Há sete anos estamos governando o Acre, numa união de forças políticas que souberam deixar de lado antigas divergências e construir um projeto de consenso. A base do nosso entendimento é a realidade social e a história de nosso povo. O Acre, como boa parte da Amazônia, estava exposto ao saque e à destruição; era território dominado pelo crime organizado. Necessitávamos, portanto, não apenas de uma união política, mas também de um plano, uma proposta de nova orientação econômica e social.

Fomos buscar inspiração no movimento dos Povos da Floresta e nas idéias de Chico Mendes para ampliar e aprofundar o conceito de Desenvolvimento Sustentável que, em nosso entendimento, poderia nos ajudar a conciliar o necessário crescimento da economia com a indispensável proteção da natureza.

Trabalhando sem descanso, conseguimos um bom resultado. Não é exagero dizer que nosso estado tornou-se exemplo de sustentabilidade ambiental, econômica, social, cultural e política. Mais de 50% do seu território (o equivalente a 8 milhões de hectares de floresta nativa) estão protegidos por legislação ambiental. São parques nacional e estadual, reservas e assentamentos extrativistas, áreas indígenas, florestas públicas e áreas de proteção ambiental (APAs). Realizamos um Zoneamento Ecológico-Econômico participativo ouvindo todos os segmentos sociais para identificar as potencialidades e peculiaridades de cada uma das nossas sub-regiões. Restauramos a força do extrativismo, subsidiando a borracha, mas não esquecemos de incentivar a modernização da agricultura e da pecuária, conquistamos o certificado de zona livre de febre aftosa e habilitamos nossa produção de carne bovina para os mercados mais exigentes. Tudo isso sem perder de vista os objetivos do desenvolvimento sustentável, que é o nosso ideal.

O bom é que destruindo menos a floresta fizemos a economia crescer de maneira exemplar. Isso pode ser traduzido em números: o ICMS aumentou seis vezes em sete anos. A receita própria – que há um século não chegava a 10% – hoje representa 35% e deve alcançar 40% em 2006. O PIB aumentou mais de 5% em 2003, indicando números maiores em 2004 e 2005.

O Acre tem hoje um investimento e uma presença na educação que são as duas mãos de nosso projeto. Pagamos aos professores da rede estadual os melhores salários entre os estados do Brasil, enquanto promovemos a universalização do ensino fundamental com mudanças ousadas na grade curricular. As artes de um modo geral, a comunicação e a educação passam a ter atividades que se complementam nas escolas urbanas e rurais, com o viés amazônico moldando um novo conhecimento.

Com essa estratégia administrativa, o Acre se estabilizou nas parcerias junto ao BNDES, ao BID e ao governo federal – como a unidade federativa que tem a maior capacidade (proporcional) de investimento. Estamos investindo em 2005 e 2006 mais de 200 milhões de dólares, afora outros 300 milhões com os quais mantemos os salários e outras obrigações sociais em dia. O Acre vivia na ilegalidade, era um estado falido. Ainda temos problemas, mas aprendemos a lidar com nossas riquezas econômicas, sociais e culturais.

Estou seguro de que defender uma economia florestal é um bom negócio. Até do ponto de vista eleitoral defender o meio ambiente é vantajoso: desde 1992, a Frente Popular do Acre, tendo à frente PT, PCdoB e outros partidos de esquerda, tem vencido eleições com essa bandeira. Fui eleito prefeito e governador por duas vezes. Em 2002 fui reeleito com o maior potencial de votos do Brasil, porque conseguimos mudar para melhor um estado que vivia na ilegalidade e estava falido. Ainda temos muitos problemas graves, mas aprendemos a lidar com nossas dificuldades e buscar sempre uma solução criativa para cada uma das situações complicadas que a gestão pública invariavelmente nos impõe.

O legado de Chico Mendes

Esse modelo de sociedade é um legado de Chico Mendes, nosso líder seringueiro assassinado em dezembro de 1988. Ele nos ajudou a ser uma civilização nova, conectada ao Globo terrestre Toda vez que entrava na floresta, procurava traduzi-la para quem o acompanhava. Depois, levava essa tradução para os empates (embargos ao desmatamento), para as escolas urbanas, para as palestras na universidade e até para os encontros com o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). Ele sempre falava dos valores que encontrava na floresta: uma planta que “serve pra isso”, um cipó que cura panema (má sorte), e por aí seguia com seu conhecimento e imaginação.

