Apresentação
A Comissão Especial criada para analisar os 11 projetos que tratam de modificações do Código Florestal Brasileiro é fruto dessas circunstâncias impostas pela vida, quando a lei afasta-se da realidade e não consegue dar conta de discipliná-la. O Código Florestal é uma boa lei de 1965, preparada por um grupo de trabalho de elevada capacidade jurídica e intelectual, destacando-se entre seus autores a figura ilustre e patriótica do saudoso desembargador Osny Duarte Pereira.
O desembargador era um estudioso das questões nacionais e, antes de integrar a Comissão que preparou o Código Florestal a partir de 1961, já publicara em 1950 um vasto estudo sobre a legislação florestal no mundo e no Brasil, intitulado Direito Florestal Brasileiro. Relatou minuciosamente as preocupações com as florestas ao longo de nossa história, desde os tempos do Brasil colônia, nas ordenações do Reino. Reuniu o que havia de contemporâneo nas leis florestais de dezenas de países, e foi buscar com o mesmo espírito investigativo as normas legais existentes em cada estado brasileiro. É importante notar a epígrafe do trabalho de Osny Duarte Pereira, revelando o universo de suas preocupações ecológicas e econômicas, quase uma dedicatória, quase uma advertência: "Este livro visa mostrar o direito de nossas florestas, para que nunca se extingam as serrarias do Brasil”.
Malgrado o arsenal crítico contra ele, o Código está apoiado na melhor tradição jurídica nacional, inaugurada pelo Patriarca de nossa Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva. Bonifácio criou o conceito de Reserva Legal ao propor que um sexto das propriedades fosse destinado à preservação de floresta. O objetivo era resguardar a madeira necessária na proximidade das sedes das fazendas e dos rios, para a construção naval e civil e para o consumo na forma de energia. Era um tempo em que as propriedades, chamadas de sesmarias, eram medidas em léguas, perdendo-se pelos sertões adentro, até onde a ousadia dos desbravadores alcançasse.
A Reserva Legal concebida por Bonifácio não tinha como referência de primeiro plano a preocupação ambiental, embora ele possa ser tomado como nosso primeiro ecologista. Também não a imaginou para a estrutura fundiária dos dias atuais, marcada pela divisão das propriedades por força da reforma agrária natural ditada pela sucessão das gerações. A floresta, para Bonifácio, tinha função econômica e geopolítica, de sustentabilidade da atividade das fazendas e do Estado, embora estivessem presentes no pensamento do Patriarca as preocupações ambientais dos dias de hoje.
Examinando-se o Código de 1965, percebe-se que os problemas não devem ser buscados nos seus princípios, mas sim nas absurdas alterações que sofreu em anos recentes, que o tornaram uma caricatura de si próprio, um arremedo de seu espírito original. Bem ou mal, o Código Florestal votado em 1965, em pleno governo militar, foi submetido ao crivo de juristas de espírito público e à aprovação do Congresso Nacional. É paradoxal que em plena democracia ele tenha sido completamente alterado por decretos, portarias, resoluções, instruções normativas e até por uma medida provisória que virou lei sem nunca ter sido votada. É verdade ainda que o próprio Estado foi o primeiro a negar a aplicação da lei, a desrespeitá-la, fomentando o seu descumprimento.
As alterações tornaram de tal forma a legislação impraticável que o presidente da República adiou por decretos – o último deles com validade de dezembro de 2009 até junho de 2011 – a entrada em vigor de alguns de seus dispositivos. A legislação põe na ilegalidade mais de 90% do universo de 5,2 milhões de propriedades rurais no País. Atividades inteiras viram-se, do dia para a noite, à margem da lei, submetidas às pressões e sanções dos órgãos ambientais e do Ministério Público. Homens do campo, cumpridores da lei, que nunca haviam frequentado os tribunais ou as delegacias de polícia, viram-se, de repente, arrastados em processos, acusações e delitos que não sabiam ter praticado. Houve casos de suicídio, de abandono das propriedades por aqueles que não suportaram a situação em que foram colhidos.
Combinados, os dispositivos legais existentes podem transformar em crime ambiental o próprio ato de viver. Percorrendo o labirinto legal de milhares de normas entre leis, portarias, instruções normativas, decretos, resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e legislações estaduais, a autoridade ambiental ou policial pode interpretar como crime ambiental a simples extração de uma minhoca na margem de um riacho, a tradição indígena e camponesa de fermentar a raiz da mandioca usando livremente o curso d'água, a extração do barro para rebocar as paredes das casas de taipa dos moradores da roça, a extração do pipiri para a confecção das tradicionais esteiras do Nordeste ou as atividades seculares das populações ribeirinhas por toda a Amazônia.
No Rio de Janeiro, cogitou-se da retirada de centenárias jaqueiras situadas em florestas públicas a pretexto de serem árvores exóticas, não nativas da Mata Atlântica, o que é verdade. Rigorosamente, a jaqueira é originária da Ásia, mas por aqui aportou no século XVII e foi usada no reflorestamento do maciço da Tijuca por ordem de D. Pedro II. É o caso de se requerer ao Ministério da Justiça a naturalização da espécie, algo que qualquer cidadão pode alcançar com meros cinco anos de residência fixa no País.
