A des-equação da ‘não-proliferação’
Para os Estados chamados ‘nucleares’, porque têm bombas atômicas, o arsenal de ogivas nucleares vale mais que as reservas em ouro, que todo o exército nacional e que o Produto Interno Bruto somados. Esperar que abandonem esse patrimônio é esperar que abram mão de seu prestígio bélico e, no limite, da própria sobrevivência.
Para os Estados ditos ‘não-nucleares’, ou que aspiram a desenvolver programas nucleares, é como ter de viver exposto, sem qualquer proteção contra a ameaça de aniquilação nuclear por algum Estado ‘nuclear’ hostil. Assim, como nos idos da Guerra Fria, a capacidade de os Estados nucleares aniquilarem mutuamente é pressuposta uma ‘garantia’ para os países ‘nucleares’ entre eles. E rapidamente é convertida em chance de (talvez) não ser aniquilado, para os países ‘não nucleares’ que consigam ‘nuclearizar-se’. Esse paradoxo é o mais gigantesco desafio para os que aspiram ao desarmamento nuclear mundial e à não-proliferação, discutida na Conferência de Revisão do Tratado de Não-proliferação Nuclear, em andamento em New York.
Embora a pauta das discussões preveja a discussão de cerca de 38 itens e subitens, o único assunto que de fato se discute é Irã – Estado não-nuclear – e Israel – Estado nuclear clandestino, não-declarado há 40 anos, em região super volátil.
O Irã enfrenta a agressividade de toda a aliança ocidental liderada pelos EUA, porque há suspeitas de que seu programa nuclear vise à utilização militar. As agressões partem sobretudo de Israel – o único Estado nuclear no Oriente Médio –, disposto a fazer qualquer coisa para não perder o monopólio nuclear naquela parte do mundo.
Israel que, como a Índia e o Paquistão, não assinou o Tratado de Não-proliferação Nuclear, há muito tempo preserva posição ambígua sobre suas ogivas nucleares, cujo número os especialistas estimam em centenas, de bombas nucleares e de nêutrons. Desde que Israel produziu suas primeiras três bombas atômicas em 1968, sempre oferece a mesma resposta padrão a todas as perguntas: “Não seremos os primeiros a introduzir bombas atômicas no Oriente Médio”.
Em meados dos anos 1990s, Shimon Peres, hoje presidente de Israel, repetiu a tática de aproximar-se da questão, mas nada dizer, e manteve-se perfeitamente impreciso e vago. Em entrevista, disse que “Conseguimos criar suspeitas em quantidade suficiente para que não nos ataquem, sem nos por em posição que geraria sanções [dos EUA] contra nós.”
Israel desenvolveu suas bombas atômicas em processo cercado de subterfúgios, contando com a conivência de muitos, mediante ocultação e subornos pagos a vários governos norte-americanos. Por causa disso, Israel hoje suspeita que o Irã esteja desenvolvendo armas atômicas, em processo que inclua os mesmos truques, subornos e coberturas.
Israel tem aliados ocidentais que a ajudaram a desenvolver armas atômicas contra o Irã. Alega que o Irã representa ameaça à segurança regional e internacional, por suspeitas jamais confirmadas. Ao mesmo tempo, Israel, que tem centenas de ogivas nucleares e já atacou várias vezes, iniciando várias guerras no Oriente Médio, não é examinada sob os mesmos critérios rigorosos da não-proliferação.
Essa abordagem ambígua e hipócrita mina toda a credibilidade e respeitabilidade do Tratado de Não-proliferação e, de fato, obriga a pensar sobre a utilidade ou importância desse Tratado.
Sempre sob esse ‘duplifalar’, usando dois pesos e duas medidas, todos os governos dos EUA desde a era Nixon-Kissinger obedecem à regra do “Não pergunte, não informe” em relação a Israel. O governo Reagan fingiu que não viu a operação paquistanesa que produziu e testou sua bomba atômica no final dos anos 1970s e inícios dos 1980s, porque precisava da cooperação dos paquistaneses para abrir caminho para que os mujahideen entrassem no Afeganistão para combater a ocupação soviética.
Os EUA impuseram sanções à Índia, que foram depois levantadas e trocadas por um acordo de cooperação nuclear que não tocou em nenhuma das bombas atômicas indianas jamais declaradas. E nem Paquistão nem Índia sequer cogitam, nem agora nem em tempo algum, de assinar o Tratado, como fizeram outros 181 Estados.
O governo Obama, que até agora só fez fracassar na ideia – porque tentativas efetivas não houve – de demover Israel de sua política expansionista nos territórios palestinos ocupados, nem que fosse só para garantir alguma sobrevida ao processo de paz, dificilmente pode esperar qualquer sucesso na arriscada missão de tentar acabar com o arsenal nuclear de Israel.
