Imperialismo moral e ensaios clínicos multicêntricos em países periféricos – parte 3
Imperialismo moral direto
Alguns casos conhecidos na literatura mundial recente serão aqui expostos para contextualizar melhor o assunto. No final de 1997, Lurie e Wolf publicaram um artigo que denunciou 15 ensaios clínicos determinados para estudar a prevenção da transmissão vertical do HIV de mães grávidas para seus bebês, em países chamados “em desenvolvimento”, com a utilização de grupos controle tratados com placebo (13). A editora-chefe da revista em que o artigo foi publicado – New England Journal of Medicine – assinou um editorial apoiando a posição dos autores, comparando as referidas pesquisas com o conhecido “Caso Tuskegee” (14). Assim como o estudo Tuskegee negou penicilina aos sujeitos, mesmo depois de comprovada a eficácia da droga salvadora, essas investigações com HIV negaram medicamentos antirretrovirais a um dos grupos de mães participantes. Esses estudos violaram o consentimento informado, extrapolaram a questão do placebo e tiraram vantagem de populações pobres e desinformadas.
Diretores do NIH (National Institute of Health) e do CDC (Center for Disease Control and Prevention), ambos dos EUA e patrocinadores da pesquisa, imediatamente saíram em defesa ética das pesquisas, alegando que essas situações são corretas, pois “devem ser consideradas as complexidades científicas, sociais e econômicas de cada pesquisa” (6). A seguir, o assunto passou às páginas dos jornais de ampla circulação, sendo que o The New York Times deu grande destaque ao assunto naquele momento. O que surpreende na questão é que diversos pesquisadores defenderam fortemente a adoção de critérios éticos diferenciados para as investigações que foram aplicadas nos países desenvolvidos e nos países em vias de desenvolvimento. A base da argumentação se fundamentava no relativismo de cada situação:
“Padrões éticos de pesquisa com sujeitos humanos são universais, mas não absolutos: existem alguns princípios éticos gerais que podem ser aplicados a todos os casos de pesquisas com humanos, mas a aplicação desses princípios deve considerar também fatores inerentes a situações particulares… que variam de acordo com o contexto social e econômico, além das condições científicas das pesquisas.” (7)
Em outras palavras, o argumento contextualiza o tema, “descontextualizando-o”. A pergunta que começou a emergir no âmbito acadêmico internacional, então, era se padrões diferenciados para protocolos de investigação e participantes seriam eticamente justificados. De qualquer modo, manifestações oportunas repudiaram esses argumentos, afirmando que significavam exatamente o contrário dos progressos alcançados até aquele momento em relação aos direitos políticos e civis universais (15,16,17).
Menos de dois anos depois, outra pesquisa sobre HIV desenvolvida em países pobres também gerou polêmica semelhante. O projeto foi implementado em áreas rurais de Uganda com o objetivo de delinear os fatores de risco associados à transmissão heterossexual do HIV – Tipo 1, buscando determinar se doenças sexualmente transmissíveis aumentavam o risco de infecção pelo HIV (18) e também verificar a relação entre carga viral e transmissão heterossexual do HIV-1 (19). Nesse estudo, centenas de pessoas com HIV foram observadas durante 30 meses, mas não tratadas, além de que não foram proporcionadas informações precisas e completas aos participantes da amostra (20).
O que também surpreende nisso tudo é que Comitês Editoriais de algumas revistas científicas – como são os casos da NEJM e da Lancet, tradicionais e respeitáveis publicações internacionais da área biomédica – tenham aceito para publicação artigos com as características e as distorções já mencionadas (13,18,19) . No caso da NEJM, o assunto rendeu dois editoriais assinados por Marcia Angell (14,21), sua editora chefe na época, ambos críticos à decisão do Conselho e não corroborada por ela, que confessou ter ficado em posição minoritária mas, mesmo assim, inconformada. Logo após o affaire, Angell deixou (ou teve que deixar…) o cargo que ocupou por vários anos. No caso da Lancet, a revista reviu sua posição em um editorial publicado em 2003, com o taxativo título One standard, not two (22). De todo modo, enquanto as questões denunciadas no presente artigo não forem consideradas no próprio contexto das revistas científicas, inclusive com a decisão de não publicá-los nessas circunstâncias, o estímulo aos seguidores de práticas nocivas aos sujeitos sociais mais vulneráveis continuará existindo.
A perplexidade causada por essa última pesquisa ocorreu porque um projeto dessa natureza nunca havia obtido aprovação nos EUA (país patrocinador da pesquisa) ou em qualquer outro país desenvolvido, onde os pacientes com HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis seriam previamente alertados e tratados. Ficou evidente que os padrões éticos foram diferentes para Uganda. E, o que é pior, muitas pesquisas desenvolvidas nos países periféricos agora passavam a se limitar à observação dos sujeitos para verificação de resultados que poderiam ser prevenidos, como ocorreu no caso das mulheres grávidas HIV positivas tratadas com placebo, com o agravante de que esses estudos geralmente são aprovados por comitês de ética, tanto do país em que são realizados, como do país que os patrocina, tema que será abordado mais adiante.
Referências:
13. Lurie P & Wolfe, S. Unethical trials of interventions to reduce perinatal transmission of the human immunodeficiency virus in developing countries. New England Journal of Medicine 1997; 337, 853-856.
14. Angell, M. (1997). Editorials. The ethics of clinical research in third world. New England Medical Journal 1997; 337:847-849.
15. Schüklenk, U. Unethical perinatal HIV transmission trials establish bad precedent. Bioethics 1998; 12: 312-318.
16. Thomas, J. Ethical challenges of HIV clinical trials in developing countries. Bioethics 1998; 12: 320-327.
17. Greco, D. A cure at any cost? New Scientist, 2001, 1 July: 42-43.
18. Wawer, MJ; Sewankambo, NK; Serwadda, D. et al. Control of sexually transmitted diseases for AIDS prevention in Uganda: a randomised community trial. Lancet 1999; 353: 525-535.
19. Quinn TC, Wawer MJ, Sewankambo NK, et al. Viral load and heterosexual transmission of human immunodeficiency virus type 1. New England Journal of Medicine 2000; 342:921-9.
20. Angell, M. Editorial. Investigators’ responsibilities for human subjects in developing countries. New England Journal of Medicine 2000; 342: 967-969.
21. Angell M. Editorial. Investigators’ responsibilities for human subjects in developing countries. New England Journal of Medicine 2000; 342:967-9.
22. Editorial. One standard, not two. Lancet 27 sept. 2003; 362: 9389.