Ignácio Rangel e a Economia Política do Brasil
O pensamento econômico brasileiro moderno é marcado por uma série de colaborações que até hoje servem de base ao pensamento nacional de caráter desenvolvimentista. Exemplos são muitos, entre eles Celso Furtado e sua obra magna, Formação Econômica do Brasil, a quem – independente das críticas a posteriori –, devemos a importante elaboração da constituição de um centro dinâmico interno à economia brasileira pós-crise de 1929.
Na mesma linha de raciocínio de nosso desenvolvimentismo clássico exposto desde nosso “Patriarca da Independência”, José Bonifácio, até Celso Furtado – porém com uma matriz centrada em variadas categorias do materialismo histórico – podemos auferir, numa visão particular, no Pensamento Independente de Ignácio Rangel o ápice do nacionalismo expressado sob forma de teoria econômica (1).
Assim, nosso objetivo aqui pela passagem dos 45 anos da publicação de A Inflação Brasileira – notadamente a obra de maior impacto de Ignácio Rangel – é expor a construção, as linhas mestras e a argumentação central por ele demonstradas nas páginas de tão importante, atual e indispensável obra.
Surgimento da teoria
Assim como todo o corpo teórico produzido pelo autor, A Inflação Brasileira é uma aplicação concreta de sua idéia de “dualidade básica da formação sócio-econômica brasileira”. Trata-se de um caso raro de relacionamento entre os elementos constitutivos de uma dada formação social com seus contemporâneos fenômenos macroeconômicos (2).
Naquele momento, em 1962, assim como hoje, no campo das idéias o pensamento econômico brasileiro se definia por uma idéia quase única sobre a natureza de nosso processo inflacionário, ou seja, a gênese de nosso processo inflacionário está tanto na demanda excessiva quanto na natureza inelástica da oferta (3). Ao não se perceber com exatidão a natureza das crises de realização no Brasil, enfatizam-se, até hoje, assertivas equivocadas, como a da insuficiência de poupança interna como causa primária da crise; quando, para Rangel, a crise é expressão justamente do contrário (4). Porém, atualmente assiste-se a uma grande utilização de capacidade produtiva instalada o que não invalida a tese central de Rangel (excesso de poupança), tendo em vista que: 1) houve destruição de forças produtivas no Brasil na década de 1990 por conta das políticas “estabilizadoras” neoliberais; e 2) têm havido pífios investimentos em novas capacidades produtivas.
Concluir que a crise reside na abundância de poupança demandou um caminho teórico nada peculiar, pois se, de um lado, Rangel, tinha de passar pelo estágio em que suas análises dos aspectos reais do processo econômico (como a relação entre recursos ociosos e desenvolvimento econômico) demandavam uma futura percepção monetária ou, em outras palavras, uma melhor compreensão das peculiaridades da moeda brasileira, de outro, para sobrepujar o “pensamento único” de então, somente algo baseado em um conhecimento profundo do concreto poderia resistir às provas subseqüentes e, inclusive, à censura branca imposta à sua obra, somente há pouco tempo levantada.
Desta forma, Rangel levantou o que chamou de “véu monetário”, partindo das múltiplas determinações do processo que envolve a reprodução da moeda no Brasil. Entre as determinações desse processo podemos citar: os ciclos médios (Juglar-Marx) e longos (Kondratieff) da conjuntura, a taxa de exploração do sistema, o conceito de poupança interna partindo da categoria marxiana de capital constante e a pedra-de-toque de toda essa cadeia sintetizada na capacidade ociosa empiricamente demonstrada e sua relação direta com nossos ciclos endógenos de crescimento e conseqüentemente com a inflação. Afinal em Rangel a inflação é uma expressão cíclica que demonstra o nível de acúmulo de capacidade ociosa no sistema e, conseqüentemente, do nível de recessão da economia como um todo, resultante de um subconsumo oriundo da taxa, crescentemente elevada, de exploração da economia brasileira (5).
Assim, ao contrário do senso comum – antinacional – que demonstra a inflação como causa da crise, em A Inflação Brasileira, está exposto o contrário: a inflação como conseqüência do processo, um epifenômeno. Isso muda completamente a forma de se enxergar o óbice econômico dado, cujo enfrentamento e superação são determinados por uma visão tipicamente de classe social (6).
A mito da inflação por excesso de demanda
Influenciado pelo método utilizado por Lênin em O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia – em que o teórico e prático russo parte para a análise da formação do mercado interno como a base para uma explicação consistente do processo de desenvolvimento daquela formação social –, Rangel buscou a raiz do processo inflacionário no Brasil justamente na forma e na história da formação do mercado interno brasileiro.