O soldado amarelo, personagem de Vidas Secas de Graciliano Ramos, trancafiou o matuto Fabiano para tomar-lhe os trocados da feira e exercitar seu mesquinho poder em nome do Estado. Hoje poderia prender Fabiano por ter jantado o papagaio para saciar a fome sem a devida autorização do órgão ambiental. Baleia, a cadelinha de estimação sacrificada por Fabiano por suspeita de raiva, morreu sonhando com preás gordos, enormes, que dividia com sua família humana nas provações da seca. Baleia morreu sonhando com um crime inafiançável.
Estão na ilegalidade os milhares de assentados da reforma agrária, quatro mil deles em um único município, Confresa, no Mato Grosso; e 1.920 em outro município, Querência, no mesmo Estado. Em Rondônia, a caminho do município de Machadinho do Oeste, o presidente da Federação dos Trabalhadores da Agricultura, Lázaro Dobre, encontrou 20 lotes de assentados à venda, pelo motivo de não poderem cumprir a legislação ambiental.
Passou para a ilegalidade a criação de boi nas planícies pantaneiras. No bioma mais preservado do País, o boi é criado em capim nativo, método totalmente sustentável, mas que se tornou ilegal a partir da legislação que considera todo o Pantanal Área de Preservação Permanente (APP). Fora da lei, estão também 75% dos produtores de arroz, por cultivarem em várzeas, prática adotada há milênios na China, na Índia e no Vietnã, para não falar de produtores europeus e norte-americanos que usam suas várzeas há séculos para a agricultura.
Em desacordo com a norma legal, está também boa parte da banana produzida no Vale do Ribeira, em São Paulo, e que abastece 20 milhões de consumidores a pouco mais de 100 quilômetros do centro de produção. A situação é igual para milhares de agricultores que cultivam café, maçã e uva em encostas e topos de morros em Minas Gerais, Espírito Santo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
A Comissão Especial escolheu por método realizar audiência públicas em Brasília e nos Estados para colher as opiniões e os depoimentos de todos os interessados no debate sobre a matéria. Foram ouvidas as organizações não governamentais estrangeiras credenciadas no Brasil; as organizações não governamentais nacionais; as organizações não governamentais locais; os pesquisadores das universidades e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa); as autoridades dos órgãos ambientais da União, de estados e municípios; governadores, prefeitos, vereadores; agricultores pequenos, médios e grandes, organizações representativas da agricultura, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag), Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA) e Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB). Foi possível conhecer a diversidade e os desequilíbrios próprios do País que se revelam no debate do tema ambiental e florestal.
A imensa maioria de pequenos e médios proprietários pratica ainda uma agricultura pré-capitalista ou semi-capitalista, quase de subsistência, de baixo uso de capital e tecnologia. O declínio do preço médio do que produzem não tem como ser compensado pela aplicação de ganhos tecnológicos ou de capital. Esse agricultor e criador é o mais vulnerável às restrições ambientais. Pressionado, ou mergulha na ilegalidade, ou na teia de multas e autuações dos órgãos ambientais e do Ministério Público.
Esses agricultores são detentores de quatro milhões de unidades dos 5,2 milhões de propriedades. Aí está a maior parte do agricultor de raiz, distinto do investidor rural, do empresário e profissional liberal bem sucedido que adquiriu terras, mas não vive nelas nem dirige pessoalmente as atividades de suas propriedades. A importância mais profunda e duradoura dessa agricultura não está no valor de mercado daquilo que ela produz, que não figura nas cotações em bolsa, nem é alcançada pela contabilidade dos órgãos de controle do governo. Mas esses homens e mulheres do campo vivem ou se apoiam no seu trabalho para viver, vendem seu inhame, macaxeira, batata doce, abóbora, melancia, a galinha da roça e o cabrito nas feiras livres do interior do País e mobilizam uma economia que não pode ser desprezada.
Essa agricultura e pecuária é guardiã de cultura, de valores, de tesouros da formação social brasileira cuja importância em muito ultrapassa aquilo que pode ser aferido pela medida fugaz do mercado. Não tem preço a música – popular ou erudita – que nela tem suas origens; as composições de Luiz Gonzaga, Tonico e Tinoco, e Villa-Lobos, de inspiração sertaneja ou caipira; a beleza estética dos autos nordestinos, do Pastoril, Reisado e Guerreiro; das Festas de Reis de São Paulo e Minas Gerais; de toda a riqueza do folclore e do cancioneiro do Rio Grande ou do Centro-Oeste e do Norte do Brasil. A vida no campo construiu a nossa melhor culinária – a mais simples e a mais sofisticada -, e marcou com vocábulos e sotaques o português escrito e falado no Brasil; determinou aspectos de nossa psicologia e visão de mundo; e integra nossa memória coletiva.
