Imperialismo moral indireto

Um paradigmático texto publicado por Emanuel & Grady, em Janeiro de 2007, propõe uma classificação histórica para o desenvolvimento de ensaios clínicos: 1) Período do “Paternalismo Pesquisador” (Researcher paternalism), entre os anos 1940 e início dos 1970s, que chamam de “utilitarismo”; 2) Período do “Protecionismo Regulador” (Regulatory proteccionism), entre o início dos anos 1970 e a metade dos 1980s, que denominam de “principialismo”; 3) Período do “Acesso Participante” (Participant access), entre a metade dos anos 1980 e metade dos 1990, referindo-se às teorias dos direitos básicos individuais e do consentimento informado; 4) Período de “Cooperação Comunitária” (Community partnership), a partir da metade dos anos 1990 até hoje, representada por atividades realizadas comunitariamente, em colaboração entre instituições, pessoas e países (27).

Essa sugestão surge muito de acordo com a atual linha de atuação proposta pelo National Institute of Health norte-americano em relação aos ensaios clínicos para países periféricos, a partir da negativa dos EUA em aceitarem a Delaração de Helsinki, em 31 de dezembro de 2004. O país formalizou ao mundo que, a partir daquela data, investigadores estadunidenses e pesquisas patrocinadas por suas empresas deveriam seguir as regras ditadas pelos próprios EUA, com base bas chamadas Guias ICH-GCP (International Conference to the Harmonization – Good Clinical Practices). Essas guias refletem o consenso tríplice ajustado já em 1997 entre Estados Unidos, Japão e também Europa, principais produtores mundiais de medicamentos. Como já foi afirmado, também a versão CIOMS-2002 representa alterações favoráveis a todas essas pressões.

A partir desse período mais recente, os EUA mudaram de estratégia, evitando enfrentamentos internacionais. Agora, promovem frequentes encontros acadêmicos em diferentes países, com o apoio do Fogarty Foundation Center, entidade ligada ao NIH, com o objetivo de capacitar (ou melhor, domesticar…) pesquisadores dos países periféricos para seu modo de enfrentar a ética nos ensaios clínicos, inclusive com independência dos governos nacionais (28). Na América Latina, por exemplo, nos três últimos anos já foram desenvolvidas diversas atividades desse tipo na Argentina, Chile e Venezuela. A estratégia implica em que estes investigadores, devidamente “treinados”, inicialmente passem a fazer parte dos Comitês de Ética em Pesquisa locais e, no futuro, até mesmo de organismos reguladores da matéria em seus governos a nível nacional. Isso já é comum na África.

Dessa maneira, em poucos anos se tornaria real a proposta paradigmática de Emanuel y Grady (27), pois as decisões em relação à ética nos ensaios clínicos em diferentes países se dariam concretamente a partir de tomadas de decisões “societárias” e “comunitárias”. Trata-se, portanto, de uma forma mais sutil de imperialismo moral. Segundo Tealdi (28), em dez anos foi possível treinar 3.600 pessoas somente na América Latina, modificando alguns referenciais básicos da ética em pesquisa para o ano 2010, além de outra revisão da Declaração de Helsinki.

Referências:

27. Emanuel EJ, Grady C. Four paradigms of clinical research and research oversight. Cambridge Quarterly of Healthcare Ethics 2007; 16:82-96.
28. Tealdi JC. Historia y significado de las normas éticas internacionales sobre investigaciones biomédicas. In: Keyeux G, Penchaszadeh V, Saada A. (orgs.). Investigación en seres humanos y políticas de salud pública. Bogotá: UNIBIBLOS – Universidad Nacional de Colombia/Red Latino-Americana y del Caribe de Bioética de UNESCO – REDBIOÉTICA; 2006.

Esta série de artigos tem origem em conferência apresentada na mesa redonda “Libertad y responsabilidad en la investigación”, ocorrida no V Congresso Mundial de Bioética promovido pela Sociedad Internacional de Bioética (SIBI) na cidade de Gijón, Espanha, em maio 2007. O texto apresentado na conferência, publicado aqui em várias partes, saiu também em Cadernos de Saúde Pública, 2008. Volume 24 (10): 2219-2226.