o verão de 2004. Já antes dessas demonstrações de massa, mas ganhando força através delas, deu-se um processo de dissidência e desfiliação dos partidos no governo, principalmente por parte de membros de setores de esquerda do SPD e de sindicalistas filiados a este partido. Estes e alguns outros grupos formaram uma associação, que posteriormente adquiriu caráter partidário, denominada “Iniciativa Eleitoral Trabalho e Justiça Social” (WASG, sigla em alemão).

A WASG é composta principalmente por sindicalistas (especialmente do Verdi, sindicato unificado do setor de serviços) e dissidentes do SPD, mas também por membros de movimentos sociais, alguns membros de redes contra a globalização (como o attac) e até alguns grupos trotskistas. Ou seja, uma grande mistura que se uniu em oposição às medidas da Agenda 2010, especialmente o “Hartz IV”.

Enquanto no Leste da Alemanha o PDS — partido do socialismo democrático, derivado do ex-partido unificado da ex-Alemanha socialista — é ainda a mais votada força de esquerda, a WASG vem conseguindo — mesmo que ainda de forma debilitada — chamar a atenção de parte da população na Alemanha Ocidental que costumava votar nos partidos do governo.

Em maio deste ano, ao perder as eleições no estado de Nordrein-Westfallen e, com isso, a maioria da segunda Câmara Legislativa (Bundesrat), Schröder viu-se obrigado a pedir a antecipação das eleições parlamentares em um ano, e assim obter novamente legitimidade para seguir governando.

Provavelmente ele tenha contado com o despreparo de seus adversários, tanto de direita quando de esquerda, já que a oposição conservadora ainda adiava a decisão sobre quem seria candidato e a esquerda se encontrava desunida e incapaz de mobilizar as massas e canalizar suas reivindicações de forma efetiva.

PDS e WASG criam lista conjunta: Partido de Esquerda, PDS

O tiro de Schröder saiu de certa forma pela culatra. Não só a oposição conservadora lançou rapidamente a candidatura de Angela Merkel (presidente da CDU, uma personalidade da Alemanha Oriental), como as duas forças institucionais de esquerda – o PDS e a nova alternativa eleitoral WASG — se viram obrigadas a adiar discussões e debates internos e a dar um passo ousado, fazendo uma aliança de esquerda com uma única lista eleitoral.
Este passo não foi fácil. Primeiro alguns impedimentos legais: a WASG não é um partido e os dois

Eleições na Alemanha: conseqüências para a esquerda

“A Alemanha votou. Só não se sabe em quem!”. Esta é a frase mais repetida na mídia alemã desde os resultados confusos das eleições antecipadas. No geral, o resultado foi bom para a esquerda: apesar de os partidos abertamente conservadores e neoliberais (CDU, CSU e FDP) terem maioria no Congresso, se fossem somadas as bancadas dos partidos tradicionalmente mais progressistas — o SPD e os Verdes — com a nova bancada do novo Partido de Esquerda teríamos um quadro anticonservador. Além disso, o SPD perdeu 4% e os Verdes 0,5% em relação às últimas eleições em 2002, demonstrando o descrédito de suas políticas liberais de desmantelamento dos direitos sociais e trabalhistas. O SPD foi obrigado, no fim da campanha, a apelar ao seu tradicional papel de “representante da classe trabalhadora, desempregada, ou precária”, argumentando que os partidos conservadores aprofundariam ainda mais a flexibilização das leis trabalhistas e sociais. E mesmo o partido liberal , FDP, ter ganhado mais votos que antes (9,8%) se deve ao fato de os eleitores tradicionalmente votantes do CDU/CSU terem mudado para o FDP por não se identificarem com — ou mesmo por serem contrários a ela — a candidata Angela Merkel. Enfim, não se verificou, após essas eleições, uma maioria liberal-conservadora na Alemanha; pelo contrário, os votos foram por mudanças.

Contudo, nada mudou. Independente de qual coalizão for formada, o conteúdo das políticas neoliberais até agora seguidas não mudará. Elas deverão até se aprofundar. Mas uma voz parlamentar poderá fazer oposição a elas, canalizando as demandas vindas das ruas, das bases: a coligação PDS/WASG, formando o novo Partido de Esquerda, é a grande novidade no novo parlamento.

