O processo político desencadeado pelas últimas três eleições nacionais possibilitou derrotar democrática e sistematicamente o receituário neoliberal que dominou o Brasil desde o final do governo Sarney (19850-1990), passando pelos governos de Fernando Collor (1990-1992) e FHC (1995-2002). Assim, desde 2003, as ações reunidas em torno do Consenso de Washington, que orientaram as políticas públicas no país, como no caso da liberalização da competição e da desregulamentação do trabalho, foram sendo afastadas da agenda das políticas econômicas e sociais.

Em grande medida, a crise internacional de 2008 terminou por apontar não apenas para os limites das políticas neoliberais como também para a regressão estabelecida ao mundo do trabalho. Frente à grave crise global, as políticas públicas anticíclicas adotadas permitiram ao Brasil continuar seguindo na direção contrária ao originalmente perseguido desde o final da década de 1980.

A estratificação social renovada aponta para novas atitudes em torno da coesão e polarização no interior da sociedade

Durante as duas décadas de orientação neoliberal, o país acumulou retrocessos significativos. Mesmo o avanço alcançado pela estabilização monetária desde o Plano Real resultou tardio e incompleto. Após mais de quatro anos de experimentalismo neoliberal, o país foi um dos últimos a ter superado a fase de altas taxas de inflação, uma vez que desde o início dos anos 1990 ela abandonou o alto patamar registrado nas décadas de 1970 e 1980. Ademais, o controle inflacionário desde o segundo semestre de 1994 demonstrou ser insuficiente para permitir o retorno – pelo menos – do crescimento econômico, que permaneceu contido e extremamente vulnerável, com perversos efeitos sociais.

No ano de 2000, por exemplo, a economia brasileira ocupou o posto de 13ª mais importante do mundo e o 3º lugar no ranking do desemprego global, enquanto em 1980 era 8ª economia do mundo e situava-se na 13ª posição em quantidade de desempregados, não obstante possuir a 5ª maior população do planeta. A participação do rendimento do trabalho, que era a metade da renda nacional, baixou para menos de 40% em 2000, enquanto a renda dos proprietários (lucros, juros, renda da terra e aluguéis) aproximava-se dos 2/3 do Produto Interno Bruto (PIB) ante 50% representado no final da década de 1970.

Uma vez abandonada a perspectiva neoliberal, o Brasil passou a perseguir outra trajetória. A situação mais recente reposiciona o país na 7ª posição de importância mundial, com sinais crescentes e inequívocos de escassez de mão de obra qualificada e bem menor desemprego. O rendimento do trabalho recupera sua importância relativa, representando algo próximo de 45% da renda nacional. Enquanto na década de 2000 foram gerados 21 milhões de postos de trabalho, os anos 1990 registraram o saldo de apenas 11 milhões. Ou seja, para cada ocupação aberta na última década do século 20, praticamente duas eram criadas nos anos 2000. Para além da quantidade superior das vagas abertas, registra-se a qualidade muito maior no período recente. Dos 11 milhões de ocupações criadas na década de 1990, quase 55% delas foram sem remuneração, enquanto nos anos 2000 houve a supressão de 1,1 milhão de vagas para quem não tinha remuneração. Em seu lugar, surgiram empregos remunerados, sendo a maior parte com carteira assinada, ao contrário do verificado nos anos 1990.

Por força da centralidade alcançada pelo trabalho no período recente de pós-neoliberalismo, altera-se radicalmente a estrutura da sociedade brasileira. Identificados por alguns como "nova classe média", "avanço da classe C", "emergência da gente diferenciada" ou "de batalhadores sociais", o evento da mobilidade social atualmente constatado emerge fundamentalmente assentado no dinamismo do mercado de trabalho. Tanto assim que a estratificação social observada para além do rendimento, por meio da composição de diversas variáveis como a propriedade, a qualidade da habitação, os anos de escolaridade, o padrão de consumo e o tipo de ocupação resulta significativamente modificada em relação à da década de 1990.

Pelo conceito de pobreza multidimensional, por exemplo, mais de 7% dos brasileiros encaixavam-se nessa condição em 2009, enquanto em 2005 eram mais de 37%. Essa sensível redução permitida pela mobilidade na base da pirâmide social tornou-se viável em razão de vários fatores, sobretudo a complementação de renda associada ao dinamismo do mercado de trabalho. Ou seja, o esvaziamento da pobreza multidimensional implicou a expansão do segmento dos trabalhadores de baixo salário ("working poor"), que passaram de 27%, em 1995, para 46,3% em 2009.

A classe média tradicional praticamente não se alterou no mesmo período de tempo, ao contrário daqueles que vivem fundamentalmente com renda da propriedade (lucros, juros, renda da terra e aluguéis). Este segmento social engordou substancialmente, passando de menos de 4% dos brasileiros, em 1995, para mais de 14%, em 2009.

A estratificação social renovada pela recente centralização do trabalho aponta para novas atitudes em torno da coesão e polarização no interior da sociedade brasileira. Em disputa seguem as vias da sociedade da inserção inclusiva e a da individualização do social. Os próximos anos indicarão a via de maior aceitação.

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Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Unicamp.

Fonte: Valor Econômico