A caracterização do “modelo exportador” e ancorado em “vantagens comparativas” em mão-de-obra era o máximo que se vislumbrava nas análises produzidas, sobretudo no centro do sistema capitalista. Porém mudanças significativas ocorridas no último decênio denunciaram a emersão de novos atores internacionais, entre eles a Índia, a Rússia, o Brasil e principalmente a China. A realização deste processo pode ser claramente percebida na atual condição de indispensabilidade alcançada pela China num quadro internacional de aprofundamento de uma crise financeira que já caminha para seu terceiro ano.

O objetivo deste curto ensaio, não acadêmico, é o de pontuar algumas particularidades do processo de desenvolvimento chinês, chamando a atenção para uma caracterização geral de sua economia. Assim como apontar os limites e as possibilidades intrínsecas ao processo com ênfase nas mudanças internas no que concerne ao regime de acumulação encetadas com a apresentação execução do 12º Plano Quinquenal (2011-2015).

A segunda economia mundial

À primeira vista é mais do que óbvio atribuir o aumento do poderio e influência internacional da China ao seu robustecimento econômico. Seu dinamismo é fruto de um crescimento médio de 9,9% entre 1980 e 2010 e do aumento em 20 vezes de sua renda per capita (em preço corrente) de US$ 205,1 em 1980 para US$ 4.281,9 em 2010. Sua participação no PIB global saltou de 1,9% para 9,3% em 2010, sendo que entre 2005 e 2010 quase que duplicou essa participação saindo 5% para o referido índice de 9,3%; expressão do baixo impacto que a crise financeira causou ao país no âmbito mais geral da economia[1].

Seu aumento visível de importância no mundo está diretamente ligado ao volume de seu comércio exterior. O crescimento médio de suas exportações e importações a partir de 2000 (crescimento anual de 38,2% para as exportações e de 34,6% às importações). Em 1980 suas exportações corresponderam a 1,4% do total mundial e as importações 1,6%. Já em 2010 alcançou o patamar de 10,4% e 9,7% respectivamente o que demonstra a proporcionalidade, para este caso, das participações tanto no PIB quanto nas correntes de comércio internacionais. A transformação pela qual passa a divisão internacional do trabalho tem relação direta com estes dados e se expressa, também, pelo aumento dos fluxos comerciais entre a China e o mundo: entre 2000 e 2009 essa corrente aumentou em 4,6 vezes, enquanto que em termos globais o aumento verificado foi de 1,9 vezes[2]. A China é o maior exportador global e o segundo maior importador criando elos de intensa complementaridade produtiva com simplesmente todas as regiões do mundo e sendo parte essencial de um modelo – em esgotamento – caracterizado pela relação entre a alta taxa de consumo da economia norte-americana e a própria formação de poupança na China. O crescimento de sua participação no comércio internacional foi acompanhado de mudanças qualitativas em sua pauta de exportações, constituindo-se em fator de impacto relevante em sua balança comercial e demonstrando a cada vez maior centralidade do fator ciência e tecnologia à manutenção do esforço econômico nacional. Em 2005, 20% de suas exportações eram de produtos eletroeletrônicos, o mesmo passou a ser de 36% em 2010. Em 2009 já era a maior produtora de automóveis do mundo (10.383.831 de unidades) e no dia-a-dia se percebe claramente sua disposição em exportar carros com “marca própria” (Cherry, JAC Motors, Lifan).

Uma complexa cadeia de reestruturação produtiva internacional iniciada há mais de 30 anos é fator histórico de grande dimensão. A externalidade deste longo processo de alto crescimento e a conseqüente transformação da China em “máquina do mundo” é síntese de uma combinação entre grandes empresas norte-americanas, européias e japonesas – detentoras de marcas globais e altíssimo valor agregado em suas cadeias produtivas – com empresas de grande porte de países como Coreia do Sul, Taiwan e Hong Kong (responsáveis pelo suprimento de máquinas e equipamentos. O território chinês tornou-se o lócus privilegiado de uma grande fabricante e montadora de bens variados e com crescente agregação de valor. Além do fator histórico (e recente) acima posto, cabe salientar o movimento de constituição de um círculo internacional chinês espalhado pelo Sudeste Asiático. Círculo com poder financeiro suficiente para carrear ao continente seus excedentes, viabilizando, assim, tanto o financiamento externo da modernização e a internalização de avançadas técnicas modernas de administração, quanto à solução de pendências históricas como Hong-Kong, Macau e principalmente Taiwan.