Quem foram os eleitores desse novo partido, que conseguiu 8,7% dos votos? De acordo com a pesquisa Infratest-dimap e a ARD, mais de 25% deles vieram do Leste, da antiga Alemanha socialista, e somente 4,9% do Oeste. Na sua maioria, os eleitores dessa coligação têm entre 35 e 59 anos de idade, são em grande parte desempregados(as) (23%) e trabalhadores(as) (12%). Ela foi eleita principalmente pelos temas “justiça social” e “mercado de trabalho”, e em regiões onde a taxa de desemprego é alta (20% dos eleitores nessas regiões). Os eleitores têm em sua maioria pouco poder de consumo e estão divididos entre lugares com pouca e muita densidade demográfica. Em toda a Alemanha, um grande número de votantes (970 mil) mudou seus votos do SPD para o Partido de Esquerda, bem como 430 mil não-votantes passaram a votar neste partido. Portanto, temos um quadro de eleitores de classes média e baixa, desempregados, de faixa etária alta e provenientes de uma tradição socialista. (Para dados mais detalhados sobre todos os partidos e regiões, consulte http://stat.tagesschau.de/wud246/index.shtml).

Existe dentro da esquerda social organizada na Alemanha, entretanto, certo ceticismo em relação à concentração de forças em torno de um novo partido político que, a seu ver, entrará no mesmo jogo que os outros, apelando ao pragmatismo para se manter no poder, abandonando os ideais e as demandas das bases e não alterando assim a correlação social de forças. Ao mesmo tempo, existe um descrédito e uma crítica ao parlamento e à democracia excessivamente representativa, como uma democracia de especialistas técnicos, onde os partidos acomodam seu aparato burocrático, dando pouco espaço a um real poder popular. Mesmo fundamentadas, essas críticas não devem levar a uma total desestruturação da esquerda nos âmbitos institucionais e estatais. Muitas vezes as vozes de parlamentares do PDS, e agora do Partido de Esquerda, são os únicos tons mais progressistas dentro das comissões parlamentares onde são debatidas e decididas questões de maior importância — como o planejamento orçamentário, a participação em guerras da OTAN, direitos humanos, ajuda e cooperação internacional, medidas e políticas da União Européia, entre muitas outras.

De acordo com o Prof. Elmar Altvater em seu artigo para o semanário Freitag (“Das ewige Haar in der Suppe”, 16/05/2005), os parlamentos perderam sua força na ditadura do mercado financeiro e por isso têm jogado um importante papel na luta contra a globalização. Eles têm fóruns globais paralelos aos fóruns sociais e, na Europa, levaram adiante a luta contra o Tratado Constitucional Europeu em conjunto com as forças sociais. Sem uma representação parlamentar, sindicatos e movimentos sociais não conseguiram barrar tal desmantelamento do Estado de Bem-estar Social feito pelo governo Schröder no último período legislativo. Talvez, com uma bancada de esquerda, essas medidas não passariam tão despercebidas.

Enfim, não devemos nos exceder nas expectativas de uma mudança na correlação de forças que leve a uma transformação social profunda. Este partido não tem forças para isso. Esta é mais uma questão de organizar e formar a militância e a população “de baixo” — uma massa de homens, mulheres e crianças sem formação, sem emprego e em situação de vida precária —, deixando às claras a decadência de uma sociedade que brilhou como potência econômica européia no pós-guerra (e do lado oriental como país-chave da União Soviética) e, após a reunificação, mergulhou de cabeça no sistema capitalista neoliberal. Mas a re-fundação da esquerda institucional pode reforçar as articulações da esquerda social, introduzindo seus temas na opinião pública e canalizando suas demandas para dentro das instâncias estatais federais.

Ana Saggioro Garcia juntos não poderiam formar um novo partido de esquerda às pressas em poucos meses, tendo o PDS, assim, de abrir sua lista para os integrantes da WASG se candidatarem. E muitos impedimentos políticos. Há uma grande oposição da WASG ao PDS na capital federal, Berlim, onde ele está governando em aliança com o SPD e implementando medidas neoliberais de cortes (há inclusive divergências dentro do próprio PDS em relação a este governo). O PDS é um partido de programática socialista, grande parte de seus membros tem acima de 50 anos e vem da antiga Alemanha Oriental.

