O tema da integração regional invoca um processo que tem se intensificado nas últimas décadas: a formação de blocos econômicos e políticos no âmbito do sistema internacional. Não há como compreender o processo dessa formação hoje no mundo sem entender a transição em curso no sistema internacional, seus desdobramentos e suas implicações.

Logo após o colapso do antigo bloco socialista no final dos anos 1980 e início dos 1990, o triunfo das forças do capitalismo instituiu uma espécie de ilusão: a de que – com o fim do bloco socialista e com o término da bipolaridade que havia caracterizado o sistema internacional na guerra fria – teria se inaugurado uma nova etapa na evolução do sistema internacional marcada pela consolidação do poder unipolar da superpotência vitoriosa da guerra fria, os Estados Unidos. Essa ilusão se transformou em doutrina oficial de Estado por parte dos EUA, em dois momentos diferentes.

Em um primeiro momento, a estratégia externa dos EUA se orientou para a instrumentalização das instituições multilaterais construídas sob a hegemonia dos países capitalistas no contexto da guerra fria, com a ilusão de que pudessem impor multilateralmente seu domínio no mundo, após o colapso do campo socialista. Eram tempos dominados pela idéia do alegado “fim da História”, de Fukuyama, em que supostamente o mundo convergia para uma nova ordem regulada por instituições multilaterais, mediante as quais se tornaria dominante no mundo a agenda de liberalização econômica e política impulsionada pela inconteste liderança alcançada pelos EUA no sistema internacional. Essa agenda, no entanto, enfrentou crescentes dificuldades para se consolidar. A tendência dos EUA, depois de uma curta euforia na primeira metade dos anos 1990, foi a de se afastarem gradativa, progressiva e crescentemente do multilateralismo, pois o custo do exercício da liderança negociada em fóruns multilaterais passou a ser visto, cada vez mais, como um estorvo intolerável para a sua agenda. Sua estratégia externa assumiu uma orientação cada vez mais agressiva, belicista, unilateral, e descompromissada com as instituições multilaterais. Esta flexão atingiu o seu ápice na administração Bush no início do Século XXI. A reorientação foi consolidada oficialmente, após os atentados de 11 de setembro de 2001, na chamada “nova doutrina de defesa”, que assume abertamente que o objetivo estratégico primordial dos Estados Unidos é evitar a consolidação, em qualquer região do mundo, de uma potência que possa vir a confrontar, ou ameaçar, o predomínio unipolar alcançado ao fim da Guerra Fria.

Essa compreensão – ou esse projeto de consolidação da dominação unipolar dos EUA no sistema internacional – revelou-se uma ilusão, e um fracasso. Há referências teóricas sólidas para explicar esse fracasso. Sob o prisma da teoria clássica das relações internacionais, sempre que uma potência procura monopolizar o domínio do sistema internacional, isso inevitavelmente estimula contramovimentos de outros poderes e de outras potências para evitar a sua consolidação. Toda a evolução do sistema internacional – desde o seu surgimento em meados do século XVII – estaria dominada por esse princípio, por esse mecanismo chamado de balanço de poder. A Guerra Fria foi, na verdade, uma exceção desse principio, já que não havia apenas dois pólos de poder em contraposição, e sim pólos que expressavam e materializavam dois sistemas mundiais antagônicos: um capitalista e outro socialista. A teoria convencional das relações internacionais, assim, sinaliza a inviabilidade de uma agenda de dominação unipolar do sistema internacional. Quando uma potência procura monopolizar o sistema, isso estimula contramovimentos das demais potências que procuram preservar e ampliar as suas respectivas margens de manobra.

A teoria marxista, em particular a teoria do imperialismo de Lênin, fornece outra base teórica importante para dar conta do mesmo fenômeno: a teoria do desenvolvimento desigual. Ao contrário do que às vezes se pensa, a dimensão principal enfocada nessa abordagem não é o da polarização crescente entre um punhado de nações ricas e a maioria de países pobres, coloniais, semicoloniais ou dependentes. Na verdade, a “desigualdade de desenvolvimento” destacada se reporta à inevitável tendência à derrocada da potência dominante, pois no imperialismo a potência dominante se torna cada vez mais rentista e parasitária, por fenômenos como os da financeirização – para usar um termo moderno. Dessa forma, o dinamismo do seu crescimento econômico é tolhido, levando ao inevitável surgimento de novas potências capitalistas mais dinâmicas a disputar o predomínio de territórios e áreas econômicas com a potência imperialista mais antiga. Segundo Lênin, tratar-se-ia de uma lei inerente ao próprio desenvolvimento do sistema imperialista.