Estes fatores têm dado cabo a um amplo processo histórico e geográfico de inserção soberana chinesa na chamada “globalização” como forma – em um mundo marcado pelo rápido desenvolvimento das forças produtivas (decadência do modelo fordista com grandes impactos negativos sobre a URSS, o nascimento da 3º Revolução Industrial centrada no Japão, além da presente crise financeira) – de reprojetar o país no rol das grandes nações.

Algo sobre o regime de acumulação

Uma caracterização da economia chinesa para fins de uma análise mais fina sobre como deverá ser seu comportamento diante de um mundo em instabilidade econômica demanda, de antemão, ter no centro da análise o fato de a China ser ao mesmo tempo o 3º maior país e a maior população (1,3 bilhão) mundiais, dados estes que acarretam – necessariamente – um escopo mais de conjunto da unidade de análise.

Os dados do comércio e participação do PIB em âmbito internacional são importantes pontos de partida, porém podem levar a equivocada constatação para quem a China é mais um caso de “modelo exportador” em dimensões continentais demandando num triste reducionismo do verdadeiro alcance daquele projeto nacional e de sua grande estratégia de inserção soberana. O tamanho de sua população enceta tanto limites quanto potencialidades. Limites de ordem natural, enérgica e ambiental. Potencialidades ao país e capacidade de “giro de compasso de fora para dentro” conforme aponta determinada conjuntura particular tendo o desenvolvimento econômico, em primeira e última instância, a variável estratégica e para onde convergem os mais amplos interesses das diferentes classes sociais e regionais.

Assim como é impressionante seu volume de comércio exterior, a mesma impressão serve para avaliar a alta porcentagem de 47% na relação investimentos x PIB alcançado no ano de 2010. Comparativamente, no mesmo ano de 2010, na Índia esta relação foi de 34%, na Rússia, 20% e no Brasil, 18%. Este dado, acrescido aos demais referentes ao comércio internacional, demonstra que o sucesso da estratégia chinesa, até o momento, reside num mercantilismo moderno que combina ganhos de produtividade na economia doméstica atrelado a uma taxa de câmbio indutora de exportações, além de uma planificação aplicada ao comércio exterior que se responsabiliza pelo estímulo aos Investimentos Estrangeiros Diretos (IED`s) em áreas de grande valor agregado e condicionados a transferência de tecnologia. Esta planificação estende-se à manutenção de barreiras alfandegárias, apesar das barreiras tarifárias rebaixadas desde a admissão da China à Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001.

A utilização deliberada da taxa de câmbio está atrelada a uma política de longo alcance que envolve a formação de reservas cambiais, que por sua vez tem serventia na aplicação de uma política de juros atraente ao crédito interno. As reservas cambiais chinesas saíram de um patamar de US$ 286,4 bilhões em 2002 e alcançou, num crescimento geométrico, US$ 3 trilhões no final de março último e em grande parte utilizadas para financiar o déficit norte-americano com a própria China. Uma das preocupações centrais do governo chinês é o de adotar as políticas econômica e monetária de mecanismos que possibilitem o surgimento de grandes global players nacionais. Trata-se de um longo processo em que os chineses são parte desta concorrência oligopólica. Concorrência centrada na relação virtuosa entre sistemas financeiros e conglomerados industriais voltada à consagração da lei da centralização e concentração do capital sob forma de bilionárias fusões e aquisições e agressividade sobre mercados externos. Neste contexto de fusões e aquisições entre estatais é que a partir de 1999 a China construiu a espinha dorsal de seu sistema industrial formado por 149 conglomerados estatais concentrados nos setores-chave da economia nacional. As corporações privadas são – em sua maioria ancilares – a esta “espinha dorsal” estatal. Nas estatais está o “grosso” do capital intensivo, nas privadas o “extensivo”. Dentro desta estratégia interna centrada na “grande empresa” é que se insere as chamadas “Empresas de Cantão e Povoado” (ECP`s), responsáveis pelo caráter rural tanto da industrialização, quanto da urbanização. Surgida no âmbito da liberação de grande massa de mão-de-obra resultante das reformas rurais pós-1978. São empresas nem estatais, nem privadas. Tem caráter coletivo e municipal. Em 2005 eram responsáveis pelo emprego de 138.661.740 milhões de trabalhadores[3].