Em face do pacto de poder no Brasil pós-1930, capitaneado pelo latifúndio, tendo como sócio-menor o capital industrial, o nosso processo de expansão industrial ocorreu – numa típica Via Prussiana – sem uma reforma na arcaica estrutura fundiária no Brasil. Com o desenvolvimento industrial do país, que passou a suprir o campo de máquinas e insumos necessários para o desenvolvimento do campo, essa formatação é responsável pelas cíclicas crises de superpopulação rural que, ao se transferir para as cidades, pressionava para baixo os salários, viabilizando uma altíssima taxa de exploração no sistema. Resulta disso, como já citado, uma dita crise de subconsumo, ou um rebaixamento da demanda por bens de consumo em relação à capacidade produtiva instalada. A idéia de inflação por excesso de demanda impede grande parcela de nosso pensamento econômico de enxergar tanto o problema da capacidade ociosa quanto seu resultado: a alta taxa de exploração e sua relação direta com o fenômeno inflacionário. Em outras palavras, a inflação como efeito da má distribuição de renda no país.
A conseqüência imediata desse estado de coisas, para Rangel, é um descompasso entre o nível de desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção, demonstrado na excessiva permanência de mais-valia nas mãos dos proprietários concomitante com o aumento da produtividade do trabalho, porém com não correspondência no aumento da participação dos salários na renda nacional (7). Esse é um lado da formação do problema.
Por outro lado, surge a questão da emissão monetária que, para o senso comum generalizante do pensamento econômico hegemônico, ensejava (e enseja) – no Brasil – uma expansão da demanda ao contrário da lógica marxiana que advoga a tese segundo a qual se aumenta a quantidade de dinheiro em circulação, dada a velocidade desta, o dinheiro perde valor e, no fundo, dada a quantidade emitida, não houve aumento da quantia de dinheiro. Ocorre que só pode haver aumento da demanda se houver investimento, caso contrário o que ocorre é puro e simples aumento de preços. Logo, o centro de gravidade do problema inflacionário no Brasil (devido ao fato de a alta taxa de exploração do sistema afetar a expansão da demanda e a emissão não suscitar o aumento desta) – em Rangel – está no mecanismo de formação de preços do sistema.
A intermediação de comercialização de produtos agrícolas é o outro lado do problema. Organizados como oligopsônios, porém agindo como monopólios, valiam-se da baixa elasticidade da demanda para impor uma elevada elasticidade da oferta de produtos primários. Agindo dessa forma, desorganizam e induzem uma escassez da produção para a imposição de preços não condizentes com a realidade. Desta forma influenciam todo o conjunto da economia, pois na medida em que uma maior parte da renda obtida é destinada à compra de gêneros alimentícios, escasseia-se o consumo por outros bens. A capacidade ociosa torna-se uma realidade, da mesma forma que, no setor industrial e de serviços públicos – caracterizados por uma organização oligopólica – também se busca a manutenção de lucros anteriores, mesmo com a baixa utilização de capacidade produtiva. Como conseqüência da premência de uma conjuntura recessiva, surge a inflação (8).
Como epifenômeno, o processo inflacionário por administração de preços que marca nossa história econômica, em A Inflação Brasileira, é diagnosticada – também – como mecanismo de defesa do sistema, afinal sendo alta a taxa de exploração do sistema o montante de mais-valia concentrado nas mãos dos empresários tende (com a inflação, a desvalorização da moeda e de taxas de juros negativas praticadas pelos bancos), a ser empregado em novos projetos, investimentos, deprimindo, assim, a preferência pela liquidez do sistema e aumentando a taxa de imobilização do sistema. Esse movimento dialético, cíclico e determinado historicamente, serve para a manutenção de: uma demanda agregada e das taxas de lucro anteriormente auferidas (9).
