Introdução: “Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado na China de Hoje

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O tema que pretendo discorrer neste trabalho insere-se numa problemática nada nova. Reside na busca por algumas sínteses entre projeto nacional, desenvolvimento e socialismo na China. Duas observações são pertinentes. Primeiramente, dezesseis anos de estudos, três viagens ao país e milhares de conversas com meu orientador permitiu-me ter segurança para apresentarmos algo que urge certa criatividade. Neste trabalho não se observará revisões bibliográficas infindáveis, nem tampouco inúmeras referências bibliográficas de “meio de parágrafo” como forma de assentar determinado argumento. Por exemplo, não é necessária uma leitura completa dos trabalhos de I. Wallerstein para perceber qual sua visão sobre o socialismo. Da mesma forma que não é nas obras políticas de Lênin que se encontrarão respostas para uma “teoria do desenvolvimento em sociedades agrárias”. Propus-me o desafio de me distinguir elaborando uma visão particular dos acontecimentos à luz do materialismo histórico. Sinto-me disposto a colher o ônus e o bônus desta escolha.

Também me coloquei o desafio de, em nenhum momento, colocar um ponto final nesse tema. O conhecimento, a experiência e a serenidade é algo que somente o tempo, a mente aberta e a humildade podem nos proporcionar. Esse assunto não se encerra nesta tese.

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Quais são minhas principais referências? Não se trata de pergunta de difícil resposta. Balizo-me pelo materialismo histórico de Karl Marx, Friedrich Engels, Vladimir Lênin e dos pensadores brasileiros Ignacio Rangel e Armen Mamigonian. Como geógrafo, permito-me não cair na tentação de atribuir a Karl Marx o equívoco de não ter trabalhado com a dita categoria de “espaço”. Atribui-se tal engano aos geógrafos “marxistas” que não conhecem os trabalhos de Marx sobre a Ásia e as regiões coloniais. Tampouco creio que o território seja o motor do processo. O motor do processo é a luta de classes, sendo o território e a divisão social do trabalho as consequências desta luta. Se a luta dos trabalhadores avança, avança também a divisão social do trabalho. Se a correlação de forças entre imperialismo, socialismo e projetos nacionais autônomos desfavorece estes últimos, a divisão social do trabalho estanca e até retrocede. Não cabem invenções nem elucubrações sobre a “desigualdade do território”, como alguns geógrafos propugnam ao analisar a realidade periférica fora de marcos politizados e historicizados (igualando Kirchner, Evo Morales e Obama de acordo com a “desigualdade territorial”). A divisão social do trabalho somente desaparece no comunismo. Daí, trabalharmos a hipótese marxista, que tem na superação da divisão social do trabalho a principal tarefa da transição socialismo/comunismo. Esta definição de transição socialista permeia todo este trabalho.

De Marx e Engels tentei garimpar suas dispersas proposições sobre a transição socialista. É bem verdade que não se aventuraram nesta seara de forma efusiva, mas também é verdade que a teoria da história elaborada pelos dois pensadores nos capacitou a compreender as tendências históricas principais ao entendimento da transição. No pensamento dos fundadores do materialismo histórico observa-se que o socialismo não encerra nenhum sonho de sociedade igualitária. Isso é anticientífico na medida em que os esquemas de distribuição no socialismo ainda estão sob a égide do trabalho e não da necessidade. Busquei-me apropriar da máxima da contradição como o motor do processo para trabalhar o processo de desenvolvimento como algo que surge da necessidade de solucionar problemas que não se encerram por si mesmos, pois o processo é marcado pelo surgimento de outros problemas e outras soluções. Assim, busco-me diferenciar daqueles que colocam excessiva ênfase nas contradições do processo de desenvolvimento na China, bem como não a classificam de “socialista” pela pura existência de desigualdades de diversas montas. A desigualdade social e regional é uma contradição do processo. O que determina, nesse aspecto, o caráter socialista da dinâmica chinesa é saber se esses problemas estão sendo enfrentados ou não.

