O sentido atribuído por ele ao termo é de uma crise do desenvolvimento da teoria revolucionária. Não era a primeira vez que se apresentava: ele nos reportava à crise da 2ª Internacional, da qual Lênin emergiu como homem extraordinário de pensamento e ação revolucionária, desenvolvendo o marxismo para as condições de seu tempo.

Como foi sendo plasmada tal compreensão da crise? Como evoluiu a elaboração do pensamento de Amazonas sobre o tema? Como se entrelaçam essas duas questões? Que legado nos deixa e quais algumas das perspectivas que se apresentam hoje na luta pelo socialismo?

A crise do socialismo e do marxismo

O 8º Congresso do PCdoB centrou-se na crise dos anos 1989 e 1991, que levou ao fim dos Estados socialistas na URSS e no Leste europeu. Na análise realizada, a crise tem por ponto de partida os eventos de meados dos anos 1950, com o 20º Congresso do PCUS, e se aprofunda desde então com a dominação revisionista de Kruschev a Gorbachev. Entrelaçam-se na investigação das causas dessa crise fatores objetivos e subjetivos.

Segundo a resolução adotada nesse Congresso, num determinado momento da construção do socialismo na URSS, com Stalin e PCUS à frente, a vanguarda não esteve à altura em termos teóricos de interpretar os fenômenos novos que surgiam. A teoria revolucionária se apresentava em fase de estagnação, gerando um vazio e o descenso do movimento comunista. Crise, portanto, não no sentido de decadência, mas no de exigência de desenvolvimento do marxismo.

Nessa direção, ainda segundo a resolução do 8º Congresso, torna-se necessário desenvolver de maneira nova a ciência social avançada, o marxismo, a partir dos seus próprios fundamentos. Reclamam-se novos procedimentos científicos para a atualização da teoria, uma linguagem nova. Estagnada como está ela não pode cumprir sua missão – consequentemente, não se poderá vencer a crise sem desenvolver o marxismo. Essa foi a constatação do 8º Congresso.

Agrego aqui uma ponderação, possibilitada hoje pela visão retrospectiva. A tomada de consciência dessa crise foi progressiva. Estavam em curso certos impasses das alternativas de poder popular no último quarto do século 20 – Portugal, Irã, Nicarágua, Moçambique, Angola entre outros; a acachapante débâcle do Leste e o fim do campo socialista como sistema de Estados; instalação da poderosa ofensiva ideológica neoliberal do capital financeiro, sob hegemonia norte-americana, que perdura e se repõe com forte centralidade.

Esse quadro impôs nova realidade ao movimento transformador, de defensiva estratégica, período de crise ideológica e apostasia no movimento comunista, de nova acumulação estratégica de forças para retomar a luta pelo socialismo. Isso foi predominante na década de 1990 e está em desenvolvimento até hoje, reclamando esforço de reelaboração da estratégia e dos caminhos do movimento transformador.

Trata-se então de enfocar tal crise também em seus desdobramentos numa crise programática da esquerda e, devido também a outros fatores, numa crise orgânica, de militância. E confrontá-la com a rica realidade do movimento social, em resistência a tal estado de coisas e busca de alternativas ao neoliberalismo.

A evolução do pensamento de Amazonas

João Amazonas foi o principal ideólogo do PCdoB, homem de ação, político experiente, com uma obra política e ideológica saliente. Seu pensamento foi elaborado na ação e para a ação, e de certo modo se confunde com o pensamento do PCdoB, de seus congressos e documentos fundamentais.

Abarca várias dimensões: teórico-ideológica, estratégico-tática, internacionalista, de ação de massas. Devido à sua formação marxista consolidada, esse pensamento tem papel central no exame da crise do socialismo. Foi a alma da elaboração dos documentos do 8º Congresso, acima referidos.

Antes de examinar diretamente o pensamento de Amazonas sobre a crise, é necessário repassar em traços gerais sua trajetória para contextualizar a démarche desse pensamento.

Há dois marcos essenciais do pensamento e ação de Amazonas – 1962 e 1992. Um deriva do cisma histórico do movimento comunista, de 1956, do qual emergiu reorganizado o Partido Comunista do Brasil. Outro, que precisa ser mais valorizado, deriva da consciência de uma derrota estratégica do movimento operário revolucionário com a queda da URSS e do Leste europeu no fim dos anos 1980, e de seu enfrentamento no 8º Congresso do PCdoB.

