Até aqui, nada de “R2P” (‘responsabilidade de proteger’). Nada de resolução da ONU. Nada de zona aérea de exclusão. Nada de aviões-robôs Predator armados. Nada de Tomahawks. Nada de torpedeiros C-130. Nada de imperialismo humanitário.

Mas, até aqui, há manifestantes assassinados; um ditador recusa-se a renunciar; a al-Qaeda festeja – aliás, abertamente; a contraguerrilha rola; há muitos agentes da CIA ‘em campo’; e a guerra civil se aprofunda. Bem vindos ao estranho caso do Iêmen que “ainda não está preparado” para o imperialismo humanitário.

O mantra do presidente Obama dos EUA para a Líbia é “Muammar Gaddafi tem de sair”. Robert “El Supremo do Pentágono” Gates, interrogado sobre Ali Abdullah Saleh, o Gaddafi-do-Iêmen, respondeu que “Não me parece adequado falar sobre assuntos internos do Iêmen”.

Os fatos mostram exatamente o oposto disso. O primeiro presidente afro-norte-americano – laureado com o Prêmio Nobel da Paz – carrega hoje também o vergonhoso título de ser o único presidente dos EUA que iniciou guerra em solo africano contra nação africana. Simultaneamente, lançou sua campanha de reeleição, que deverá consumir nada menos que nu e cru 1 bilhão de dólares.

Simultaneamente também, Saleh continua a matar seu próprio povo e a ferir centenas – como aconteceu na cidade de Taizz ontem, 2ª-feira. Obama tinha de fazer alguma coisa. Então “silenciosamente mudou de posição”, nas exatas palavras do New York Times; o novo mantra é “Saleh tem de sair”. Retórica de contorcionismo sugere que Washington agora quer que Saleh saia, porque chegou à conclusão que seus dias de governo acabaram-se, apesar de há apenas dois meses, matança incluída, Saleh ainda gozar de total apoio dos EUA.

O nosso safado esperto

O festivo congraçamento que houve entre o governo de Saleh e as forças especiais do contraterrorismo da era George W Bush – cresceu muito no governo Obama. Saleh é o fornecedor local contratado. O alvo é a Al-Qaeda na Península Arábica, AQPA (ing. Al-Qaeda in the Arabic Peninsula (AQAP)], frequentemente atacada por surtos de “ação militar cinética” (no jargão da Casa Branca). Os “danos colaterais” podem já ter chegado às primeiras algumas centenas.

Avaliação de março de 2011 do grupo Glevum Stability descobriu que nada menos de 96% dos cidadãos do Iêmen entendem que “o ocidente está em guerra contra o Islã”; só 4% aprovam o capítulo que lhes coube da “guerra ao terror” dos EUA, na terra deles; e a maioria entende que a Al-Qaeda é arrastada para essa guerra “para se defender”. Apesar disso tudo, no que tenha a ver com Washington, o Iêmen só interessa como agente de contraterrorismo – e não interessa o que pensem os nativos.

Há pelo menos 60 milhões de armas com poder letal no Iêmen. O levante dos jovens iemenitas foi modelo de militância pacifista. Saleh, modelo de ditador árabe, decidiu que os manifestantes seriam traficantes de drogas, lavadores de dinheiro e “uma pequena minoria”.

O norte e o sul do Iêmen foram unificados em 1994. Saleh delega o controle do país e vários xeques tribais cuja lealdade é precária, para dizer o mínimo. A Arábia Saudita semeia e colhe a cizânia entre eles, subornando todos à vista e financiando o wahhabismo linha-mais-dura. A Al-Qaeda na Península Arábica é pequeno detalhe numa paisagem política complexa.

No norte, os xiitas zeydistas lutam por autonomia. A tática de Saleh é bombardear as cidades, obrigar centenas de milhares de civis a fugir de casa, e atacá-los pelas estradas. Não, não, ninguém cogita de detê-lo com zonas aéreas de exclusão. No sul, um movimento separatista pacífico que reivindicava mais igualdade foi selvagemente esmagado. Muitos dos sobreviventes abraçaram a via da luta armada, em grupos guerrilheiros.

Saleh foi esperto, ao instrumentalizar a Al-Qaeda na Península Arábica contra seus inimigos domésticos, ao mesmo tempo em que também usou-a para extorquir armas, inteligência e centenas de milhões de dólares dos EUA. Até agora, vinha dando certo. Obama aumentou a “assistência militar” para o Iêmen, de $67 milhões em 2009, para $150 milhões em 2010.

WikiLeaks publicou grande quantidade de provas dos negócios sujos entre Washington e Saleh – inclusive mentiras do general David Petraeus ao povo do Iêmen sobre quem andava matando civis iemenitas durante a “guerra ao terror”. Mas Saleh é tratado como “um dos nossos safados espertos” – diferente do hiperdemonizado terrorista/viciado/psicopata/bandido Gaddafi. Saleh é tão safado-esperto, que mata zeydis xiitas, iemenitas no sul, jornalistas e jovens em manifestações pacíficas, e sempre salva a sua galinha dos ovos de ouro: a Al-Qaeda na Península Arábica!

Agora que Obama resolveu que Saleh tem de sair, ganha quem apostar que se inventará um cenário no qual a CIA usará a Al-Qaeda na Península Arábica contra Saleh. Objetivo: balcanizar o Iêmen. É onde entra em cena o legado de Said al-Shihri – saudita libertado de Guantánamo e mandado para o Iêmen pelo governo Bush, e assassinado dia 12 de fevereiro. Também serão úteis os serviços de Anwar Awlaki, nascido nos EUA e agente duplo da CIA do tipo ‘clássico’.