Socialismo como superação da divisão social do trabalho. Fator interessante para se entender em que estágio de transição se encontra a China. Um país com mais da metade da população vivendo no campo e diferentes formas de produção convivendo entre si, formando um todo heterogêneo. Assim transito de Marx e Engels para Lênin, tentando resgatar a essência da produção de Lênin sobre a transição em formações sociais periféricas. Maximizar a produção privada camponesa, centralizar a grande produção sob formas socialistas de propriedade e indigenizar o que de mais avançado o mundo exterior e capitalista produziram são alguns itens. A especialização da agricultura e da indústria mediada pelo avanço da técnica conforma uma divisão social do trabalho em plena transição. Digo transição, neste caso, para tratar – na tese – a necessária correspondência entre diferentes níveis de transição que podem afetar uma formação social. O Lênin da Nova Política Econômica (NEP) não nasceu de um passe de mágica; este Lênin é resultado de sua própria produção teórica (última década do século XIX) voltada à compreensão do mundo camponês russo. Lênin percebe na pequena produção mercantil uma fonte de ociosidade produtiva a ser amplamente explorada no rumo da acumulação. Eis o “x” que liga a Rússia de Lênin à China de Deng Xiaoping. É o “x” inclusive para compreender o imperioso da convivência de diferentes formas de propriedade num socialismo em estágio inicial.

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O senso comum alimenta teses de restauração capitalista na China a partir do avanço da propriedade privada e do capital estrangeiro. Por outro lado, ainda não tornou-se uma rotina metodológica classificar a China como uma formação social complexa. Afinal de contas (não poucas vezes neste trabalho me remeterei a este termo), o que significa isso? Significa muito, significa extrair o que de melhor Lênin e Ignacio Rangel trabalharam em seus tempos. A transição na Rússia deveria obedecer a velocidades distintas diante de diferentes modos de produção que conviviam em uma unidade de contrários. Uma formação social complexa é aquela que se comporta de forma ativa diante da conjuntura econômica internacional e se vê diante de diferentes formas de produção interna que transitam de acordo com o contato entre as leis econômicas da própria formação social com as leis econômicas do centro do sistema em seu tempo. A grande indústria pode ser produto do financiamento externo e a pequena produção mercantil pode se transformar em indústria em concordância com os impulsos da superestrutura. A economia de mercado, como produto histórico das relações entre homem e natureza, é o termômetro do processo de desenvolvimento a partir do “desmanche” da economia voltada à subsistência (economia natural) e a entrada de seus integrantes na lógica da especialização, da concorrência, da economia de mercado em si. Sob o socialismo, a lei da correspondência entre superestrutura e base econômica deve obedecer a esta dinâmica.

Assim Lênin elencou, em seu tempo, as diferentes formações econômico-sociais presentes na grande Rússia. A vasta China e a complexidade de sua formação em muito coincidem com a Rússia. Neste caso, a indústria socializada deve passar por um largo processo de concentração e centralização, acompanhada pelo controle dos instrumentos estratégicos do processo de acumulação pelo Estado de novo tipo, pela formação de um vasto esquema de intermediação financeira. À propriedade privada, em condições normais de tempo e temperatura, deve se deixar cumprir seu papel histórico estabelecido não pela vontade humana, mas, principalmente, pelas leis da sociedade e da natureza.

O caráter socialista de uma formação social complexa não reside no tamanho e na extensão da propriedade privada e sim no que é dominante: caráter de classe do poder político, o controle dos meios estratégicos de produção e a detenção dos instrumentos estratégicos do processo de acumulação (câmbio, crédito, juros e sistema financeiro), além do monopólio sobre o comércio exterior.

Ignacio Rangel desenvolveu as iéias de Lênin neste quesito. Sua visão dialética do processo de desenvolvimento municiou-me para a percepção de pelo menos três relações que foram centrais no desenvolvimento desta tese. A primeira, entre a historicidade intrínseca e o papel do privado e do estatal no processo de desenvolvimento. Além disso, a própria relação entre mercado e planejamento como duas categorias que em tese não se anulam. O problema da propriedade privada não deve ser vista sob marcos morais, e sim históricos. Outra relação está em decifrar qual é a variável estratégica de um processo de desenvolvimento numa formação periférica. Podem existir mais de uma, porém o papel do comércio exterior é algo a ser destacado. O contato entre o externo e o interno determina a própria lógica do comportamento das diferentes formações econômico-sociais numa mesma formação social. Esse é um aspecto desta relação.