Essas duas chaves teóricas apontam para a ilusão da consolidação de qualquer domínio unipolar no sistema internacional, mesmo depois de uma vitória do vulto que foi a derrocada do bloco socialista no final da Guerra Fria. Indicam ainda – constatação fiel e precisa da evolução do sistema internacional nos últimos 17 anos – que, com o tempo, a tendência à multipolarização se sobreporá às tentativas de consolidação do poder unipolar no mundo, por mais poderosa que a superpotência atualmente dominante possa parecer do ponto de vista econômico, militar, político, ideológico etc.

A consolidação e a ampliação de processos de formação de blocos regionais econômicos e políticos só podem ser compreendidas no contexto do fracasso da dominação unipolar dos EUA no sistema internacional. Os processos de formação de blocos econômicos e políticos regionais expressam essa crescente tendência à multipolarização no sistema internacional e as crescentes dificuldades enfrentadas pelos EUA para preservar o seu domínio unipolar no sistema. É nesse contexto que se operam os processos de integração regional. Tais processos têm, evidentemente, origens históricas anteriores a esse período mais recente de transição no sistema internacional pós-guerra fria. Mas sempre expressaram essa tentativa de criação de territórios econômicos e concentração de poder.

Para além da sua face econômica mais evidente – a constituição e expansão de um mercado regional para viabilizar economias de escala e aumentar a competitividade das empresas que operam nesse novo “território econômico” – há uma dimensão fundamentalmente geopolítica nesses processos. Trata-se de concentrar poder. Justamente por isso, os blocos regionais se formam com os processos de integração econômica e política em torno de determinados núcleos históricos: justamente as potências que impulsionam o processo de multipolarização do sistema internacional.

Pensemos na experiência mais avançada de integração: a União Européia. Ela se constitui em torno de um pólo, o eixo França-Alemanha. Pensemos no Nafta, que se estrutura como bloco regional em torno de um pólo: a agenda dos EUA. Pensemos na experiência do Nepad, ainda um pouco difusa na África, mas que se estrutura em torno de um eixo: a África do Sul. Da mesma forma, na América do Sul – seja através do Mercosul ampliado ou da recém-criada Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA) – o Brasil assume a função de núcleo impulsionador da integração regional, a partir da inédita parceria estratégica firmada com a Argentina.

Esses núcleos configuram a dimensão geopolítica da integração regional. Esta assume formas variadas: associações produtivas não-institucionalizadas, predominantes no eixo asiático com base na crescente integração de linhas produtivas e de investimento entre as economias da China, do Japão e dos países do sudeste da Ásia; formas um pouco mais estruturadas, como uma área de livre comércio (concretamente, o Nafta, apesar de não ser uma simples área de livre comércio); formas predominantes de união aduaneira, como no caso do Mercosul; e a forma mais avançada da União Européia, que constitui, na verdade, uma espécie de proto-Estado multinacional. Alguns atributos cruciais de soberania foram transferidos às autoridades comunitárias no âmbito da UE, como Banco Central unificado e a emissão de moeda (no caso dos países que aderiram ao Euro). Em outras palavras, avançou-se na instituição de um monopólio administrativo de âmbito regional/multinacional na União Européia, com a concentração nas autoridades sediadas em Bruxelas de atributos fundamentais de soberania antes exercidos separadamente em cada Estado nacional. Ainda não houve avanço – embora seja um processo em construção – na constituição da outra face da soberania territorial: o monopólio coercitivo. Mas é preciso enfatizar que tal processo tem uma dimensão econômica e geopolítica, pois gera economias de escala e territórios econômicos, mercados regionais e concentração de poder.

A integração sul-americana versus Alca

O Brasil é o núcleo histórico da integração sul-americana não por hegemonismo, mas pela força da sua economia e pelos atributos de poder desenvolvidos em sua trajetória histórica. Uma das particularidades do processo de integração sul-americano, liderado pelo Brasil, é que ele se desenvolve e se intensifica sobre os escombros outro projeto de integração regional para as Américas: a Alca. Esse é um ponto crucial. Há oito anos as propostas em pauta na região eram a abertura de mercados no âmbito da Alca e a dolarização das economias latino-americanas. Hoje, ao se discutir integração regional, outra agenda está em pauta. Ela avança após ter derrotado a agenda alternativa impulsionada pelo núcleo histórico que promoveu a integração do Nafta e que buscava expandir a sua operação para toda a América Latina e o Caribe, e em especial para a América do Sul. Na prática, esse projeto visava subordinar formalmente todo o hemisfério ao poderio superior dos Estados Unidos, constituindo um mega-território para a exploração privilegiada das suas empresas.