Embora constitua aspectos relevantes da mesma conservação de valores e memórias da pequena e média propriedade, o grande proprietário é hoje muito mais um produtor capitalista, cuja importância reside em tornar a nossa agricultura competitiva no cenário internacional, no barateamento do custo dos alimentos e na formação do excedente necessário para o equilíbrio das nossas contas externas e estabilidade dos preços internos. É verdade ainda que essa agricultura de mercado já conta hoje com uma grande parcela de pequenos e médios empreendimentos agropecuários organizados em um sistema eficiente de cooperativismo, mas carente de reserva de capital para investimentos em equipamentos e tecnologia e ganhos de produtividade. A maior ameaça ao grande produtor é a elevação de custos de produção imposta pela legislação ambiental e florestal na realização de obras, contratação de escritórios de advocacia e renúncia de áreas destinadas à produção. Ao fim e ao cabo, a legislação ambiental funciona como uma verdadeira sobrecarga tributária, elevando o custo final do produto, já oprimido pelo peso da infraestrutura precária e das barreiras não tarifárias cobradas pelos importadores.
Observando o esforço de algumas organizações não governamentais estrangeiras contra a expansão da nossa fronteira agropecuária, é o caso de se perguntar como o padre Antônio Vieira: estão aqui em busca do nosso bem ou dos nossos bens?
Pregando na cidade de São Luís, no ano de 1654, o Sermão de Santo Antônio aos Peixes, assim batizado porque Vieira, como o santo de Lisboa e Pádua, julgava mais fácil falar aos bichos do que aos homens, o grande orador, depois de exaltar o comportamento dos peixes por inúmeras virtudes, passou a repreendê-los, em primeiro lugar por se comerem uns aos outros e, principalmente, pelo fato de os grandes devorarem os pequenos. Reparava o pregador que o pecado seria menos grave se os pequenos devorassem os grandes, pois só um dos grandes seria suficiente para alimentar muitos dos pequenos; quando, ao contrário, para satisfação de um grande, milhares de pequenos eram devorados. Em verdade, Vieira censurava a relação entre os homens e as injustiças do Estado:
"Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores que os corvos. O triste que foi à forca não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido".
Assim vai o nosso agricultor, notificado, multado, processado, embargado na sua propriedade, sentenciado, e mal arranca da terra o seu sustento e o da sua família e já se vê sustentando o fiscal ambiental, o soldado, o delegado, o oficial de justiça, o promotor, o desembargador, o advogado, o banqueiro e a ONG que inspirou o seu infortúnio. Da cidade, o homem urbano olha com desdém e desprezo a sua labuta. Se um morro desliza, se o rio poluído invade as cidades, se a enchente causa transtornos, do conforto do seu automóvel ou do apartamento que despeja os resíduos no curso d'água, ele aponta o culpado: aquele sujeito que está plantando uma lavoura, ou criando uma vaca ou uma cabra em algum lugar distante no campo brasileiro.
Os vietnamitas celebram seus agricultores dedicando a eles uma espécie de oração à hora da principal refeição. Agradecem àqueles que levaram o arroz à sua mesa e garantiram a sobrevivência da nação contra as privações e nas terríveis guerras.
A antiga União Soviética, diante da ameaça nazista, durante a Segunda Grande Guerra, foi buscar na sua poderosa agricultura, em difíceis desapropriações, o excedente que converteu em alimento para seus soldados e em tanques e aviões que garantiram a independência da mãe Rússia. A agricultura norte-americana foi decisiva no esforço do presidente Roosevelt nos anos terríveis da Grande Depressão que se abateu sobre a nação do norte. O açúcar e o tabaco ajudaram o governo cubano a manter a resistência durante os anos da revolução. Quando Londres viveu o horror dos bombardeios da Luftwaffe era para o Atlântico Sul que se voltavam os olhos dos estrategistas ingleses e da Armada Real. Londres poderia sobreviver a meses de bombardeio aéreo alemão, mas não sobreviveria semanas sem a carne e sem o trigo enviados pela Argentina através da rota do Atlântico.
A industrialização do Brasil pode ser atribuída à acumulação cafeeira dos fins do século XIX e começo do século XX. A agricultura e a pecuária sustentaram com preços depreciados os bons e os maus planos econômicos recentes da Pátria. Quando o governo e a população festejavam o frango a R$ 1,00 o quilo, poucos lembravam que milhares de pequenos produtores quebravam por não suportar os custos do subsídio ao consumo. Agora mesmo, enquanto nossa moeda resiste aos solavancos da crise internacional e a agropecuária oferece o superávit essencial para nossas contas externas, as dívidas agrícolas acumulam-se e alcançam níveis insustentáveis.
A natureza e os dilemas morais, políticos, ideológicos e comerciais
“E disse Deus ainda: Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra e todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento.”
Gênesis
A questão ambiental surge como temática incontornável da encruzilhada moral, política, ideológica e comercial que marca a vida contemporânea. Epicuro, o filósofo materialista grego, iniciou o homem na libertação do medo e das superstições que afligem o espírito e estabeleceu as bases sobre as quais muitos séculos depois filósofos e cientistas como Galileu, Descartes, Bacon, Kant, Hegel, Marx e Engels e Darwin desenvolveram as modernas visões da natureza e das relações entre o homem e o meio ambiente.