Reformas na agricultura possibilitadoras de acúmulo ao nível das famílias, inserção externa que serve ao acúmulo de capital e uma “grande estratégia” empresarial teve de passar, para se reproduzir, pela solução do problema financeiro. Esta solução teve de vir pela formação de um sistema nacional de intermediação financeira – via bancos e mercado de capitais – capaz de dar sustentação ao esforço da transformação da quantidade em qualidade. Abrindo parêntese, a independência nacional assume diversas formas ao longo do tempo. Sua expressão varia da luta pela implantação de uma indústria pesada até os nossos dias onde a aparelhamento de um complexo aparelho para financiar a produção é a base por onde se assenta a afirmação de um determinado país, principalmente, em épocas de crises ditas “sistêmicas”. O crédito é o motor do processo: a relação crédito x PIB no país é de 166%; no Brasil esta relação hoje é de 47,2%. O “grande banco” e a “grande empresa” são a própria essência deste nada paradoxal “socialismo de mercado”.

A China transitou do sistema de um único banco responsável por depósitos e retiradas para outro formado por quatro bancos estatais de desenvolvimento (“Big Four”) e outros 12, de caráter comercial. Junta-se a este conjunto a existência de um – já sofisticado – conjunto de bancos municipais e provinciais voltados à sustentação do desenvolvimento urbano, além de 33.000 cooperativas de crédito rural e urbana que deverão ser fundidas em outras 16 grandes instituições financeiras até o ano de 2020[4]. Seu recente mercado de capitais é responsável pela capitalização tanto das empresas, mas também pelo próprio financiamento de grandes empreendimentos em infraestruturas; algo a ser ainda muito melhor estudado e que deve – necessariamente – se remeter às formas de financiamento das obras em infraestruturas em andamento no Brasil.

Existem elementos a serem melhor explorados na análise deste sistema em comparação com outros similares. O essencial é o caráter estatal do mesmo. Isso tem implicações. Enquanto no Brasil e, principalmente, nos Estados Unidos não existe relação direta entre liquidez bancária e concessão de créditos de médio e longo prazo, na China, o crédito (e o fato dos chamados “Big Four” terem caráter político e não comercial) tem determinação estratégica; logo determinado pelo Estado e não por um sistema financeiro autônomo, privado.

Último detalhe reside no fato de a China já ser a principal fonte de crédito liquido do mundo. As implicações políticas e geopolíticas deste movimento ainda carecem de estudos mais aprofundados. O poderio financeiro chinês está proscrevendo as instituições nascidas no bojo de Bretton Woods. O século XXI será determinado, por entre outras variáveis, pela transformação da China em uma potência financeira. E deverá ser no campo comercial e financeiro que a China deverá tratar sua grande fonte externa de limites: a dependência energética.

A crise externa e os limites do “modelo”

A condição que o mundo vive, às voltas de uma crise que ainda não se pode determinar seu real alcance, e a própria dependência para com a China suscita muitos (e justos) questionamentos sobre os limites do “modelo” chinês de desenvolvimento. Outros elementos devem ser acrescentados a esta preocupação, notadamente a transição de poder no país e o aprofundamento das mudanças na estrutura de acumulação enunciadas pelo conteúdo do 12º Plano Quinquenal (2011-2015). O sucesso da transição tanto política, quanto do “modelo” são essenciais para compreender o comportamento da economia chinesa diante da crise. O essencial é perceber que nos próprios limites do “modelo”, estão anexadas as próprias soluções. O desequilíbrio e a contradição são a chave do próprio processo de desenvolvimento e não seu contrário.