É importante ressaltar que, para Amazonas, a elaboração do diagnóstico da crise do socialismo e do marxismo nasce com as contendas ideológicas de meados dos anos 1950, após a morte de Stálin. Não se configurou em toda inteireza desde o início, mas foi abrindo caminho em sua elaboração.

O tema abarca, assim, décadas – e ainda está em curso –, mostrando quanto são prolongados tais combates no terreno das ideias. Como em tudo, trata-se também de um movimento contraditório, pelas escarpadas veredas do desvendamento de fenômenos de enorme complexidade histórica.

A ruptura de 1962

Em 1962 confluíram confrontos ideológicos e políticos, nacionais e internacionais. Amazonas foi protagonista destacado. Ele fora participante da célebre Conferência da Mantiqueira, em 1943, que reorganizou o PCB após as pesadas ofensivas da ditadura do Estado Novo, e passa a integrar o Comitê Central e seu Secretariado Nacional.

Ele vai trilhando suas experiências e consolidando concepções. O documento 50 anos de luta (1972, 50º aniversário de fundação do Partido Comunista do Brasil), do qual foi um dos elaboradores, sistematiza a falta de estabilidade da orientação política do Partido Comunista do Brasil (PCB) – direitismo em 1945-46; esquerdismo do manifesto de agosto de 1950; certo artificialismo do Programa de 1954; direitismo escancarado do manifesto de março de 1958 –, relacionando-a com o pouco domínio do marxismo-leninismo. Faz curso na URSS em 1955-56, que sempre ressaltou como importante em sua formação, embora com críticas ao esquematismo pró-soviético.

Lá presenciou in loco a mudança da direção do PCUS, em prol de Kruschev. Sistematizou, anos depois, sua convicção da existência de um golpe nesse processo, e a ausência de reação da classe operária e do PCUS que, segundo ele, se encontravam desarmados ideologicamente.

A reorganização do Partido Comunista do Brasil em 1962 nasce do embate frente a esses processos, e também para confrontar o nacional-reformismo que tomou de assalto o PCB com o Manifesto de 1958 e o 5º Congresso de 1960.

Amazonas foi afastado da direção, apodado de “stalinista”. Passou alguns anos na direção dos trabalhos partidários no Rio Grande do Sul e, após o 5º Congresso, encabeça – com Grabois, Pomar e uma centena de outros comunistas – a Conferência Extraordinária de Reorganização do PCdoB em 18 de fevereiro de 1962.

A partir daí, foram anos de intenso confronto ideológico, nos quais se buscava desmascarar o revisionismo contemporâneo, expresso nas opiniões encabeçadas pelo PCUS – a competição e coexistência entre capitalismo e socialismo, e o caráter do Estado e do Partido, de todo o povo. Registre-se aí a característica da frontalidade, sempre saliente em Amazonas. O novo posicionamento extraía consequências no campo internacionalista.

Construiu-se o campo internacional dos partidos marxista-leninistas no combate ao revisionismo soviético. Tal combate perdurou desde a década de 1960, em que Amazonas enfrentou, junto com o PCdoB, forte pressão pelo isolamento político e ideológico.

No plano da reflexão nacional, enfrentava-se a ditadura e a necessidade de ampla união dos brasileiros para livrar o país da crise e da ditadura, tarefa enfrentada na 6ª Conferência Nacional, em 1966.

Ao lado de uma tática ampla e uma estratégia firmemente anti-imperialista, o PCdoB mantém o pensamento de duas etapas estratégicas da revolução brasileira, tributária da visão da 3ª Internacional e da análise que se fazia da realidade brasileira – caráter nacional, democrático, anti-imperialista e antifeudal da revolução na primeira etapa, e socialista na segunda.

Esse relativo mecanicismo no pensamento do Partido com o tempo cedeu lugar a uma compreensão mais interligada das duas etapas. No 7º Congresso, em 1988, numa notável reflexão política, Amazonas firma a compreensão da encruzilhada histórica em que estava mergulhado o país, exigindo solução avançada.

Aproximavam-se assim, entrelaçando-se, as duas etapas estratégicas; ao mesmo tempo, concluía-se não haver um ascenso revolucionário no Brasil e no mundo. Nova conclusão estratégica só seria extraída nos marcos do aprofundamento da crítica e autocrítica no 8º Congresso em 1992, apresentando a proposição sobre o caráter socialista da revolução brasileira, que levou à formulação do Programa Socialista do PCdoB, em 1995.