Essa agenda foi derrotada, em grande parte, pela ação do Brasil. A rigor havia dois projetos de integração regional em confronto: um, a integração hemisférica com os EUA como núcleo histórico; outro, um projeto de integração sul-americano, tendo o Brasil como núcleo histórico. Só poderia haver Alca com a rendição do segundo núcleo ao primeiro. Ou seja, se o Brasil abrisse mão de um projeto alternativo de integração regional e se alinhasse ao projeto hegemônico dos EUA no hemisfério. Ao não se alinhar, a Alca foi inviabilizada. Desde o primeiro momento ficou muito claro para as forças hoje no governo brasileiro de que não haveria Alca sem o Brasil. Ela representava o projeto de desmantelamento de um pólo alternativo de integração no hemisfério. A Alca se inviabilizou não pelo discurso altissonante, mas pela resistência prática. Trata-se de vitória histórica do Brasil e dos países da América do Sul.

Derrota política da agenda neoliberal

Além de ter inviabilizado a Alca o processo de integração regional hoje se processa em um outro contexto político: a da inaudita viragem à esquerda que vem marcando a evolução política na América do Sul neste início de Século. Assim como tivemos nos anos 1960 e 1970 uma safra de regimes militares – o nosso foi o mais prolongado – assistimos a partir do final dos anos 1990, com muita força, a uma guinada à esquerda na América Latina. Não para a esquerda, mas à esquerda. Melhor dizendo, a eleição de governos de feição progressista – e, em alguns casos, até mesmo democrático-popular – em praticamente todo o continente sul-americano (com as notáveis exceções da Colômbia e, no âmbito do Mercosul, do Paraguai).

Assim como a integração regional se ergue sobre os escombros da Alca essa guinada política na América do Sul se ergue sobre o legado da derrota política da agenda neoliberal, que havia triunfado de forma aparentemente avassaladora no mundo e na América Latina nos anos 1990. Justamente sobre as contradições e os fracassos das promessas anunciadas por essa agenda para a região cria-se um contexto político favorável a uma nova onda política com essa atual guinada progressista, democrática e popular.

Esse processo vem criando um contexto político novo para a integração regional. Não somente a Alca foi inviabilizada, mas há um novo dinamismo favorável à integração regional na América do Sul, materializado concretamente, em primeiro lugar, na expansão do Mercosul com a adesão da Venezuela e da Bolívia. Há que se registrar, ainda, a aproximação do Pacto Andino ao Mercosul e, ainda, , no contexto da ampliação do Mercosul, a iniciativa de criação da Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA).

O papel do Brasil

O atual momento coloca para o Brasil uma responsabilidade particular, por constituir o núcleo histórico que impulsiona o processo de integração: a necessidade de arcar com os custos inerentes ao seu papel de protagonista. Mesmo porque o Brasil é a economia mais forte do processo de integração em curso e há grandes assimetrias entre os países que se associam a esse esforço.

Nessa condição o Brasil tem de estar disposto a sobrepor o seu interesse estratégico na promoção da integração regional a eventuais prejuízos econômicos de curto prazo em determinados setores. Como agravante, há, igualmente, uma tensão entre esse interesse estratégico e a orientação predominantemente ortodoxa da política macroeconômica praticada ainda nos marcos do atual governo. Tal tensão se expressa também na recente apresentação do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Trata-se de um governo com sinalizações positivas para o desenvolvimento em diversas áreas, mas preso a uma política macroeconômica mais ortodoxa que entra em conflito com a agenda de desenvolvimento por ele mesmo estruturada. Isso também se opera no âmbito da integração regional, pois o predomínio de uma visão orientada pela ortodoxia macroeconômica não leva o Brasil a se dispor a arcar com os custos da liderança no processo de integração.