A dimensão econômica dessas relações foi analisada pelos fundadores da economia política e, já na passagem para o século XX, novas contribuições deram origem aos conceitos que formaram o que hoje se denomina economia ambiental. Esse debate situou os campos em disputa: os que viam as relações entre o homem e a natureza a partir das necessidades de reprodução do capital, da manutenção da sociedade de classes e da divisão internacional do trabalho que lhe é subjacente, e os que, no sentido oposto, partiam da ideia de que os problemas ambientais derivam do sistema social e que as possíveis soluções devem ser buscadas na sua transformação.
Para o primeiro grupo, a natureza deve estar subordinada às exigências do mercado, dos privilégios de classe ou dos interesses nacionais dos Estados favorecidos pelo estágio atual da divisão internacional do trabalho. Para o segundo grupo, a crise ambiental não está separada dos interesses de classe, nem das ambições das nações ricas e de sua cobiça por matérias primas e fontes de energia.
O presente relatório pretende demonstrar que as escolhas morais e ideológicas no debate contemporâneo sobre a natureza e o meio ambiente revelam, na verdade, os interesses concretos das nações ricas e desenvolvidas e de suas classes dominantes na apropriação dos bens naturais já escassos em seus domínios, mas ainda abundantes entre as nações subdesenvolvidas ou em processo de desenvolvimento. Da mesma maneira, a polêmica confronta a agricultura subsidiada dos ricos vis-à-vis a agricultura cada vez mais competitiva de países como o Brasil.
É cada vez mais agressiva a corrente ambientalista que tende a responsabilizar moralmente o antropocentrismo como fonte primária e maligna dos desastres ambientais. Ao erigir o ser humano como o centro do universo, o antropocentrismo legitimaria toda a ação predatória contra a natureza. A tese carrega para o centro da polêmica até atores aparentemente alheios ao assunto: o Papa, em documento divulgado pouco antes da Conferência de Copenhague sobre o clima, reagiu duramente contra os adversários do antropocentrismo, afinal de contas, é a Bíblia o mais antigo e completo tratado de antropocentrismo, e Jesus, o Filho de Deus, não veio à terra em uma forma aleatória de vida, mas na figura de um homem.
A crítica ao antropocentrismo nivela os seres vivos em direitos e protagonismo, desconhece o homem como o único ser vivo dotado de consciência e inteligência, capaz de interagir com a natureza e de transformá-la. O trabalho do homem, concebido primeiro em seu cérebro, ajudou a transformá-lo e a transformar o meio natural.
A antropofobia descarta como irrelevante a situação de milhões de seres humanos em condições abjetas de existência material e espiritual. Milhões que não dispõem da segurança do pão de cada dia, das condições mínimas de higiene e saúde, do acesso à educação e à segurança individual e coletiva, do conforto da família e dos amigos, da proteção do Estado nacional ou da liberdade política e religiosa. Nada disso sensibiliza os adversários do antropocentrismo. Que os pobres deixem de nascer, deixem a natureza em paz, é o credo básico que professam.
O conteúdo ideológico do debate ambiental aparece em 1992 no livro A Terra em Balanço, do ex-vice-presidente dos Estados Unidos, Al Gore, apresentado como a teoria, a doutrina e o programa do movimento ambientalista internacional. Lá pelo capítulo 14, intitulado Um novo objetivo comum, o texto resvala para o jargão militar próprio dos tempos da Guerra Fria. O autor denuncia a “assombrosa violência e horríveis consequências” da investida contra a Terra. Prega uma “reação oportuna e apropriada”, e elogia os “bolsões isolados de guerreiros da resistência que enfrentaram diretamente essa força destruidora”. Enquanto Gore anunciava sua estratégia, o barco Rainbow Warriors – os guerreiros do arco-íris do Greenpeace – singrava os mares cumprindo a profecia.
Gore prossegue na comparação entre a batalha em defesa do meio ambiente e a luta do passado contra o comunismo, cita a “guerra filosófica que durou da época da revolução russa até a libertação”, e reafirma a semelhança do desafio do ambientalismo com “a longa luta entre democracia e comunismo”. Conclui o raciocínio com a conclamação de que as sociedades livres “podem vencer a batalha”.
Para efeito da semelhança histórica, o ex-vice-presidente norte-americano apresenta a ideia de um novo Plano Marshall Global, similar ao que foi conduzido logo após o conflito mundial para ajudar os governos europeus a enfrentar a pressão do movimento socialista e comunista.
A proposta é resumida por Gore em três grandes linhas:
• Alocar recursos para financiar programas de alfabetização funcionais e cuidadosamente orientados, adaptados a todas as sociedades em que a transição demográfica ainda deve ocorrer;
• Desenvolver programa eficazes para reduzir a mortalidade infantil e assegurar a sobrevivência e a saúde das crianças;
• Assegurar amplo acesso aos métodos de controle da natalidade, com instruções culturalmente adequadas.
Ao contrário do Plano Marshall original, voltado para combater a influência comunista na Europa a partir de uma perspectiva desenvolvimentista, que recuperasse a infraestrutura europeia destruída e que oferecesse condições para a retomada da atividade econômica em escala e intensidade, o plano de Gore é a condenação dos países pobres ao subdesenvolvimento, limitado nas medidas compensatórias e poupadoras do consumo de energia e recursos naturais que seriam destinados, naturalmente, a quem já alcançou o topo do desenvolvimento e do bem estar e chuta a escada dos que estão abaixo.