Os “limites” do modelo chinês, e dependendo do ponto de vista, podem ser perceptíveis na análise mais detida de quaisquer elementos da demanda. Por exemplo, ao observarmos a relação investimentos x PIB na China poder-se-ia concluir que se trata de uma economia superaquecida e com problemas imediatos de sobreinvestimento. Outra relação que poderia ser alarmante é o encerrado na relação consumo x PIB que em comparação com economias como a coreana e a japonesa posta a economia chinesa num patamar abaixo com 36%, enquanto as duas citadas são superiores a 50%[5]. Os dados sobre a dívida pública chinesa são muito divergentes. O governo chinês aponta para uma dívida proporcional a 17% do PIB (No Brasil esta relação é de 39,9%).

Em outros cálculos de estudiosos ocidentais variam de 70% a 130%, algo que “explodiu” nos últimos anos em razão dos pacotes anticíclicos do governo central (US$ 586 bilhões) de um lado, e por outro da própria autonomia gerencial a nível provincial. Altas taxas de investimentos, baixo nível de consumo, divída pública crescente, alto endividamento provincial e sistema financeiro em “pré-default” – assim como o fechamento de mercados externos e a “inflação de alimentos” – constituem-se, ao senso comum econômico, no núcleo duro dos “limites” do modelo chinês. Os quatro aumentos seguidos da taxa de juros (que atualmente encontra-se em 3,25% para depósitos em um ano e 6,31% para empréstimos para o mesmo período) e a incapacidade do governo em debelar um processo de alta inflacionária (o dado de julho indica uma de 6,67% em relação ao mesmo mês do ano passado) são expressão de um “expresso desgovernado”; redundando em mais um “modelo exportador” de tipo asiático entrando em decadência. Neste sentido, pela “fotografia da realidade” em si, a situação não é tão otimista a ponto de apesar da moeda chinesa ter subido 6,8% diante do dólar desde junho de 2010, porém os efeitos arrefecedores da queda dos preços internacionais de commodities ainda não foram devidamente mensurados no que tange as projeções, de queda, para a inflação do país para os anos de 2011 e 2012. O mesmo vale para o Brasil, diga-se de passagem.

Falemos um pouco da taxa de investimentos. É impossível ter um diagnóstico correto de uma determinada economia destacando uma única variável e a transformando em “unidade padrão”. É muito comum este tipo de ação utilizando (ao caso chinês) sua taxa de investimentos e o nível de seu comércio exterior. Uma alta taxa de investimentos, como a chinesa, não teria como se sustentar ao longo de muito tempo. As exceções estão situadas justamente em países continentais e/ou altamente populosos, pois investimentos lineares em infraestrutura e habitações são componentes importantes pouco perceptíveis. A China manteve uma taxa de investimentos com relação ao PIB médio de 33,5% até 2000 e entre 2000 e 2010 saltou de 35% para 47%. Desagregando esta taxa entre investimento industrial, investimentos em infraestruturas e investimentos imobiliários, chega-se ao dado para quem os dois últimos componentes foram responsáveis pela metade do investimento total em relação ao PIB, ou 30% do PIB. Enquanto que os investimentos industriais alcançaram 17% do PIB[6]. Ainda é alto a taxa de investimentos industriais, porém nada que esteja em descompasso tanto em comparação com o histórico da própria China, quanto de seus vizinhos asiáticos.