O Mercosul, carro-chefe de nossa integração, é uma iniciativa já de duas décadas. Mas até a eleição do atual governo a posição predominante na diplomacia brasileira era de não avançar na consolidação institucional do Mercosul para além da forma da união aduaneira. Havia a idéia de que para o Brasil – por ser a economia mais forte – quanto menos institucionalizados fossem os seus compromissos no âmbito do Mercosul melhor, porque preservaríamos maior margem de manobra. Mas o nosso problema não é preservar margem de manobra em relação ao Paraguai, ao Uruguai, ou até mesmo a Argentina. O desafio é integrar Paraguai, Uruguai, Argentina, Venezuela, Bolívia e toda a América do Sul, para preservar nossa margem de manobra diante da assimetria de poder dos Estados Unidos no hemisfério.

Ou temos a dimensão estratégica do jogo em curso e, à luz dessa, disposição para arcar com os custos que preservam nossa capacidade de manobra de maneira mais ampla, ou não saberemos aproveitar o momento político tão favorável que se criou para avançar e consolidar a agenda da integração sul-americana. O grande desafio, presente também na agenda da política externa brasileira, é justamente o de avançar no formato da integração.

O Mercosul tem sido até aqui fundamentalmente uma união aduaneira, com tarifa externa comum. Agora é preciso avançar nesse formato para construir um pólo de integração efetiva da América do Sul. Avançar na padronização de políticas de desenvolvimento, de políticas industriais dos países-membros; na constituição, já aprovada, de um fundo de harmonização para fomentar o desenvolvimento das regiões mais atrasadas; consolidar mecanismos, como o do Parlamento comum; intensificar instrumentos como o Convênio de Crédito Recíproco (CCR) entre os países do Mercosul, para não dependermos de moeda estrangeira (sobretudo, do dólar) no comércio regional e servir de embrião para a constituição de uma moeda única.

É preciso também constituir, a partir desse processo, um pólo de atração da América do Sul, num primeiro momento, e de disputa na América Latina, de maneira mais geral, com a influência do bloco econômico e político comandado pelos Estados Unidos. Essa é a agenda da integração regional e como ela se conecta com o projeto nacional de desenvolvimento. Essa relação, às vezes, é mal compreendida. Algumas vozes confundem esse projeto nacional de desenvolvimento com uma autarquia. Não se trata de autarquia, mas da promoção da integração em termos mais vantajosos para o Brasil e para seus países-parceiros nesse esforço. É uma agenda de integração, tendo por espinha dorsal um projeto nacional de desenvolvimento e a tentativa de combinar projetos nacionais de desenvolvimento dos países-membros do Mercosul no contexto de um projeto de desenvolvimento regional. O papel da integração regional num projeto nacional de desenvolvimento é procurar ampliar o mercado, consolidar a integração econômica em um espaço territorial mais amplo e concentrar poder para lidar com um quadro que é de multipolaridade crescente no sistema internacional. Para tanto, ele se alinha a outras iniciativas: apostar na multipolaridade do sistema internacional e procurar cultivar relações com outros pólos.

Nossa orientação é precisamente oposta à que orienta a nova doutrina estratégica dos Estados Unidos: se a administração Bush quer impedir a consolidação de novos pólos de poder no mundo, nos interessa fomentar a consolidação desses novos pólos. Queremos fortalecer, alimentar e explorar relações próximas com África do Sul e Índia; consolidar e ampliar nossas relações com a China (com quem já temos uma parceria estratégica consolidada); nos aproximar dos países árabes e africanos; explorar as tensões crescentes entre a Europa e os Estados Unidos; tudo isso para preservar margem de manobra para o Brasil e os países sul-americanos – e os países em desenvolvimento de maneira mais geral.

A multipolaridade pode, à primeira vista, parecer uma coisa inócua, mas concretamente é a maneira como se manifesta hoje o antiimperialismo no mundo. Depois da vitória dos Estados Unidos na Guerra Fria, da derrota do campo socialista, da tentativa de imposição de um domínio unipolar, os principais movimentos de multipolarização hoje no mundo têm, objetivamente, conteúdo antiimperialista (ou, no caso da ruptura da antiga Aliança Atlântica entre os Estados Unidos e a Europa, refletem o acirramento de contradições interimperialistas). É preciso nos situar no novo contexto mundial gerado por esses movimentos para explorar ao máximo as condições favoráveis propiciadas para a nossa agenda de desenvolvimento.

Luis Fernandes é professor de Relações Internacionais da PUC-Rio e, desde janeiro de 2004, secretário-executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Este texto reproduz trechos de aula proferida na Escola Nacional de Formação do PCdoB, em janeiro de 2007 em São Paulo.

EDIÇÃO 88, FEV/MAR, 2007, PÁGINAS 16, 17, 18, 19, 20