No plano tático, firmou-se uma das fortunas do pensamento de Amazonas, uma profunda assimilação do leninismo, que ele procurou aliar ao estudo da realidade política brasileira. Isso o levou a vincular os objetivos táticos bem firmados – a um só tempo com firmeza de princípios e propósitos –, com a flexibilidade no modo de alcançá-los.

Dadas as derrotas do Araguaia e a tristemente célebre Chacina da Lapa (que vitimou a direção partidária em dezembro de 1976), Amazonas levou o PCdoB a se orientar pela atuação no seio de ampla frente democrática e no ascenso das lutas de massa do período, lutando pela hegemonia de forças avançadas na luta contra a ditadura.

Decerto a base principal para esse rico pensamento político foi a apreensão aprofundada e inventiva de O Esquerdismo, doença infantil do comunismo, de Lênin, obra que Amazonas sempre indicava em suas reflexões e debates, como antídoto poderoso ao sectarismo político autossuficiente. Assim, sua obra cotidiana de orientação tática é intensa nesses anos.

O marco de 1992

Sem dúvida nessa trajetória vão sendo plasmadas as conclusões de Amazonas sobre a crise do socialismo. O fim da URSS e do campo socialista no Leste europeu promove um salto qualitativo em suas elaborações.

Pode-se dizer – numa visão retrospectiva –, que foram se configurando as insuficiências da análise prevalente até aqueles momentos tormentosos de 1989-1991. A produção teórica de Amazonas traz uma pista dos fatores que se acumulavam para o salto. A “traição kruschevista” sem dúvida foi parcial e unilateral como explicação para a derrota sofrida na URSS.

A démarche teórica da restauração capitalista na URSS desde meados dos anos 1950 – com “novas formas de extração de mais-valia” –, e do social-imperialismo – com “exportação de capitais e dominação imperialista” –, mostrava limitações. A questão do stalinismo até aí havia sido pouco explicitada.

Amazonas nunca deixou de referir, como um dos fatores de crise do movimento, o aspecto subjetivo, ou seja, insuficiente estudo e desenvolvimento do marxismo.

A este propósito, registro que a resolução do 8º Congresso fez um paralelo com a crise do marxismo no tempo de Lênin, situando a maior contribuição dele, nesse sentido, em Materialismo e Empiriocriticismo, quando talvez seria de referir também, mais intensamente, o estudo empreendido por Lênin da dialética de Hegel como fator seminal para o salto na teoria revolucionária em seu tempo. E, quem sabe, maior esforço pelo estudo e domínio da realidade do Brasil, modo comprovado de superar esquemas e modelos pré-fixados.

Enfim, pelo meu entendimento, o estado da arte até aí era de uma clara reafirmação de princípios e defesa da identidade dos comunistas, embora com alguma carga dogmática. Com os acontecimentos vertiginosos do final dos anos 1980 e início dos 1990 um salto na elaboração foi dado por Amazonas e ele não se enganou quanto ao sentido dos acontecimentos históricos.

Com a Perestroika é relançado em outro patamar o exame da crise do socialismo. Há um antes e um depois em relação a esses acontecimentos no pensamento de Amazonas. Retrospectivamente, pode-se verificar o seu método: ele desenvolveu um programa de investigação e pesquisa, que esteve na base de toda a sua produção até 1996-1997 – válido ainda hoje.

A partir de 1988, Amazonas dará curso a esse programa de investigação e extrairá outras contribuições teóricas. Circunscreva-se aqui uma absolutamente central: não há modelo único de socialismo. Daí partiu a redescoberta de Lênin, a categoria da transição ao socialismo, o papel do capitalismo de Estado nessa transição. Essa foi a pedra angular que permitiu a João Amazonas descortinar os novos lineamentos do Programa Socialista do PCdoB para o Brasil.

Mas vejamos o percurso, que foi progressivo e não linear. Com o advento da perestroika e da glasnost, promovidas por Gorbachev, Amazonas em 1988 no artigo “Perestroika: a contrarrevolução revisionista” elaborou uma crítica poderosa e percuciente – própria de quem sustentara princípios e enxergava a gênese histórica dos eventos.

Nele, afirma como causa real da crise da URSS o abandono do caminho socialista e a vitória de uma direção burguesa na URSS. Foi aberta uma longa transição do socialismo ao capitalismo na URSS desde meados da década de 1950, que alcançou o ponto mais alto com Gorbachev. Rechaçou ainda as mentiras e calúnias contra Stálin.