Chico contava histórias incríveis retiradas do seu ambiente, e a coisa mais importante que conseguimos aprender com sua luta e vontade foi trazer a discussão da floresta para as áreas urbanas e para as estratégias políticas. Por isso acreditamos que a floresta acreana, por uma decisão corajosa de seu povo, tem tudo para permanecer protegida e a salvo. Só precisamos de um pouco mais de tempo e trabalho. Vemos com muito otimismo a possibilidade de, mesmo daqui a 50 ou 100 anos, o Acre estar com mais de 80% de sua floresta preservados.

Existe hoje uma consciência muito grande – até de quem não aceitava antes na idéia de que a floresta não pode ser destruída. Chico apostava no uso sustentável da natureza como saída; falava que era preciso ter renda a partir dela, sugerindo beneficiar a castanha e acreditar no manejo. Dezessete anos após sua morte, muita gente começa a perceber que ele tinha razão.

Em meados de 1980 eu procurava mostrar a amigos de Brasília e do sul do país as propostas de Chico para desenvolver atividades econômicas na floresta, tais como: fazer casa e móveis, aproveitar novos tipos de madeira, fazer manejo. Eu apenas repetia o que o líder seringueiro argumentava junto ao BID e a Ong’s estrangeiras, ensinando formas de melhorar a permanência do homem na floresta. Meus companheiros do PT e da CUT não entendiam essa luta tão estranha às discussões urbanas da época.

Acreanidade

Entretanto, a história que confirma essas idéias é extraordinária e secular. Ouso afirmar que é uma fábrica de bons exemplos. Há mais de cem anos, de fato, milhares de famílias nordestinas e de outras regiões migraram para a Amazônia querendo enriquecer com a exploração da borracha – o chamado ouro negro avidamente consumido pela indústria européia e, posteriormente, pela indústria norte-americana. O Acre, de onde se extraía o melhor látex devido à qualidade das árvores (Hévea Brasiliense) das cabeceiras dos rios, gerava riqueza para embelezar cidades como Manaus e Belém.

Em 1912, a borracha somente era superada pelo café na pauta brasileira de exportação. Mesmo assim, a Amazônia ganhou o apelido de “inferno verde”, certamente porque na região morria muita gente por doença, no confronto com os índios ou ainda por ataques de animais ferozes. A tristeza, a desolação e a ignorância científica também matavam. Euclides da Cunha já falava disso em 1905, quando se referiu a “pessoas de inteligência atrofiada”, durante sua epopéia até as nascentes do rio Purus. Em parte, porque faltava conhecimento para entender e tratar as doenças, sem falar no capitalismo selvagem que operava à solta e impune nos seringais. O lado perverso da vida naqueles tempos era vencido pela coragem, pela esperança e por outros bons sentimentos que acabaram moldando os povos da floresta
– a que ousamos chamar de acreanidade.

O Acre tem um quê de especial desde o início, e temos exemplo de suas peculiaridades em muitas ocasiões. Primeiro, na ousadia de um grupo de seringueiros nordestinos que, sob a liderança do gaúcho Plácido de Castro, fez a guerra com a Bolívia e tomou este vasto território de florestas para o Brasil em 1903. Daí nosso orgulho de dizer que o Acre é o único estado da nação que foi à guerra para pertencer ao Brasil. Nossos antepassados fizeram corajosamente esta opção. De lá pra cá, esse povo nunca parou de guerrear: contra o isolamento, contra a discriminação nacional em relação à Amazônia e, mais recentemente, para proteger a natureza que aprendeu valorizar e amar.

A luta em defesa da floresta começou nos anos 1970, depois que os ciclos da borracha se extinguiram e as empresas seringalistas abandonaram suas bases nas beiras de rios.
A atividade atípica e circunstancial foi abandonada pelo capital internacional. Mas quem ficou na Amazônia e, particularmente, no Acre, após a Segunda Guerra Mundial (1945), já fazia parte da incomum sociedade da floresta. Como compensação às penúrias que tiveram de suportar, os seringueiros aprenderam a cultivar a solidariedade, a curiosidade diante do comportamento de plantas e animais, enfim, o respeito aos fenômenos da natureza.