O projeto, que já tem mais de 30 anos, de criar-se um Oriente Médio livre de armas nucleares, não verá a luz do dia, porque Israel se empenhará com a violência necessária, assessorada pelos EUA (onde presidente e governo algum, em tempo algum, se atreverão a enfrentar o risco de serem responsabilizados, pelo lobby judeu, por criar risco existencial contra Israel). Os países árabes sentem-se desamparados, sem meios para enfrentar a ameaça sionista. Estão hoje, tolamente, atirando no próprio pé, ao deixar-se enganar pela encenação de israelenses e norte-americanos, que fazem o mundo crer que seria o Irã, não Israel, a maior e sempre crescente ameaça à segurança do Oriente Médio.
A proposta de livrar todo o Oriente Médio de armas atômicas continua viva, mas só nos livros, e pode até, mais dia menos dia, merecer um Conferência, mas, no melhor das hipóteses, será como a Comissão para o Desarmamento, da ONU, criada em 1946, e que jamais foi mais que simples fórum de debates. Ação, se houver alguma, acontecerá em outro lugar. De fato, os critérios, a substância do Tratado de Não-proliferação, têm mais furos que queijo suíço.
A estreiteza, a obcecação de EUA, Israel, a aliança ocidental e, mesmo, de vários países árabes, com impor uma quarta rodada de sanções do Conselho de Segurança da ONU contra o Irã, determinou de antemão o fracasso da 8ª Conferência de Revisão do Tratado. A menos que os atores ocidentais mais importantes adotem posição séria e decidam monitorar, inspecionar e verificar o arsenal atômico de Israel, sob regras que o Tratado já determina (mas não se consideram), e a menos que o Conselho de Segurança da ONU faça o que existe para fazer, há praticamente nenhuma esperança de qualquer progresso em direção ao desarmamento nuclear do Oriente Médio.
Pode ser osso duríssimo para que o governo Obama roa, mas, depois de décadas de políticas de “Não pergunte, não informe”, teremos de recomeçar praticamente do zero a discussão sobre se Irã, se se busca algum resultado aproveitável. O fracasso da conferência de revisão do Tratado, por mais que seja apresentada à opinião pública travestida nas mais floreadas imagens da linguagem diplomática, só fará enfraquecer cada vez mais o Tratado, e estimular países ambiciosos a esquecer compromissos assumidos. Sinal bem claro da pouca importância da conferência de revisão de 2010 é que quase 20% dos signatários do Tratado não compareceram.
Entre os países em desenvolvimento, já praticamente nenhum acredita no fantasma das ambições nucleares do Irã, apesar dos incansáveis ataques, cada vez mais venenosos, de Israel e EUA. Não faz sentido algum que meras suspeitas, sem fiapo de evidência que as comprove, de que o Irã teria intenções nucleares, seja tratado como ameaça maior à segurança da região, do que as bombas sionistas, não declaradas mas, nem por isso, menos nucleares. Nada explica que os membros do Conselho de Segurança ataquem o Irã e finjam que não veem as bombas israelenses, sobretudo se se considera que o Irã é signatário do Tratado, e Israel sequer assinou o Tratado que, hoje, protege Israel. O absurdo é flagrante.
O Irã não abandonará seu programa de enriquecimento de urânio. Países ocidentais hiper zelosos podem escolher entre resignar-se e, eventualmente, ter de reconhecer o Irã como potência nuclear de facto, ou Israel também ficará exposto a ataque nuclear contra o Irã, com consequências que serão desastrosas para todo o Oriente Médio. Israel pôde contar com a indulgência e o acobertamento norte-americanos, para evitar medidas punitivas, até agora. Mas, dado que o Irã não se submeterá, as apostas no Oriente Médio começam a ficar altas demais até para os EUA. No caso de conflito no Oriente Médio, os EUA sempre contaram com sua capacidade para dobrar os Estados árabes seus clientes, a favor das políticas e das estratégias de Israel. O Irã já demonstrou que é feito de outro material. O nacionalismo árabe anticolonialismos pode ter saído do centro do palco, mas o nacionalismo iraniano está vigorosamente em ascensão. Esse quadro é – ou deveria ser – tão preocupante para EUA e Israel, hoje, quanto foi o nacionalismo árabe nos seus melhores dias.
O cenário mundial mudou muito nesses 42 anos, desde que o Tratado de Não-proliferação foi adotado, em ambiente de confrontação entre superpotências. Hoje, muito mais do que revisar mecanismos do Tratado, é indispensável revisar os fundamentos do próprio Tratado, ou converter-se-á em mais um papel imprestável, nas novas realidades do mundo global multipolar.
Ayman El-Amir é jornalista. Foi correspondente de Al-Ahram em Washington DC.
Trabalhou também na Rádio da ONU e em emissoras de rádio e televisão em NY. Tradução de Caia Fittipaldi.