O ambientalismo funcionou como rota de fuga do conflito ideológico entre o capitalismo e o socialismo. Os desiludidos de ambas as ideologias vislumbraram no ambientalismo um espaço a partir do qual poderiam reorganizar suas crenças e seus projetos de vida e se juntar a tantos outros que por razões diferentes fizeram da bandeira verde um novo modo ou meio de vida. Ao ecologismo ideológico, juntou-se o profissional e empreendedorista. Consultorias concedidas por ONGs que contratam e são contratadas, recebem financiamento interno e externo, público e privado, funcionam dirigidas por executivos profissionais que já representam atividade nada desprezível no setor de serviços.
Finalmente, cabe reconhecer o ativismo ambientalista de grande parcela de militância generosa, que em todo o mundo, no passado e no presente, mobilizou suas energias contra os crimes ambientais cometidos pelo homem, no capitalismo principalmente, mas também no socialismo; nos países ricos, mas também nos países pobres. A esses, a homenagem, no poema belo e antecipador dos dilemas da atualidade, do grande poeta brasileiro e da humanidade, Antônio de Castro Alves:
A queimada
Meu nobre perdigueiro! vem comigo.
Vamos a sós, meu corajoso amigo,
Pelos ermos vagar!
Vamos lá dos gerais, que o vento açoita,
Dos verdes capinais n’agreste moita
A perdiz levantar!…
Mas não!… Pousa a cabeça em meus joelhos…
Aqui, meu cão!… Já de listrões vermelhos
O céu se iluminou.
Eis súbito da barra do ocidente,
Doudo, rubro, veloz, incandescente,
O incêncio que acordou!
A floresta rugindo as comas curva…
As asas foscas o gavião recurva,
Espantado a gritar.
O estampido estupendo das queimadas
Se enrola de quebradas em quebradas,
Galopando no ar.
E a chama lavra qual jibóia informe,
Que, no espaço vibrando a cauda enorme,
Ferra os dentes no chão…
Nas rubras roscas estortega as matas…,
Que espadanam o sangue das cascatas
Do roto coração!…
O incêndio – leão ruivo, ensanguentado,
A juba, a crina atira desgrenhado
Aos pampeiros dos céus!…
Travou-se o pugilato… e o cedro tomba…
Queimado…, retorcendo na hecatomba
Os braços para Deus.
A queimada! A queimada é uma fornalha!
A irara – pula; o cascavel – chocalha…
Raiva, espuma o tapir!
… E às vezes sobre o cume de um rochedo
A corça e o tigre – náufragos do medo –
Vão trêmulos se unir!
Então passa-se ali um drama augusto…
N’último ramo do pau-d’arco adusto
O jaguar se abrigou…
Mas rubro é o céu… Recresce o fogo em mares…
E após… tombam as selvas seculares…
E tudo se acabou!…
Josué de Castro contra Thomas Malthus
Thomas Robert Malthus (1766-1834) foi um monge conservador inglês, autor do Ensaio sobre a População e da proposição segundo a qual a população cresce em proporção geométrica, enquanto a produção de alimentos avança a taxas aritméticas. Malthus não tinha, à época, nenhuma evidência que sustentasse sua opinião. Seu propósito era demonstrar que a condição dos pobres era resultado da lei natural, enraizada na providência divina. Seu objetivo era combater as chamadas Poor Laws (leis de assistência à pobreza) na Inglaterra. Para ele, o único resultado dessas leis era estimular os casamentos, e consequentemente, o aumento da população e com isso cortejar maiores catástrofes, como a fome e a redução da qualidade de vida das classes mais elevadas. Malthus se referia aos pobres como “excluídos do banquete da natureza” e “infelizes que não acertaram um único ponto na grande loteria da vida”.
Marx reagiu furiosamente ao trabalho de Malthus, acusou-o de plagiar abertamente o economista James Anderson e, em carta ao amigo J.B. Schweitzer, qualificou o panfleto de Malthus de “libelo contra a raça humana”.
Engels, companheiro de Marx, caçoou do raciocínio malthusiano e, em seu trabalho, Esboço de uma Crítica da Economia Política, observou que a lógica do argumento de Malthus era tal que “a Terra já estava superpovoada quando existia um único habitante”.
O pensamento de Malthus, citado por John Bellamy Foster, em seu livro A Ecologia de Marx, Materialismo e Natureza, guarda toda a coerência com as teses esposadas pelas nações ricas e por suas ONGs ambientalistas em torno do usufruto da natureza:
“Um homem que nasce num mundo já possuído, se não conseguir obter o sustento de seus pais ou com alguém de justo direito, e se a sociedade não quiser o trabalho dele, não tem direito à ínfima porção de alimentos e, com efeito, não tem nada de estar onde está. Não há vaga para ele no lauto banquete da natureza. Ela lhe diz para ir-se embora, e vai rapidamente executar suas próprias ordens, se ele não se valer da compaixão de alguns convivas. Se estes convivas se levantarem e abrirem espaço para ele, outros intrusos aparecerão imediatamente demandando o mesmo favor… A ordem e harmonia do banquete são perturbados, a abundância que reinava até então se transforma em escassez… Os convidados percebem o erro tarde demais, ao aplicar a todos os intrusos essas ordens estritas, emitidas pela grande anfitriã do banquete, que, desejando que todos os seus convidados tenham abundância, e sabendo não poder prover números ilimitados, humanamente se recusou a admitir os que continuam a chegar quando ela já está com a mesa lotada”.