Florestania

O governo brasileiro, que nunca conseguiu entender o gostar da Amazônia, desde o começo deu patadas na população regional. Foi assim quando demorou a reconhecer a vitória dos seringueiros sobre os bolivianos: militarizou o poder conquistado e ajudou a matar o grande herói Plácido de Castro no começo do século XX. Durante a Segunda Guerra, enganou os “soldados da borracha” recrutados no nordeste entregando-os à má-sorte do capital com interesses norte-americanos. Já nos anos 1960, chancelou através do golpe militar de 1964 a mais devastadora tragédia amazônica, mediante incentivo à sua “ocupação”, como se se tratasse de área não habitada.

Podemos falar com mais propriedade da importância do Acre nesses acontecimentos. Aqui nasceu o movimento dos seringueiros e índios contra a destruição da floresta. Aqui, morreram assassinados por conta dessa luta os líderes seringueiros Wilson Pinheiro (1980) e Chico Mendes (1988). Aqui nasceu a idéia de Povos da Floresta, o Conselho Nacional dos Seringueiros, as Reservas Extrativistas (que se espalham pelo país), o manejo florestal comunitário, a emancipação indígena e o atual e melhor exemplo de sociedade sustentável baseada na economia florestal. Aqui surgiu o termo florestania, com o qual procuramos conceituar ou traduzir de maneira simplificada a grandeza do projeto de desenvolvimento sustentável que empreendemos.

As pessoas desatentas a esses acontecimentos podem perguntar: por que acontece tanta coisa nova a partir de um pequeno estado isolado na parte mais ocidental da Amazônia? Talvez seja porque ocupamos as cabeceiras dos rios, onde a água é pura e a biodiversidade é a maior do planeta. Não há dúvida de que existe toda uma magia, um simbolismo especial, um forte sentimento que as ciências humanas talvez tenham dificuldade para explicar. O cientista social e doutor em geografia, Carlos Walter Pinto Gonçalves, escreveu em Geografando pelos varadouros do mundo, sua tese de doutorado, uma abordagem correta sobre o tema. Segundo ele, os seringueiros acreanos explorados, violentados e abandonados pela economia da borracha sobreviveram como sábios da floresta; e agora dão lições inteligentes e humanas ao mundo moderno.

Aí está um fato histórico notável. É praticamente impossível, do ponto de vista material, econômico ou comercial, fazer o que aconteceu aqui no Acre dar certo. Ou seja: trazer gente de outro lugar para uma mata densa e desocupada; e colocar uma pessoa distante da outra com a dependência de uma organização como o barracão para gerar um produto. Mas foi um sistema que funcionou com um planejamento impecável para uma época em que jamais se sonhava com os meios de comunicação disponíveis na atualidade. Foi um trágico e ao mesmo tempo encantado encontro do homem com a natureza, do qual Chico Mendes se tornou a melhor expressão.

O Acre é o lugar onde o PT e os partidos que compõem a Frente Popular mais avançaram no país, porque soubemos beber nessa fonte. Tudo se oferece tão novo e envolvente que não precisamos recorrer a velhos modelos de eficácia discutível. Podemos formular os caminhos de nosso bem-estar coletivo pensando novo. Nós moramos nas cabeceiras dos rios onde as coisas acontecem. Os índios escolhem as cabeceiras porque a água é pura e a caça é farta. Aqui as coisas acontecem e descem o rio. O sentido natural é esse.

O especialista em formação de pessoas Oscar Motomura, que se ocupa da preparação de bons gestores, afirma com razão que a essência do Acre está na civilização da floresta. Nós estamos apostando nessa definição.

O teólogo Leonardo Boff – um grande amigo do Acre e conhecedor do projeto que desenvolvemos – nos ensinou que todo bom projeto precisa de uma boa metáfora. Segundo ele, Florestania e Governo da Floresta são metáforas perfeitas para o projeto de desenvolvimento sustentável que defendemos para a Amazônia. Estou certo de que o governo do presidente Lula também vai encontrar a metáfora adequada para o Brasil.
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Jorge Viana, 46 anos, engenheiro florestal, foi fundador e diretor da Fundação de Tecnologia do Acre; assessor do movimento dos seringueiros na época em que Chico Mendes estava na sua liderança; prefeito de Rio Branco de 1993 a 1996; e governador do Acre entre 1999 e 2002; reeleito para o mandato de 2003 a 2006.

EDIÇÃO 83, FEV/MAR, 2006, PÁGINAS 48, 49, 50, 51