Em 1990, no artigo “A teoria se enriquece na luta por um mundo novo”, aprofunda a crítica. Na URSS, falhava o motor, “a teoria, ao não ter respondido às exigências da evolução social, entrou em crise. E dela só poderá sair reelaborando os fenômenos novos, dando-lhes correta interpretação”. Segundo ele, se verificaram erros na construção socialista. Uma nova etapa de desenvolvimento na URSS foi aberta, após as grandiosas vitórias obtidas na 2ª guerra mundial.

Problemas novos reclamavam teorização, envolvendo o caráter do desenvolvimento das forças produtivas; o fim das restrições ao avanço democrático, das repressões e falhas na legalidade, da monopolização do PCUS sobre a vida política e fusão Partido-Estado; as limitações no campo social e na vida cultural com o dirigismo do realismo socialista. Enfim, na URSS, a prática se desligava da teoria e esta se apresentava estancada. A nova etapa não fora generalizada à altura das exigências.

Ainda em 1990, no artigo “As transformações sociais na época da revolução e do socialismo” Amazonas dá novos passos no exame crítico da crise. Propõe discutir o tema sem preconceitos. Ele firma sua convicção de que a ascensão de Kruschev ao comando do PCUS resultara de um golpe, configurando uma derrota histórica do proletariado naquele país, com reflexos em todo o movimento comunista. Iniciava-se aí a transição do socialismo ao capitalismo.

Para tragédia do socialismo, a contrarrevolução se apresentava fantasiada de liberal, de defesa das liberdades. De forma penetrante, ele faz a autocrítica: ao longo do combate ao revisionismo, justo e necessário em sua compreensão, demonstrara-se o como ocorrera a derrota.

Mas não fora suficiente reconhecer isso. O edifício ruíra, era importante resgatar os alicerces. A questão candente era o porquê desses acontecimentos. Estava na hora de perguntar, até mesmo especular, sobre a absolutização de princípios e normas verificada na experiência socialista, a desatenção à questão das etapas de transição do capitalismo ao socialismo, a questão do Estado socialista e a relação com o Partido.

Enquanto isso, os acontecimentos se processavam em velocidade incrível. Havia chegado a hora de a Albânia ser envolvida neles, e fracassar em perseverar num caminho de defesa da nação e do povo. Segundo Amazonas, em artigo de 1991 “As mudanças de rumo na Albânia socialista”, nas condições daquele pequeno país, isolado, impunha-se um reposicionamento estratégico: não era possível manter o socialismo, mas era necessário perseverar em manter as conquistas revolucionárias.

Em 1991, no artigo “Defender e desenvolver a teoria marxista: exigência da época atual”, ele afirma ser necessário detectar as causas da derrota sem primarismo autossuficiente e sem menosprezo pela teoria. Tratava-se de encontrar as respostas no campo do próprio marxismo, reelaborando criticamente sobre a massa formidável de fenômenos que se desenvolviam.

Segundo ele, embora algumas teses do marxismo tivessem sido superadas, ou mal aplicadas, apenas a doutrina marxista seria capaz de revelar os motivos da ruína, por retratar a realidade em movimento, as leis objetivas em ação. Aponta que a ausência de horizontes límpidos no campo da luta social relaciona-se com o desprezo pela teoria, sendo acentuado entre os contestadores do socialismo.

Tal apreciação teve consequências na rearticulação de campos no interior do movimento comunista, ao qual Amazonas dedicava atenção especial e direta. Nas novas condições, mudava a forma de lutar pela unidade internacional das forças comunistas. Os partidos que sustentaram o campo marxista-leninista, antirrevisionista, desenvolveram-se insuficientemente, devido ao forte sectarismo político e ideológico.

Outros partidos comunistas, outrora alinhados com o campo soviético, também extraíam consequências avançadas diante da crise do Leste europeu e perseveravam em posições revolucionárias.

Era preciso examinar a experiência da China de construção do socialismo com peculiaridades próprias. Abrira-se, para Amazonas, uma fase de transição no interior do movimento comunista. Tratava-se, como se concluiu no 8º Congresso, de reestruturar a luta pela unidade do movimento.