O reacionarismo de Thomas Malthus foi implacavelmente derrotado na doutrina e na prática. Engels explicou a questão da superpopulação no seu trabalho As condições da classe trabalhadora na Inglaterra e desenvolveu o conceito de exército industrial de reserva, ou de superpopulação relativa, que passou a integrar o núcleo central da economia política de Marx. O próprio Marx, no primeiro volume de O Capital, viu as possibilidades de “progresso no aumento da fertilidade do solo”, embora advertisse que no capitalismo isso significaria “simultaneamente um progresso na ruína das fontes primárias dessa fertilidade”.
Malthus foi derrotado, mas sua ideologia sobre a divisão da riqueza permaneceu de pé, e a ideia de que “não há lugar para os pobres no banquete da natureza” é a matriz, o núcleo duro, que orienta todos os movimentos que de algum modo procuram restringir o crescimento econômico e populacional em nome dos limites do planeta. Assim como para Malthus, nos primórdios do capitalismo a questão era garantir a abundância dos ricos, que poderia ser posta em risco pelo crescimento populacional, todos os movimentos posteriores, que tentam de algum modo impor limites ao crescimento mundial, particularmente dos países pobres, partilham do mesmo princípio.
O Clube de Roma, grupo de pessoas ilustres fundado em 1968 para debater assuntos relacionados com a economia internacional e, sobretudo, com o meio ambiente, é um exemplo de como as ideias malthusianas permanecem vivas. Em 1972, este grupo contratou uma equipe do Massachusetts Institute of Technology (MIT), uma das mais prestigiadas universidades do mundo, para produzir um relatório sobre os limites do crescimento. O livro vendeu mais de 30 milhões de cópias, em 30 idiomas, e se tornou a obra sobre o meio ambiente mais vendida da história. Em sua principal conclusão, o relatório apontava que a Terra não suportaria mais a pressão sobre os recursos naturais e energéticos e o aumento da poluição.
O debate atual sobre o aquecimento global, nos termos em que está posto, segue a mesma linha de raciocínio. Diante de polêmicas evidências de que estaria em curso um processo de aquecimento global provocado pela ação humana, principalmente pela queima de combustíveis fósseis, o que poderia levar à ocorrência de eventos climáticos extremos, como o derretimento das calotas polares, elevação do nível dos oceanos e alteração dos regimes de chuvas, em nenhum momento se questiona o modo de produção que está na origem do descuido com o meio ambiente: o consumismo individualista do capitalismo globalizado e a transformação dos recursos naturais em propriedade desses consumidores e de suas ricas nações.
O que as nações ricas propõem, de acordo com a mesma pregação de dois séculos atrás do reverendo Malthus, é limitar o acesso dos países pobres aos mesmos padrões de consumo. A grande preocupação não é o nível atual de consumo dos ricos, mas o possível impacto de se estender esse modelo às nações em desenvolvimento, que são vistas como “reservas” para a manutenção daquele padrão de consumo. O que os alarma, portanto, não é o seu próprio padrão de vida, baseado no consumo conspícuo e individualista, mas o que aconteceria com o planeta se cada chinês, africano, indiano ou brasileiro também quiser ter o seu próprio veículo e comer 100 gramas de carne por dia. Como não pretendem mudar seus padrões de vida e de acumulação, propõem limitar o acesso aos recursos naturais, acabar com o “almoço grátis”, exatamente quando os pobres se aproximam da mesa. Os bens naturais devem ser privatizados por meio das taxas de carbono, mecanismos de desenvolvimento limpo, com uma mensagem clara: não há mais recursos livres, tudo tem dono e, principalmente, um preço. Quem quiser usar vai ter que pagar, e que os países pobres paguem com sua eterna condenação à pobreza.
Constrangidas pelas evidências de suas ambições mesquinhas, as nações ricas usam o longo braço de suas organizações não governamentais, que desembarcam no Brasil como portadoras da boa nova da defesa da natureza, mas não conseguem esconder a causa que verdadeiramente protegem – o interesse das nações onde têm suas sedes e de onde recebem farto financiamento.