Outro ângulo consiste na lógica dos ciclos econômicos. A expansão do comércio exterior traz consequências à formação de reservas em moeda estrangeira, que por sua vez delimita o alcance da taxa de juros e sua atratividade ao crédito interno. A retração externa leva a um processo de centralização e concentração do capital estatal interno e à “liberação” de novas formas de acumulação fora da propriedade estatal. Na China esse movimento explica tanto a formação de 149 conglomerados estatais quanto a liberalização da propriedade privada. Ambas as medidas foram colocadas em prática nos albores da crise financeira asiática de 1997. A acumulação capitalista e seus ciclos guardam grande importância na descoberta dos caminhos chineses. Afinal, é sob leis econômicas, regulamentações comerciais e uma conjuntura amplamente dominada pelo modo de produção capitalista que a China busca se equilibrar e se desenvolver.

Ignacio Rangel gostava sempre de chamar a atenção para a “ordem no caos” representada pelo processo de desenvolvimento num país complexo como o Brasil. É interessante notar que, em minha primeira viagem à China, conversando com alguns estrangeiros, muitos deles chamavam a atenção para o caos no país. “Caos” esse representado por milhares de obras públicas nas cidades, pelo interior transitando do século XVII para o século XX a passos lentos e pelo esplendor magnetizante da Zona de Pudong em Xangai. Em meio a esta confusão de opiniões, ainda sobrava divagações sobre a “democracia”, a “liberdade de expressão” e os “direitos humanos”. Confesso que até eu me sentia confuso. Acostumado com cidades do “mundo livre” como São Paulo (com a “democracia” da ROTA) e Rio de Janeiro (com a “democracia” do BOPE) e até umas áreas em Paris (democracia do isolamento dos negros e muçulmanos), não conseguia entender uma “ditadura feroz” com o menor número de policiais para cada 100.000 habitantes (Pequim) no mundo, nem muito menos o fato de os policiais não andarem armados. O check-out em aeroportos chineses demoram pelo menos dez vezes menos o tempo que se passa, para o mesmo fim, no Aeroporto Charles de Gaulle.

Das insistentes leituras de Rangel, das experiências particulares vividas pelo país e na leitura de dados consegui chegar à primeira conclusão mais séria desta tese: as causas do crescimento econômico chinês devem ser buscados não somente no que existe de padrão no mundo, mas também na análise da complexidade da formação social chinesa, expressada em diferentes formas de produção no mesmo território.

Uma complexidade como esta pressupõe crescimento econômico como resultado de alguns fatores. Entre eles, a necessidade da maximização do mercado e sua capacidade de alocar recursos; da maximização também do planejamento, que ocupa o espaço reservado a pensar o estratégico, os grandes empreendimentos, a gestão macroeconômica capaz de gestar movimentos imediatos e futuros da grande economia, agora sob a égide de um poderio financeiro, como já exposto, jamais sonhado pelas antigas gerações revolucionárias. O crescimento chinês é resultado também da maximização do potencial privado, da “permissão” ao cumprimento de seu papel delegado pela história. O privado é ancilar à grande produção socializada e estatal. Trata-se de um setor-chave para as necessárias aberturas de novos campos de investimentos capazes de criar empregos e manter a estabilidade social. O crescimento desse grande país não poderia deixar de estar presente fora da maximização do papel indutor do Estado. A grande empresa é a grande expressão do desenvolvimento capitalista, e também deve ser do desenvolvimento socialista afiançado por um poder político de novo tipo e por um sistema financeiro cada vez mais profundo e complexo.

Ouso definir a formatação de uma base econômica de tipo socialista em etapa inicial como a síntese dos elementos acima elencados.

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Num outro ponto reside, de forma clara, a herança de meu orientador Armen Mamigonian. De forma objetiva, busco desenvolver o que ele tem de melhor: sua capacidade particular de enxergar um movimento dentro de um escopo maior, a partir de uma visão de processo histórico. Karl Marx dizia que a única ciência que ele conhecia era a história. O jovem Marx herda de Hegel a noção de processo. A noção de processo ganha maturidade e grau de categoria filosófica central ao método do materialismo histórico. Transição deixou de ser um mero conceito para também transformar-se em categoria. Karl Marx sintetiza todos esses avanços em sua mais completa obra (escrita juntamente com Engels), A Ideologia Alemã. Obra esta em que as linhas mestras do materialismo histórico e dialético são pela primeira vez expostas.