A CIA já está instrumentalizando a Al-Qaeda no Maghreb Islãmico (AQMI) [ing. al-Qaeda in the Islamic Maghreb (AQIM)] na Líbia. Com ou sem Gaddafi no poder, e como parte de uma Líbia balkanizada, a AQMI já é fator de desestabilização no grande quadro. O modus operandi é o mesmo: a CIA/Pentágono usa o espectro da Al-Qaeda para justificar uma infinita guerra ao terror, tanto no norte da África como na Península Arábica.

Por sua parte, a Casa de Saud tem lutado com unhas e dentes para que Saleh permaneça no poder: Saleh é tão perfeito lacaio da Casa de Saud quanto os al-Khalifas do Bahrain. Mas, sem o apoio do governo Obama, o máximo que a Casa de Saud pode esperar são as velhas “estabilidade” e “transição suave do poder”, de sempre – com algum general amigo da Arábia Saudita posto no poder no Iêmen. A Arábia Saudita deseja “golpe militar suave”. Mas não acharia absolutamente ruim que lá ficasse, como novo líder, o comandante linha dura major-general Ali Mohsin Saleh Ahmar.

Após ondas de defecções políticas, ministeriais, embaixadoriais e militares, das duas uma: ou Saleh sai, ou é a guerra civil (fiel ao script, Saleh diz que se ficar, evita-se a guerra civil). O novo governo em Sana'a implantou estado de emergência. Saleh talvez dure ainda um pouco mais – porque ainda conta com a Guarda Republicana, as Forças Especiais e segurança interna comandada por seu filho e sobrinhos.
A coalizão de partidos de oposição (ing. Joint Meeting Parties, JMP) posa agora como representante das massas nas ruas, apesar de sempre ter sido linha de apoio de Saleh. Verdade é que as elites do poder no Iêmen cooptaram a revolução pacífica. A única coisa absolutamente proibida é qualquer via que leve a qualquer tipo de democracia, exatamente o que o povo do Iêmen deseja, aspiração pela qual luta – e morre – nas ruas.

Os protestos no Iêmen começaram dia 11/2 com menos de 200 estudantes da universidade de Sana'a e jovens ativistas e só duas mulheres. Foi quando os xiitas zeydis do norte decidiram engajar-se; e os divisionistas do sul suspenderam a briga local e passaram a exigir suqut al nidham (“a queda do regime”), e a palavra de ordem ecoou em todo o mundo árabe.

Como o cientista político iemenita Abdulghani al Iryani disse a Nir Rosen, “Nós antes nunca havíamos visto mobilizações de rua (…). Antes da Tunísia, a oposição só reunia 200 pessoas. Depois da Tunísia, apareceram milhares de pessoas. Depois do Egito, foi uma avalanche. Há uma nova avaliação do poder coletivo. O que o establishment político formal não conseguiu fazer, reunir multidões nas ruas, os protestos dos jovens fizeram com grande sucesso” (18/3/2011, Jadaliyya) (http://www.jadaliyya.com/pages/index/935/how-it-started-in-yemen_from-tahrir-to-taghyir). E pedem reformas constitucionais e nova legislação eleitoral.

E quanto à al-Qaeda?

A indústria norte-americana da “guerra ao terror” – incluída a imprensa-empresa – considera a Al-Qaeda tão letal quanto um complô de Guerras das Estrela, que estaria em processo de organização nesse derradeiro delírio do orientalismo que são “os perigosos desertos e montanhas do Iêmen”.

Mas a Al-Qaeda na Península Ibérica é piada. Seu maior sucesso é um fracassado homem da bomba na cueca e um pacote-bomba que, sim, deu chabu. Até Saleh sabe que a Al-Qaeda na Península Ibérica é piada – movimento absolutamente marginal, não só no Iêmen mas em todo o Oriente Médio. A real razão pela qual os EUA está no Iêmen é que o país tem localização supremamente estratégica – entre a Arábia Saudita, o Mar Vermelho e Golfo de Aden, na encruzilhada entre o Oriente Médio e o Chifre da África.

A viciosa contrarrevolução árabe de 2011 prossegue por suas trilhas misteriosas. A Turquia e os países BRIC estão perplexos, vendo que os EUA começa agora a armar os “rebeldes” líbios, infestados de militantes da Al-Qaeda no Maghreb… Parece que já fizeram chover nos cofres dos “rebeldes” cerca de $32 bilhões dos fundos líbios congelados, além de porcentagem nos futuros negócios de petróleo.

E por falar no Club Med(iterrâneo) de Obama: nos governos Bush, a Al-Qaeda foi usada como perfeito pretexto para bombardeios seletivos e guerras preventivas. Agora, no governo Obama, a Al-Qaeda (seja AQ na Península Arábica, seja AQ no Maghreb) está sendo usada para balkanizar alguns países, facilitando a quebra da unidade territorial ao longo de linhas já existentes, tribais, sectárias ou neodemarcadas por diferentes grupos de interesses criminosos.

O fantasma de Osama bin Laden continua a pairar como gato Cheshire que-ri. A franquia “al-Qaeda” está em pleno progresso, como jamais antes. Talvez, em breve, volte a reaparecer no jogo exatamente como foi quando nasceu: exército de guerrilheiros armados pela CIA. Não há melhor negócio que o negócio da guerra perpétua.

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Fonte: Asia Times Online

http://www.atimes.com/atimes/Middle_East/MD06Ak01.html

Ver também

“O perigoso jogo dos EUA no Iêmen”, Jeremy Scahill, The Nation, 3/4/2011,

http://redecastorphoto.blogspot.com/2011/04/o-perigoso-jogo-dos-eua-no-iemen.html (traduzido).

Tradução: Vila Vudu