O Brasil conheceu no século passado a atuação desse tipo de organização quando perdeu, em 1904, 20 mil quilômetros quadrados do atual território de Roraima para a Inglaterra, em questão arbitrada pelo rei da Itália. O caso deu-se da seguinte forma: na segunda metade do século XIX, a ONG intitulada Sociedade Geográfica Britânica promoveu uma incursão de reconhecimento de dois agentes britânicos ao longo da bacia do Rio Branco até o Rio Negro. Os agentes tinham em vista o interesse do império britânico no acesso à bacia do Amazonas, vedado pelos rios da Guiana, que nascem no maciço do mesmo nome, mas se dirigem para o Caribe. Era preciso incorporar parte do território brasileiro para adentrar os rios que correm em direção ao Negro e ao Amazonas. Feito o reconhecimento, os agentes britânicos aconselharam a presença de uma missão evangelizadora para catequizar os índios, o que despertou a ação militar do império brasileiro a partir do governo do Pará. O Brasil exigiu a retirada da “missão religiosa” e recebeu como resposta a presença de uma força militar britânica e a imposição do governo de Sua Majestade de que o Brasil aceitasse o status de litígio naquela parte do seu território. O Brasil aceitou a situação litigiosa e a proposta britânica de submeter a questão à arbitragem de uma autoridade neutra. Julgada a disputa pelo rei da Itália, metido na partilha da África em aliança com a Inglaterra, o Brasil terminou por perder uma parte de seu território e os britânicos por ganhar a chamada Questão do Pirara e o ambicionado acesso à bacia Amazônica.
O médico brasileiro Josué de Castro escreveu uma página importante da luta contra as ideias malthusianas. Em Geografia da Fome explica por que nada existe de mais fantasioso do que a suposta harmonia entre o homem e a natureza na região amazônica. Se, ao contrário de outras regiões do País, grande parte da região amazônica conserva-se ainda hoje tal qual foi encontrada pelos colonizadores portugueses há cinco séculos, isso não se deve à tal harmonia que a civilização não conseguiu destruir, mas exatamente à hostilidade do meio à vida humana e ao desenvolvimento. Como afirma Josué de Castro, “na alarmante desproporção entre a desmedida extensão das terras amazônicas e a exiguidade de gente, reside a primeira tragédia geográfica da região. (…) Dentro da grandeza impenetrável do meio geográfico, vive este punhado de gente esmagado pelas forças da natureza, sem que possa reagir contra os obstáculos opressores do meio, por falta de recursos técnicos, só alcançáveis com a formação de núcleos demográficos de bem mais acentuada densidade”.
A harmonia entre os chamados povos da floresta e o meio em que vivem – na verdade sobrevivem – não passa de ficção produzida para filmes como Avatar, de James Cameron, que levam às lágrimas plateias confortavelmente instaladas em modernas salas de cinema dos shopping centers, cercadas de praças de alimentação, onde ao estalar de dedos aparece como por mágica qualquer tipo de comida desejada pelo emocionado espectador. Provavelmente a maioria, ao saborear o suculento bife ou a fresca salada não faz a menor ideia da luta entre o homem e meio ambiente na Amazônia, nas quantidades de demandas por alimento saudável, livres de parasitas de todos os tipos que disputam com o ser humano o direito à vida. Talvez seja essa a real “verdade inconveniente”.
Aliás, seria o caso de se perguntar ao famoso cineasta, ao popstar Sting e aos seus cortesãos locais que, juntos, se apresentam como grandes defensores dos povos da floresta amazônica, se teria sido possível aos mesmos visitarem a região e realizarem suas performances eco-hollywoodianas não houvesse sido ali construídos, no coração da floresta, alguns luxuosos hotéis, somente acessíveis aos muito ricos como eles, cuja água servida nas suítes e restaurantes, mesmo em meio àquela imensidão aquática, vem da França, e os legumes, frutas e verduras indispensáveis a uma dieta alimentar tão ao gosto das celebridades, voam de São Paulo a milhares de quilômetros de Manaus.
Se os chamados povos da floresta, índios e caboclos, depois de séculos de luta contra o meio inóspito, ainda ali vivem como viviam seus antepassados há centenas ou milhares de anos, certamente não é porque a tais povos satisfaçam as condições de vida características dessas eras passadas – quando se vivia 30 anos em média – mergulhados no isolamento, completamente dominados pelas forças da natureza, perambulando nus ou seminus, abrigados em choças insalubres, infestadas de insetos e fumaça, lutando em condições absolutamente desiguais contra o meio hostil, que não lhes permite ir além das condições mais rústicas e primitivas de vida de seus ancestrais.
Reivindicam melhorar a sua condição de vida, e se não o alcançam, para isso contribuem fatores de ordem natural e social, que só a ação organizada do homem, por meio da ação política do Estado, pode ajudar a superar. Ali, o beriberi foi controlado, mas outras moléstias como a malária e a leishmaniose continuam a ceifar as vidas das populações indígenas e dos ribeirinhos.
A Amazônia é parte do território brasileiro e cabe ao Estado empreender as ações necessárias para que os cidadãos que ali vivem não fiquem à mercê de contingências naturais e sociais, sem que a organização política da sociedade não tenha como dar respostas adequadas. Pois se assim fosse, estariam plenamente justificadas as demandas autonomistas daqueles grupos que não se reconhecem no tecido social da Nação. A pretensão de ONGs estrangeiras indigenistas e ambientalistas de tutelarem aquela parte do território nacional e seus habitantes é um escárnio para o Estado e para o povo brasileiro.