É neste livro que se inaugura uma visão de processo histórico. A visão de processo histórico – do estudo das relações entre homem e natureza e entre os homens com eles mesmos – é a essência do método e da visão marxista de mundo. Seu aperfeiçoamento é a maior contribuição de Mamigonian ao pensamento social brasileiro. Em minha opinião, clara neste trabalho, a visão de processo histórico é o passo à frente, a superação da “periodização”, tão cara aos neopositivistas e “fotógrafos” da realidade que lhes cabe. Tal afirmação pode parecer confusa, mas não é. De concreto esta minha opinião guarda sentido na rotineira separação (“periodização”) que se faz entre a China de 1949 e 1978 e a China nascida por meio das reformas de Deng Xiaoping, quando na verdade se trata de dois processos históricos que se imbricam numa dialética de continuidade e ruptura que escapa ao alcance de jornalistas e “especialistas” em China. Chamo sempre a atenção de que não se compreende o “socialismo de mercado” chinês fora dos marcos da compreensão do modo de produção asiático e suas diferenças com o modo de produção escravista e mesmo o modo de produção germânico.

Acredito que se guarda certa contradição ao se trabalhar esquemas “periodizantes” com categorias de “tempo”, “espaço” e “totalidade”. A subjetividade do pesquisador não deve estar presa a esquemas de conformação da realidade. A subjetividade do pesquisador deve ser preparada para a “análise concreta da situação concreta” capaz de permitir a elaborar o novo e a pensar o futuro; pensar a grande estratégia a partir de tendências históricas consagradas e não partindo de milhares de citações como forma de dar certa segurança ao argumento. Somente uma visão de processo histórico pode auferir segurança intelectual e teórica ao enfrentamento do presente e do futuro.

A visão de processo histórico não é um fim em si mesmo. Só se aprende exercitando e o exercício se dá a partir da utilização de pelo menos algumas categorias-chave do materialismo histórico: formação social e modo de produção; forças produtivas e relações de produção; superestrutura e base econômica. A análise da formação social, de seus limites e potencialidades capacita-nos a compreender os processos e transições e a convivência entre o “velho” e o “novo” numa unidade dialética e histórica de pura reflexão e sofisticação do pensamento. O termo “formação” está diretamente relacionado a “desenvolvimento”; desenvolvimento este que se dá no território, daí a necessária compreensão tanto da geografia quando do marxismo como ciências que estudam as relações entre homem e natureza e dos homens consigo mesmos. As relações entre homem e natureza redundam no desenvolvimento e acumulação de forças produtivas. As relações entre os homens são sinônimos de relações de produção que se transformam ao longo do tempo. As revoluções sociais são o elo entre o desenvolvimento das forças produtivas em contradição com as relações de produção. As forças produtivas sintetizam a base econômica da sociedade, enquanto as relações de produção guardam expressão máxima na superestrutura de poder estatal. Por mais citações e teorizações que existam em torno do método da “periodização”, acredito que a simples e pura “periodização” não abarca este nível de complexidade.

Geografia e história são mais que ciências correlatas. Formam um todo único. Sempre existe a necessidade do salto metodológico. Algo que se confunde com ousadia intelectual e compromisso político. Assim, geografia e história só fazem sentido no “casamento” com a ciência econômica. A economia é a determinante em primeiro grau de todo o processo. Assim como a economia só tem sentido com sua transmutação em “Economia Política”, a geografia e a história só fazem sentido na priorização em “Geografia Econômica” e em “História Econômica”, respectivamente.

De concreto, isso significa que não faz sentido trabalhar a história e o desenvolvimento de um determinado território sem compreender o papel de uma justa política cambial e de juros no desenvolvimento desse território. Discutir planejamento territorial sem explicitar os meios e elementos do financiamento deste planejamento tem sido um exercício de diletantismo muito caro aos geógrafos de hoje, muitos deles mais preocupados em discussões epistemológicas sem fim do que na utilização do trabalho intelectual necessário à transformação da realidade.