Sua socialização provém, portanto, de um sistema que, apesar de todos os defeitos conhecidos, era anticapitalista. Já a maioria dos membros da WASG tem ideais social-democratas, de preservação dos direitos trabalhistas e sociais num sistema de bem-estar social dentro do capitalismo. E, por fim, o muro de Berlim ainda ronda muitas mentes: há um preconceito a ser superado de ambos os lados, separando ainda a Alemanha em dois. Para dissidentes do SPD e dos sindicatos era impensável uma filiação ao PDS. Este partido não tem praticamente nenhuma representação no lado ocidental da Alemanha, ele não faz parte da cultura política desta geração. A grande maioria dos cidadãos e cidadãs de esquerda dos antigos estados federais alemães ainda liga o PDS ao regime autoritário da ex-RDA (República Democrática Alemã, parte ocupada pelo exército vermelho após a Segunda Guerra), e o concebe como sucessor do antigo partido comunista unificado, o SED. Já do lado do PDS, existe a sensação de “pertença” e “reconhecimento do outro” no lado oriental que não é achada no lado ocidental. O impacto dos problemas sociais e de desemprego é bem maior e muitos não querem se juntar ao “reformismo” sindical e social-democrata. São preconceitos que demonstram um grande desconhecimento da parte de um e de outro, que provém de passados e socializações separadas, assim como da condução de vidas paralelas que muito pouco se cruzaram. Passar por cima de todos esse fatores e concorrer às eleições juntos em uma lista unificada, portanto, foi um grande avanço e uma grande conquista.

A campanha eleitoral do PDS e da WASG foi conduzida principalmente pelas Executivas dos dois lados. Importantes figuras “midiáticas” — como Gregor Gysi (PDS) e Oscar Lafontaine (recém-filiado à WASG) — foram os motores da aliança e da campanha, que podem ser vistas como uma “re-unificação” alemã. As Executivas conseguiram convencer as bases de que é importante deixar os preconceitos e alcançar uma bancada parlamentar no novo mandato que — independentemente de quem assuma a chancelaria, os social-democratas ou os democrata-cristãos — será ainda mais neoliberal.

E o que diz a população? Apesar de boa parte ter votado no Partido de Esquerda (8,7% no total), principalmente no Leste (25%), dando a este partido uma boa bancada parlamentar de 54 deputados, a grande massa continua à parte de tais articulações. O maior desafio do Partido de Esquerda é a mobilização das massas, ou melhor, incluir o povo participando nesse processo de construção das alternativas que são importantes para ele, não para as elites. Com isso, deve-se propor uma “agenda social” baseada em um processo constante de participação democrática e popular, que corresponda às necessidades dos (as) desempregados(as) e “precarizados(as)”.

A formação dessa nova força unificada de esquerda institucional tem como maior desafio sua interação com a esquerda social, ou seja, com os movimentos sociais de base, e com a população, rompendo assim a tradição alemã da “expertcracia”, a democracia conduzida por especialistas, técnicos e políticos profissionais de carreira. Para isso, é necessário primeiramente um processo interno de democratização, “horizontalização” e não-exclusão das bases.

A democracia representativa e a via parlamentar-institucional têm, cada vez mais, perdido credibilidade como instrumento de uma processo transformador.Os movimentos sociais na Alemanha têm se mostrado céticos em relação ao acúmulo de forças concentrado na via eleitoral. Os sindicatos se encontram divididos: enquanto o IG Metall e o Verdi estão cada vez mais envolvidos, inclusive encabeçando postos dentro da WASG, a central sindical DGB — tradicionalmente ligada à social-democracia — demonstra-se oficialmente cética com o novo partido de esquerda e ainda acredita na luta por mudanças dentro do próprio SPD.

Em um recente artigo no jornal alemão Frankfurter Rundschau (“Weniger wird mehr sein”, 13/07/2005), o professor Ulrich Brandt nos lembra pertinentemente do fundamental: alternativas reais não vão surgir somente através de um partido ou um programa que tirarão votos do SPD e dos Verdes; elas surgirão através da transformação da correlação de forças sociais, da orientação dominante de um projeto contra-hegemônico que vem se desenvolvendo paulatinamente. Segundo ele, para que um novo partido de esquerda seja representativo tem de “se retirar” — ou melhor, uma relevante re-fundação da esquerda é um processo mais amplo que a fundação de um partido e muito já vem acontecendo em termos de reflexões teóricas, formação e articulação nas bases dos movimentos sociais.

Portanto, a esquerda institucional não substituirá o processo difícil e necessário de uma luta social que tem lugar nas massas, nas bases, que se desenvolve na luta cotidiana e prática. Ele deve, sim, interagir. O novo partido de esquerda alemão deve ser um ator social ativo nessas lutas, canalizando as demandas populares para dentro do parlamento, sem instrumentalizá-las. A experiência peculiar do PT no Brasil serve de lição. Uma lição que infelizmente deu errado. Poderá a nova experiência de esquerda alemã apontar alternativas para a radical transformação da esquerda brasileira já em curso.

Ana Saggioro Garcia é cientista política pela Universidade Livre de Berlim e assessora da Fundação Rosa Luxemburgo em São Paulo.

EDIÇÃO 81, OUT/NOV, 2005, PÁGINAS 60, 61, 62, 63, 64