Vale a pena transcrever passagens de Josué de Castro em Geografia da Fome sobre a Amazônia:
“Para melhorar as condições alimentares da área amazônica faz-se necessário todo um programa de transformações econômico-sociais na região. As soluções dos aspectos parciais do problema estão todas ligadas à solução geral de um método de colonização adequado à região. Sem alimentação suficiente e correta a Amazônia será sempre um deserto demográfico. Sem um plano de povoamento racional e de fixação colonizadora do elemento humano à terra nunca se poderá melhorar os recursos da alimentação regional. (…)
A conquista de qualquer tipo de terra pela colonização é sempre o resultado de uma luta lenta e tenaz entre o homem e os obstáculos do meio geográfico. Entre a força criadora do elemento humano e as resistências dos fatores naturais. Na paisagem virgem, o homem é sempre um intruso que só se pode manter pela força. O geógrafo francês Pierre Déffontaines, tratando da dinâmica da colonização, dos ajustamentos dos grupos humanos aos diferentes quadros naturais, fala-nos sempre em lutas. Em luta do homem contra a montanha. Em luta do homem contra a água. Em luta do homem contra a floresta.
Assim se apresenta o caso da conquista econômica da Amazônia: luta tenaz do homem contra a floresta e contra a água. Contra o excesso de vitalidade da floresta e contra a desordenada abundância da água dos seus rios. Água e floresta que parecem ter feito um pacto da natureza ecológica, para se apoderarem de todos os domínios da região. O homem tem que lutar de maneira constante contra esta floresta que superocupou todo o solo descoberto e que oprime e asfixia toda a fauna terrestre, inclusive o homem, sob o peso opressor de suas sombras densas, das densas copas verdes de seus milhares de espécimes vegetais, do denso bafo de sua transpiração. Luta contra a água dos rios que transformam com violência, contra a água das chuvas intermináveis, contra o vapor d’água da atmosfera, que dá mofo e corrompe os víveres. Contra a água estagnada das lagoas, dos igapós e dos igarapés. Contra a correnteza. Contra a pororoca. Enfim, contra todos os exageros e desmandos da água fazendo e desfazendo a terra. Fertilizando-a e despojando-a de seus elementos de vida. Criando ilhas e marés interiores numa geografia de perpétua improvisação, ao sabor de suas violências.
Para vencer a força desadorada da natureza ainda em formação, para abrir brechas nesses cerrados batalhões de árvores inexpugnáveis, seria necessária uma sábia estratégia do elemento humano. Seria preciso, antes de tudo, que ele concentrasse as suas forças. Que se agrupasse em zonas limitadas e desencadeasse nesses pontos estratégicos a luta contra a floresta. Infelizmente isso não se fez. O povoamento amazônico foi conduzido de maneira dispersiva, sem nenhuma tática para a luta a ferir-se e, portanto, previamente condenado ao fracasso. ‘Numa região em que a natureza se concentrou para resistir, o homem se dispersou para agredí-la’, diz Viana Moog com muita acuidade. De fato, o homem amazônico, longe de formar grupos, tentou penetrar na floresta como indivíduo, isolado, num heroísmo individual sem precedente na história da colonizações. Numa louca aventura solitária, vivida no silêncio da floresta.
Deve ser posto em destaque que o ocorrido na Amazônia não foi mais que uma exaltação desse espírito de iniciativa privada que caracterizou toda colonização portuguesa no Brasil, neste aspecto semelhante à espanhola no resto da América. Colonização, em sua dinâmica desordenada, tão diferente da de Roma, planejada, dirigida e realizada pelo Estado, em contraste com as aventuras da América, que os povos ibéricos levaram a efeito através da ‘ação dispersa e desconcertada do povo, sempre desprovido da orientação eficaz de suas minorias dirigentes e quase abandonado pelo Estado’, atuando de uma maneira ‘pletórica de individualismo’, como destaca Claudio Sanches Albornoz, em seu estudo La Edad Media y La Empresa de América (La Plata, 1934). Com esse tipo de colonização, e tão acentuada marca medieval, formou-se a nossa estrutura social com esse caráter ganglionar e dispersivo, de extrema rarefação, de que nos falava Oliveira Viana, esparramando-se o organismo social, ralo e superficial, por extensões que não podiam ser alcançadas pelo organismo político, sem capacidade de irradiação. Ficavam, assim, os colonos sustentados quase que exclusivamente por sua força e iniciativas próprias, com as suas conquistas defendidas muito menos pela ação oficial do que pelo braço e pela espada dos particulares. Se por toda a América ibérica o privatismo campeou, no caso da conquista da Amazônia, por seu excessivo isolamento territorial, ele se extremou até os limites máximos do individualismo”.
Josué de Castro foi deputado federal e trabalhou para a FAO (Organização para Agricultura e Alimentação da ONU), deixou vasta obra publicada, como o clássico Geografia da Fome, recebeu indicações para o Prêmio Nobel e ganhou o Prêmio Internacional da Paz. Polemizou com as ideias malthusianas e sustentou que, ao contrário do que pregavam os adeptos de Malthus, não era a superpopulação a causadora da fome mas, ao contrário, era a fome que provocava a multiplicação dos nascimentos entre as famílias pobres, umas vez que os pobres procuravam no grande número de filhos a possibilidade da sobrevivência de alguns e de braços para amenizar a pobreza.