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Este trabalho contém quatro partes. Da primeira à terceira parte (1, O método e a busca do sentido histórico da transição e do “socialismo de mercado”; 2, Estado, desenvolvimento e a dinâmica da formação social chinesa; 3, O desenvolvimentismo chinês com características socialistas), fez-se necessário todo um apanhado teórico/histórico e metodológico que desse conta de minha visão particular sobre o processo chinês. Em primeiro plano, demarco fronteira metodológica com os postulados neopositivistas. Neste caso, não se fez suficiente demonstrar as debilidades dessa forma de se encarar a ciência, sendo preciso também expor as características de nossa opção teórica/metodologia. Porém, a demarcação desta fronteira não se dá fora de algo mais profundo. Nosso intento foi o de expor uma visão muito particular e realista sobre o próprio socialismo. O projeto nacional chinês emana da necessidade de uma visão mais objetiva e histórica do próprio socialismo. Desta conclusão, nosso ponto de partida foi a assertiva para quem a Economia Política não é a mesma para todos os países (Engels). Logo, a investigação de qualquer realidade concreta deve se pautar – em toda sua extensão – na formação social. Não uma ideia de formação social cara à 2ª Internacional, algo que interliga cada formação a uma ideia estanque de modo de produção. Formação social, nesse caso, transforma-se em teoria e método na medida em que abarca sob sua categorização as múltiplas determinações do concreto (geografia, economia, direito, natureza, filosofia etc.). Não existe Economia Política consequente fora do estudo radical da formação social. A análise do processo de desenvolvimento é – em primeira estância – a análise da história do processo de desenvolvimento. Assim procuramos acumular também no sentido de colocar a invalidade teórica de modismos como o “sistema-mundo” de Immanuel Wallerstein, tão caro também a Caio Prado Jr, Paul Sweezy, Istvan Mészáros e àqueles que buscam enterrar os debates sobre não somente o socialismo, mas também os relacionados à formação social brasileira. Desta forma, investigar os meandros da dinâmica da formação social chinesa nos instrumentaliza de instrumentos poderosos à compreensão de uma realidade tão peculiar.

Se as relações de produção e as forças produtivas são produtos do tempo e do espaço, logo como expressões deste mesmo tempo e espaço também devem ser observadas categorias como o mercado e a propriedade privada. Assim como o próprio socialismo. São três categorias que devem ser vistas à luz da história. Somente o desenvolvimento das forças produtivas pode dar prazo de validade histórica ao mercado e à propriedade privada. A questão não é moral, nem a de busca de um mundo perfeito, do “homem novo”. O desenvolvimento das forças produtivas enceta não um mundo longe de contradições, mas relações sociais que denodam a própria superação da pré-história da humanidade. E o mercado e a propriedade privada como marcos históricos devem estar a serviço não somente do capitalismo, mas também do socialismo. O contrário disto é pura ladainha religiosa, temperada pela busca de uma sociedade jamais sonhada pelos clássicos do materialismo histórico.

Qual Estado que tem dado cabo de um projeto nacional capaz de mudar qualitativamente a correlação de forças no mundo com seu desenvolvimento? Trata-se de uma razoável questão que tentamos responder neste trabalho. O Estado chinês reinaugurado em 1949 não é um produto de si mesmo ou mesmo da divindade de um homem. É um Estado construído ao longo de pelo menos 2.500 anos, fruto de uma precoce economia de mercado e causa e consequência de uma divisão social do trabalho que desde então alçava as massas camponesas ao leme do curso político. Um Estado que surge diante de desafios que a própria geografia o impôs. Esta mesma geografia que impele a moderna República Popular a enfrentar o nó górdio de vastas regiões do país ainda atreladas à perificidade e ao atraso. Condições tais que estão sendo objeto de amplo enfrentamento. Enfrentamento que se dá com o auxílio da técnica, do moderno poderio financeiro chinês e da disposição política de colocar o país na vanguarda do século presente.

Esta mesma formação social cujos limites só seriam postos à prova com a ocupação estrangeira, buscou soluções aos seus problemas de coesão estatal e formatação de sua superestrutura em formas de administração que seriam adotadas, na Europa, somente em meados do século XIX. É irresistível perceber que o moderno planejamento chinês e o processo de formação dos quadros governantes de seu Estado guardam muito da minúcia e da engenharia de grandes obras milenares e de um nada rústico planejamento urbano. Planejamento este que se mostrou capaz de projetar uma cidade como Pequim na mesma época histórica em que a Europa se afogava em sangue de guerras religiosas. O projeto nacional, o desenvolvimentismo e o socialismo com características chinesas têm na essência a milenaridade do Império Chinês.