A particularidade chinesa, neste aspecto, é que enquanto países como a Coreia e o Japão já terem transitado, com sucesso, de uma forma industrial extensiva para outra já com grandes traços de intensividade de capital, na China esta mesma transição encontra-se ainda em andamento e centrada – particularmente – nos 149 conglomerados estatais e grandes e médias empresas privadas do setor eletro-eletrônico. Já os investimentos em infraestruturas, ao que parece, estão em plena consonância tanto com as necessidades de um país das proporções territoriais chinesas, quanto de uma economia onde a conexão interna entre seus mercados regionais ainda estão longe de se completar. Outra evidência que comprova o acerto da decomposição da taxa de investimentos está na força que o processo de urbanização adquiriu nos últimos anos: entre 2006 e 2011, cerca de 45 milhões de pessoas foram registradas como urbanos, enquanto outras 150 milhões estão em trânsito entre o vilarejo natal e grandes cidades industriais[7]. O impulso recente ao desenvolvimento chinês, desta forma, encontra-se concentrada tanto nos investimentos em infraestruturas quanto na acelerada urbanização, arrastando assim, grandes investimentos e substituição de importações na indústria pesada (aço, cimento, alumínio e indústria química). A formação de um mercado interno e de uma divisão social do trabalho robusta são as principais características do desenvolvimento recente da China.

O plano e o “grande desafio”

Qualquer crescimento econômico pautado por altas taxas de investimentos mais mercado externo para exportações traz consigo uma gama de contradições de ordem social e territorial de grandes proporções, cujas soluções demandam três ordens de fatores: o fator político, o fator financeiro e o fator relacionado a implementação de um planejamento de tipo socialista e de nível superior. O fator político encerra-se numa clara estratégia de enfrentamento de contradições-limite e a capacidade de manobra política num mundo pautado por uma ordem liberal e hostil à tipologia de seu desenvolvimento. O outro lado da solução deste tipo de óbice está na capacidade financeira do país e sobre isto já comentei mais acima. Sobre o planejamento socialista de nível superior, o mesmo se resume a uma planificação baseada numa base financeira jamais concebida nas experiências socialistas do século passado, cuja planificação estava a serviço da mediação da escassez e na obtenção de excedentes via agricultura, ou seja, por relações campo-cidade desfavoráveis ao campo. Enfim, eis a base para uma transformação qualitativa do “modelo” num ambiente de crise externa. O “grande desafio” está na redução das desigualdades via mobilização da maior taxa de poupança do mundo, correspondente a 45% do PIB. A mobilização desta poupança – e conseqüente transferência de renda do capital para o trabalho é o elo da cadeia com grandes impactos tanto para a China quanto para o mundo. O 12º Plano Quinquenal (2011-2015) aponta justamente na direção do fortalecimento do mercado interno.

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Uma política de valorização dos salários foi instituída com reajustes médios anuais com variação determinada pelo crescimento do PIB. Interessante notar que no quesito salário, os aumentos médios – o que inclui – de todas as categorias em 2010 foram da ordem de 20%. A prioridade ao encaminhamento de uma dita “questão social” no país está claro nas prioridades do orçamento nacional para 2011. Com o crescimento da arrecadação da ordem de 8% com relação a 2009, o governo central deve manobrar US$ 1,36 trilhão sob forma de investimentos. Deste montante 75% devem ser direcionados a projetos de melhoria das condições de vida do povo e concentrados nas áreas de educação, saúde, previdência social, emprego e cultura, além de grandes projetos de infraestruturas rurais[8].

Algumas anotações sobre a amplificação de um sistema nacional de saúde. A reforma fiscal promulgada em 1994 ao mesmo tempo em que fortaleceu o governo central debilitou em demasia as finanças ao nível provincial. O resultado mais visível deste processo foi o colapso do sistema de saúde e a utilização deste serviço como forma de arrecadação fiscal. A reversão deste quadro inicia-se em 2004 com a criação do Sistema de Medicina Cooperativa (SMC) e financiado por um fundo entre contribuintes, governo nacional, províncias e cidades. Entre 2004 e 2010, o número de cidades e/ou vilas participantes subiu de 233 para 2999. No mesmo período, os cidadãos sob cobertura deste plano saltou de 76 para 585 milhões[9]. Até 2011 a expectativa é que aumente a cobertura total para 90% das localidades nacionais. Para 2015, a cobertura (via Estado) deverá sair do atual patamar de US$ 18,29 por pessoa para US$ 61,20.