Retornando à questão da emissão monetária, e repetindo, Rangel fecha o circuito do ciclo inflacionário e dá um golpe mortal na essência da tese monetarista para quem a inflação é causada, também, pela emissão monetária que seria responsável, além de uma recomposição de demanda, por um aumento dos preços. Se para Marx a variável renda está relacionada com – porém independente – o investimento, logo numa economia oligopolizada, com altas taxas de exploração e onde o processo inflacionário transforma-se num mecanismo de defesa, a emissão monetária é uma resposta ao deliberado aumento dos preços, à diminuição da quantidade real de moeda e ao próprio déficit governamental causado pelo movimento para cima dos preços. Da antítese à síntese
Da notável capacidade de abstração de Rangel pode-se extrair, em A Inflação Brasileira, sua capacidade de observar o conjunto do movimento econômico e sua historia, para em seguida apontar seu óbice, sua antítese e sua síntese. Trocando em miúdos, assim como a pequena produção mercantil em vias de se transformar em indústria sinalizava a decadência do complexo rural e a necessidade de novas formas de enquadramento institucional, a inflação como uma anomalia típica de economias de mercado no Brasil suscitou, já na década de 1960, a superação de um tipo de capitalismo para outro baseado na fusão entre capital bancário com o capital industrial.
A inflação e as taxas de juros negativas dela suscitadas explicam, no todo, o paradoxo de se assistir uma economia em que a baixa eficácia marginal do capital que era uma tônica fosse propiciar o surgimento de um sistema financeiro. A inflação e sua vertente brasileira gerava duas condições objetivas para o surgimento deste capital bancário: a oferta de recursos monetários ociosos em fuga da erosão da moeda e uma demanda de capitais para investimentos que se tornavam rentáveis dada a atração exercida pela taxa de juros real negativa. Dialeticamente, da crise cuja inflação era expressão, surge a principal condição objetiva, não somente à retomada do crescimento no Brasil, mas à soberania nacional como um todo: o sistema de intermediação financeira formada por um sistema bancário nacional e privado, pronto para carrear recursos aos setores estrangulados da economia e quebrar o circulo vicioso da dominação financeira exercida pelo imperialismo sob o nosso país.
Do estudo de nossos ciclos breves, cujo conteúdo é marcado pela implantação de sucessivos setores que compõem nossa indústria – a indústria leve, a pesada e as infra-estruturas – é que Rangel tira síntese, segundo a qual, as infra-estruturas estranguladas são o novo ponto nevrálgico a se atacar tendo a indústria mecânica pesada criada durante o governo Geisel como seu complemento produtivo. Este nó, em Rangel, viria a ser rompido pelo papel progressista a ser cumprido pelo nascente capital financeiro brasileiro em detrimento do capital externo causador de dependência.
O estrangulamento financeiro do Estado demanda a concessão das infra-estruturas estranguladas ao capital privado nacional – cujas encomendas de trilhos, locomotivas, geradores etc ao serem feitas a empresas nacionais gerariam efeitos multiplicadores em toda a economia – de forma que a solução para a questão social, ao invés de ser encontrada no retorno a formas primitivas de agricultura, é encontrada na abertura de novos campos de investimento na economia, sobretudo nas cidades.
Para Rangel e elencados, em A Inflação Brasileira, o conjunto de medidas para nosso salto qualitativo inclui uma chamada planificação do comércio exterior direcionado à abertura de novos mercados para nossos produtos, notadamente nos países socialistas e da periferia, conforme tem ocorrido hoje. Esta medida completaria, em conjunto com a concessão de serviços públicos a empresas privadas nacionais, uma lenta e gradual quebra dos laços de dependência do nosso país para com o nosso inimigo maior, o imperialismo norte-americano (10).
Pensando estrategicamente, ao se aparelhar de um sistema de intermediação financeira e aumentar a capacidade do Estado Nacional – tanto de exportar capitais e financiar exportações, quanto de planificar déficits comerciais com nossos vizinhos e países-irmãos africanos –, o Brasil estaria dando um passo na direção de um capitalismo de Estado que, por sua vez, é um passo decisivo e necessário na transição de nosso país ao socialismo.
Revisitar a obra, uma justa homenagem
A melhor homenagem a ser feita a uma obra da estatura de A Inflação Brasileira deveria ser sua revisitação, independente de preconceitos e miudezas típicas do verdadeiro “mercado de idéias” que vivenciamos no Brasil e no mundo. Esta revisitação é ainda mais necessária em momentos de “cotovelo da história” como vivemos em nosso país. País este que há mais de duas décadas vive experimentando soluções econômicas com aparência progressista, porém reacionárias em sua essência, como, por exemplo, o Plano Real e o choque de “arrocho” dele derivado. Especificamente para seu autor – que para R. Bielschowsky “foi o mais criativo e original analista do desenvolvimento econômico brasileiro” (1988, p. 209) –, cabe uma série de constatações elogiosas já feitas em diferentes momentos por intelectuais do nível de Armen Mamigonian, Carlos Lessa, Milton Santos, Luiz Gonzaga Belluzzo, Maria da Conceição Tavares, Bresser Pereira, entre outros. Porém, uma delas acreditamos ser especial, escrita em 1995 pelo professor da FEA-USP, Paulo de Tarso Soares e reproduzida na Introdução de Marcio Henrique Monteiro de Castro às Obras Reunidas de Ignácio Rangel, como segue:
“O grande pensador Ignácio Rangel faz muita falta aos seus amigos, mas faz mais falta ainda para a classe operária e para os defensores do socialismo científico. Mesmo os que não concordam com as idéias políticas (…) da analise rangeliana, haverão de reconhecer que, em março de 1994, o Brasil perdeu um dos maiores pensadores de seu processo econômico. Homens com a independência intelectual e a coragem política de Rangel fazem muita falta para os que ficam”.