Como poderão perceber, as três primeiras partes do trabalho estão amplamente dedicadas a uma discussão de fundo do socialismo, da formação social chinesa e da dinâmica desta formação sob os auspícios do desenvolvimento com características chinesas. Falar em desenvolvimentismo chinês deve ser seguida de uma teorização também da dinâmica das diferentes formações econômico-sociais em conflito e suas relações no território. A transformação do país se acentua com a sua entrada na Divisão Internacional do Trabalho, o que faz com que o comércio exterior passasse a ser a variável estratégica do processo. Variável esta capaz de dar lubrificação para que as “transições dentro da grande transição” ocorra em um ritmo e velocidade pautado pelo Estado. O centro desta transição interna está na transferência de recursos para a economia de mercado. Esta transição de recursos não se restringe à questão financeira, mas principalmente de pessoas que deixam a economia de subsistência para adentrarem na produção mercantil e/ou socializada. O processo de desenvolvimento tem como ponto de avaliação inicial a dinâmica da entrada ou saída de pessoas na economia de mercado.
A transição para o socialismo, do ponto de vista interno, mede-se pela entrada de contingentes de trabalhadores na economia socializada. A economia socialista de mercado pode ser vista como uma lei de correspondência entre um Estado que enceta a transição ao socialismo com uma base econômica onde coexistem diversas formas de produção; diversas formações econômico-sociais num imenso e variado território.

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Ênfase no teórico ou ênfase no empírico? Este trabalho dá margem para ambas as interpretações. Minha tentativa foi de na metade do trabalho, que vai da parte 1 a 3 trabalhar fortemente questões mais relacionadas à teoria e a história. Mas, o empírico – mesmo nesta fase do trabalho – foi ganhando peso cada vez menos relativo e cada vez mais absoluto. É como se fosse uma transição em que dois elementos convivem até chegar ao ponto em que a necessidade faz um deles sobressair. Foi assim que chegamos à quarta parte do trabalho (“O desenvolvimento e suas faces na China”) totalmente voltado à exposição e análise de dados sob a forma de gráficos, tabelas e mapas. Foi o momento em que eu tive de demonstrar a forma concreta de minhas migrações abstratas.

Como se conforma a base econômica de uma sociedade em transição ao socialismo, mas com fortes traços de modos de produção, nas palavras de Ignacio Rangel, “contemporâneos, mas não coetâneos”? Eis uma questão que tende a se resolver com a apresentação do papel do Estado e da iniciativa privada no processo de crescimento. Uma questão que chama outra. Por exemplo, no capitalismo o centro de gravidade do processo de acumulação está na simbiose da grande empresa privada e na grande finança. Tive de demonstrar – nesta quarta parte – que além do papel gerenciador do Estado, o processo em si gira em torno de 149 conglomerados estatais situados em setores estratégicos da economia, além da cada vez mais complexa rede de financiamento público e privado sob o controle de grandes bancos estatais. Tentei demonstrar que no capitalismo existe uma tendência objetiva do processo de inovação tecnológica ser parte do capital constante da grande empresa privada. Na China não é diferente, porém, são as empresas estatais o centro de captação e radiação do processo de inovação.

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Existem dois processos históricos que se imbricam. É muito recorrente neste trabalho expor que a siderurgia está para o “modelo soviético” da mesma forma que o sistema financeiro está para o socialismo de mercado na China. A implantação da siderurgia correspondeu à afirmação do desenvolvimento e da independência nacional num certo momento histórico. É a chave da compreensão do que chamamos de “via prussiana” de tipo socialista. A dita revolução pelo alto, da qual a siderurgia é uma forte expressão. Nos tempos atuais, a consagração de um sistema de intermediação financeira é o imperativo para qualquer projeto nacional de desenvolvimento, seja ele socialista, ou capitalista. A política de Reforma e Abertura em curso desde 1978 é o processo histórico em que se caminha da formação de empresários a partir da permissão da acumulação camponesa (“via dos produtores” ou “via americana”) para a formação de um sistema financeiro, produto da fusão do banco com a siderurgia formada nos tempos de Mao.