A necessária transição de um tipo de crescimento quantitativo para outro qualitativo é muito evidente nas metas de redução do consumo de combustíveis fósseis e emissão de poluentes expostas no 12º Plano. Caminhará em paralelo ao plano qüinqüenal anunciado um chamado “plano qüinqüenal verde” que estima investimentos na reestruturação produtiva e conservação ambiental da ordem de US$ 222,5 bilhões e objetivando a queda de 17% na intensidade de carvão por unidade do PIB[10]. Não são somente em políticas setorializadas e sob pressões externas que se mede a opção pela proteção ambiental.

São sete os setores industriais-chave prioritários a investimentos para os próximos cinco anos, a saber: geração de energia via fontes não fósseis, indústrias relacionadas a setores de alta tecnologia, novas matérias-primas, biotecnologia, indústria farmacêutica, tecnologia da informação e o de carros elétricos. Uma política industrial deste porte depende de mais esforços em matéria de ciência e tecnologia e maior interação entre os 149 conglomerados estatais e o sistema financeiro. Objetiva-se subir do atual patamar de 1,8%– em investimentos no setor de C&T – para uma média de 2,2% com relação ao PIB. Ao lado disto, a concentração dos investimentos no ensino secundário é muito clara com a intenção de aumentar os investimentos médios em 87% com relação ao verificado nos últimos cinco anos. A redução da média de crescimento do PIB deverá ser acompanhada por uma alta de 4% na participação do setor de serviços por meio do maior desenvolvimento dos chamados “serviços tecnológicos”[11].

Existe uma relação de continuidade com o 11° Plano deve ser destacada, pois desde o ano de 2010 a China já é a maior produtora mundial de células solares e turbinas eólicas, inclusive mudando uma situação de importadora deste tipo de tecnologia para exportadora ao mercado norte-americano. Essa ênfase – também – na reestruturação produtiva demonstra que a questão ambiental, antes de ser uma questão a ser tratada no campo da moral, transformou-se – aos chineses – em mais uma larga fronteira de acumulação e de alcance estratégico. Em outras palavras, isso significa que a questão ambiental e sua solução terão cabo na medida em que esta empreitada suscitar lucros no horizonte. Uma grande fronteira entre a 2ª Revolução e a 3ª Revolução Industrial e por onde se travará mais um capítulo na novela da concorrência e cooperação entre China e Estados Unidos.

A aposta na urbanização torna-se fato no objetivo de criação de 50 milhões de empregos urbanos e construção de 36 milhões de casas para população de baixa renda são números que indicam a clareza da necessidade de iniciar um processo de transição interna da estrutura econômica e social do país. Outro exemplo está no implícito recado à base rural do regime no objetivo de subsidiar a agricultura com a injeção de US$ 300 bilhões nos próximos cinco anos, significando em aumento de 23% com relação aos anos compreendidos entre 2006 a 2010. O maior desafio macroeconômico está na intenção de reduzir o crescimento médio do PIB para patamares variáveis de 7% a 8% ao ano. Somente no primeiro semestre de 2011, mesmo diante de uma política monetária de contenção, o país cresceu 9,7% com relação ao mesmo período do ano de 2010.

Possíveis impactos ao mundo e ao Brasil

As especulações sobre o impacto, sobre o mundo, de uma redução da taxa de crescimento na China são muito variadas. Há o temor em países provedor de matérias-primas como o Brasil de uma desaceleração das importações chinesas. A mesma preocupação acomete estudiosos norte-americanos. Não acredito nestas hipóteses pelo menos no médio e longo prazo. Ao contrário, o grande efeito a ser sentido deverá ser a da manutenção dos termos de troca favoráveis aos países periféricos decorrente da crescente participação da variável consumo na composição do PIB chinês. Se por um lado, o chamado “excesso de capacidade” na indústria pesada poderá ser absorvida gradualmente pela expansão do processo de urbanização, por outro esta mesma urbanização, turbinada pelo programa para construção de 36 milhões de moradias (investimentos da ordem de US$ 700 bilhões), deverá manter a tendência de alta tanto do preço do minério de ferro, quanto de commodities alimentícias (carne bovina e de frango, por exemplo e maior integração comercial com o BRIC). A estrutura de exportações e importações de diversos países deverá continuar a sofrer mudanças – dentre eles o Brasil – também, diante da tendência de manutenção de baixos preços de manufaturados chineses em decorrência da alta escala de produção industrial do país.