Artigo dedicado a Edvar Luiz Bonotto
_______________
Elias Jabbour é Doutorando em Geografia Humana pela FFLCH-USP, professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Geografia do Departamento de Geociências do CFH-UFSC, membro do Conselho Editorial de Princípios e autor de China: infra-estruturas e crescimento econômico (Anita Garibaldi, 2006, 256 p.) e China: desenvolvimento e socialismo de mercado (DG-CFH-UFSC, 2006, 86 p.).
Notas:
(1) Uma notável síntese do pensamento de Ignácio Rangel pode ser encontrada no capítulo 5 de R. Bielschowsky: Pensamento Econômico Brasileiro, IPEA, 1988, no qual, conforme Mamigonian (1997): “(…) não se confunde Rangel com CEPAL ou estruturalismo como faz G. Mantega em A Economia Política Brasileira”.
(2) Sobre a dualidade de nossa formação ler: RANGEL, I. “A história da dualidade brasileira”. In Revista de Economia Política n° 1, vol.4, p. 5-34, jan-mar/1981. Disponível em: http//www.rep.org/pdf/04.pdf
(3) RANGEL, I.: “A Inflação Brasileira”. In Obras Reunidas de Ignácio Rangel. Contraponto, Vol. 1, p. 555, Rio de Janeiro, 2005.
(4) A adesão a essa opinião tem raiz na própria forma liberal de como se aborda o conceito de poupança. Sobre isto ler: RANGEL, I.: “O que é poupança interna?”. In Obras Reunidas de Ignácio Rangel. Contraponto, Vol. 2, p. 326-333, Rio de Janeiro, 2005.
(5) Idem à nota 3, p. 595.
(6) Isso se atesta pelo fato de a inflação e seu controle até hoje serem a principal variável a se considerar na elaboração de políticas econômicas no Brasil e também pelo seu controle – há quase 20 anos – ser feito pela via da compressão de demanda (juros) e pela abertura comercial (câmbio) demonstrando a supremacia da visão de mundo dos bancos e oligopólios estrangeiros. Em curtas palavras: da força objetiva e subjetiva do imperialismo no Brasil.
(7) Ibid, ibidem à nota 3, p. 663. Importante notar que a opinião pública brasileira, notadamente quase a totalidade das esquerdas, foi ganha para o discurso do “combate à inflação” partindo do pressuposto da mesma como fator de perda do poder de compra dos trabalhadores, quando na verdade entre 1993 e 2003, no auge das políticas de “estabilização”, segundo dados do DIEESE, a participação dos salários na composição do PIB nacional caiu em 50%.
(8) RANGEL, I.: “A Inflação Brasileira”. In Obras Reunidas de Ignácio Rangel. Contraponto, Vol. 1, p. 613 , Rio de Janeiro, 2005. Atualmente é muito comum, em momentos de recessão, a indução de capacidade ociosa em setores como o automobilístico. Nota-se também que uma das “armas” contra a inflação utilizada no Brasil foi a substituição de oligopólios industriais nacionais por oligopólios estrangeiros como no setor alimentício, metal-mecânico e siderúrgico.
(9) Empiricamente pode-se relacionar esse movimento com o fato de o Brasil, com ou sem inflação, ter sido o país do mundo que mais cresceu economicamente no século passado.
(10) Sobre a solução aos impasses econômicos brasileiros e também sobre o futuro do processo de reprodução do capital em nosso país é importante a leitura de “Posfácio à 5° Edição”, escrito por Rangel em A Inflação Brasileira. É atual a ponto de tranqüilamente poder servir de base a uma plataforma nacionalista e desenvolvimentista para o Brasil.
EDIÇÃO 93, DEZ/JAN, 2007-2008, PÁGINAS 21, 22, 23, 24, 25