Quando trabalho o empírico na quarta parte do trabalho, estou querendo demonstrar que o atual processo de crescimento chinês está cimentada num poderoso sistema financeiro. O futuro de temas que vão desde a inserção externa chinesa, a solução dos impasses agrários – impasses tais totalmente relacionado com uma base financeira sólida que capacite a transição da pequena produção mercantil para formas superiores de produção (cooperativas) – a moderna questão regional e os óbices ambientais – estão amplamente relacionadas com a adoção de novas e superiores formas de planejamento. Formas novas tais que se assentam num poderio financeiro jamais sonhado pelas gerações revolucionárias anteriores. Eis o novo no processo chinês (e na própria história do socialismo) amplamente debatido na quarta parte do trabalho. Não se compreende o “socialismo do século XXI” fora do escopo da necessidade de se dotar um sistema financeiro nacional capaz de dar solução aos imensos desafios impostos pela realidade. Trabalhar estas questões sob a máxima da relação entre sistema financeiro e soberania no século XXI é o objetivo da quarta parte do trabalho.

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E o futuro? O que dizer do futuro? É na resposta a estas questões que me remeto ao segundo processo histórico indicado acima. Trata- se de algo análogo com o processo de formação do poderio norte-americano no século XX. O poderio norte-americano assenta-se no processo histórico de formação de uma imensa economia continental na América do Norte na segunda metade século XIX. A Pax Americana e o moderno imperialismo são fruto deste processo que se cristaliza com um capitalismo centrado em grandes oligopólios industriais e financeiros. Até hoje e por muito tempo estaremos condenados a curtir os efeitos deste processo.

Remetendo-me ao exemplo histórico da formação da economia continental norte-americana e seu papel na consolidação do capitalismo em escala internacional, pode-se dizer que o século XXI – e sua história – trará em seu bojo transformações qualitativas que incidem diretamente no processo de transição capitalismo – socialismo em escala global. Este segundo processo histórico a que me refiro se baseará em dois fatos históricos interdependentes: o primeiro na transformação da China em uma potência financeira em escala global. Se a indústria foi fator de concorrência entre imperialismo e projetos nacionais autônomos (socialistas e capitalistas) no século XX e o próprio capital financeiro capitalista foi a variável que desequilibrou o jogo, é na formação de uma potência financeira capaz de superar o legado de Bretton Woods (FMI, Banco Mundial) sob a forma de imensos investimentos chineses na periferia, que se conformarão como uma das bases materiais da transição. Um país das dimensões da China, necessariamente, caminha para ser um polo gravitacional, na mesma proporção que um dia Marx se referiu a transição mundial ao socialismo pela gravitação do mundo em torno da Alemanha, França e Inglaterra. O futuro da periferia (e da solução de diferentes “questões nacionais”) está nesse processo. Processo não mais ligado a laços ideológicos e políticos que se fragilizam diante da primeira investida financeira do imperialismo. Este processo corre em paralelo com a perda de poderio, inclusive moral, dos Estados Unidos conforme a própria crise financeira em curso tratou de demonstrar. Ao contrário da China que se fortaleceu sobremaneira neste processo.

O segundo fato está no recente processo de formação de uma economia continental chinesa; projeto acelerado em meio às duas crises financeiras: a de 1997 na Ásia e a presente focada nos Estados Unidos e na Europa. Está inserido neste processo a base territorial da transição capitalismo – socialismo no mundo. Com fronteiras que se estendem do Oriente Médio ao Pacífico, da Ásia central até a Índia, da Rússia ao Vietnã e com a reedição – sob a forma de trem-bala – da Rota da Seda, a China, de forma evidente, é o centro. A robustez de seu mercado interno garante mercado exportador para seus vizinhos. Na Ásia já ocorrem mais transações comerciais que entre os países do Atlântico Norte. Imaginemos o impacto de uma economia continental unificada na China nas próximas três décadas…

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É sobre a construção destes dois processos simultâneos que me proponho a debater neste trabalho. Eis a minha contribuição particular para a sociedade e a ciência voltada para a transformação da realidade.