A ameaça a parques produtivos mais sofisticados, como o do Brasil, também tem relação com o atrelamento da moeda chinesa, o yuan, ao dólar. Na medida em que o excesso de liquidez internacional provocado pelos EUA não encontra ressonância na geração de emprego e renda, a tendência é que essa liquidez seja absorvida tanto por mercado de títulos, como o do Brasil, quanto em mercados futuros de commodities. Logo, na mesma medida em que os preços das commodities tendem a subir (especulação sobre seus preços + demanda chinesa), a valorização de moedas cujo valor é regido pelo mercado passa a ser a outra face da desvalorizada moeda chinesa. A continuidade da “primirização” da economia brasileira é uma tendência clara e objetiva.

Outra tendência que deverá ser ampliada tanto como resposta a crise quanto à manutenção do ímpeto desenvolvimentista chinês está no fortalecimento de sua posição externa, acarretando em uma realocação dos IED`s mundo afora. Este movimento de preenchimento de espaços no mundo segue três variáveis:

1) Aumento da presença chinesa, via IED`s, em países produtores de matéria-prima, sobretudo na África e América Latina, constituindo em fator de aumento do caráter estratégico da competição China x EUA. Importante frisar que neste aspecto a complementaridade entre as duas maiores economias do mundo é quase zero. A intervenção da OTAN na Líbia é um claro sinal neste sentido;

2) IED`s voltado a setores industriais recentemente (automóveis, informática e eletroeletrônica) com o claro objetivo de demarcar campo na concorrência oligopólica aguçada desde a eclosão da crise o que irá aumentar o lobbie industrial norte-americano contra práticas comerciais chinesas. A competição entre China e EUA tem aumento proporcional aos ganhos chineses em matéria de valor agregado de seus produtos;

3) Redução de suas posições em títulos norte-americano em prol de uma maior diversificação de ativos e em outras moedas.

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[1] Dados estatísticos extraídos dos sites da NBS e FMI.
[2] ACIOLY, Luciana; PINTO, Eduardo Costa & CINTRA, Marcos Antonio M.: As Relações Bilaterais Brasil-China (A ascensão da China no sistema mundial e os desafios para o Brasil). IPEA, Grupo de Trabalho. 2011, mimeo.
[3] Sobre o caráter das empresas estatais, privadas e as ECP`s, assim como dados estatísticos concernentes, ler: JABBOUR, Elias M. K.: Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado na China de Hoje. Tese de Doutorado ao Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da FFLCH-USP. 2010. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde-18012011-103155/pt-br.php
[4] Maiores detalhes em: “O crédito e as ‘múltiplas formas de financiamento’ como o motor primário do desenvolvimento chinês”. In, JABBOUR, Elias M. K.: Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado na China de Hoje. Tese de Doutorado ao Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da FFLCH-USP. 2010. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde-18012011-103155/pt-br.php
[5] Partindo destas duas variáveis, Nouriel Roubini traça um quadro dramático do futuro imediato da economia chinesa em: “China`s Growth Model: The Rising Risk of a Harding Landing After 2013”.
[6]LAI, Pingyao: “China`s Excessive Investment?”. In, China & World Economy. Vol. 16, nº 5, p. 50-55.
[7]Poucos percebem, mas outra particularidade do “modelo” está no fato de o chamado “exército industrial de reserva” não estar presente nas grandes cidades, habitando grandes favelas ou cortiços, e sim concentrados no âmbito do vilarejo.
[8] “A Budget for the People”. In, Beijing Review. No. 12 March 24, 2011. Acessível em:http://www.bjreview.com.cn/business/txt/2011-03/20/content_345843.htm
[9] China Statistical Yearbook para todos os anos.
[10] China Economic Watch: New 5-Year Plan and Budget Set to Support China’s growth. In, BBVA Research. Hong-Kong, March 25, 2001. Acessível em: http://www.bbvaresearch.com/KETD/ketd/bin/ing/publi/asiayotros/novedades…
[11] Idém.

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