Negação da negação

Tais foram os pródromos de tudo o que viria a se consolidar no 8º Congresso. Nesse momento se configuraram de modo mais desenvolvido as categorias e os conceitos e juízos sobre a crise. Antes de tudo, a constatação de que o próprio PCdoB fora duramente atingido por ela.

Fora necessário e correto o combate ao revisionismo e isso implicava que a experiência socialista na URSS exigia dois balanços distintos: um até meados da década de 1950; outro a partir daí. Eram duas fases opostas. Mas essa luta, justa e necessária, fora unilateral.

Na URSS abandonara-se o caminho socialista. Mas tal abandono proviera de erros reais na construção do socialismo na União Soviética e no modelo único de socialismo erigido, com Stálin à frente. Eis aí o início do enfrentamento da unilateralidade verificada no combate ao revisionismo.

O como fora derrotado o campo comunista se explicava essencialmente pelo confronto entre o proletariado e a pequena burguesia. Mas o porquê se devia ao desarmamento ideológico e enfraquecimento do PCUS, cuja degenerescência se iniciara já no período stalinista. Quase 40 anos após a morte de Stálin, fazia-se um balanço sistemático de seu papel. Fora de fato um estadista de larga visão, cuja vida e obra tinham marcado caráter de classe.

Mas cometera erros importantes, dos quais resultou o debilitamento ideológico do PCUS. Sua noção de que quanto mais avança a construção do socialismo maior é o acirramento da luta de classes revelara-se falsa e a teoria da construção socialista, limitada. Marcado pelo subjetivismo e empirismo, não logrou sistematizar à altura o desenvolvimento socialista e suas novas exigências. Não se tratava de ser stalinista, tampouco antistalinista, bandeira da reação mundial.

A crise se verificava no campo da teoria, filosofia, na própria concepção do socialismo. Cristaliza-se a ideia de descompasso na ciência social frente à realidade em mutação. Tratava-se de atualizar o marxismo mantendo os fundamentos.

Questões momentosas punham-se diante das forças revolucionárias, exigindo reafirmação de princípios para estas não se perderem: a questão da luta de classes e seu caráter, o caráter de classe da luta pelo socialismo, a ditadura do proletariado como conteúdo fundamental do novo Estado, a necessidade de um partido de vanguarda organizado a partir do princípio do centralismo democrático. Mas, ao mesmo tempo, era necessário superar concepções pouco dialéticas prevalecentes em torno de todos e cada um desses conceitos basilares.

Como se pode ver, Amazonas nesse período reexamina suas próprias concepções e extrai consequências. Foi um esforço crítico antidogmático, avançando na concepção mais dialética na abordagem dos fenômenos. Não simplesmente negou, mas reformulou seu pensamento numa espiral dialética mais elevada, apropriando-se do velho e dando-lhe nova configuração. Por isso, 1992 foi um marco de sua trajetória e, junto com ela, da trajetória do próprio PCdoB.

O programa de investigação

Mas a massa de fenômenos era verdadeiramente formidável. Para Amazonas, a crise não seria resolvida em curto período de tempo, impondo-se espírito criativo e inovador. Recusando a ideologização da teoria, ele afirma a centralidade da luta teórica, pelo desenvolvimento do marxismo. E dará curso, após o 8º Congresso e até 1997, a seu programa de investigação, extraindo conclusões teóricas importantes.

Mais uma vez ele voltava à crítica da experiência soviética. Dois artigos – “A volta do capitalismo na União Soviética”, de 1991, e “Rússia, 1917. Grandiosa experiência histórica”, de 1993 – a examinam sob o ângulo da longa e gradual transição do socialismo ao capitalismo. Neles, Amazonas avançou um esforço de melhor compreensão dialética repondo a importância do tema do revisionismo contemporâneo como “tendência exótica que conseguiu levar à prática seu propósito antissocialista”.

Ao mesmo tempo, manteve a firme e apaixonada defesa do legado de outubro de 1917 como façanha histórica. Alertava, a um só tempo, contra os que, sob o pretexto de combate ao dogmatismo, pretendem criar nova teoria em substituição ao marxismo; e contra o receituário morto e repetitivo, o embotamento do pensamento criador, que se recusa a definir melhor a realidade atual, distinta de épocas anteriores.

Sobre esse substrato, em 1992, no artigo “Etapas econômicas no sistema socialista”, e em 1993 em “Capitalismo de Estado na transição para o socialismo: notável contribuição de Lênin à teoria revolucionária do progresso social”, Amazonas finca uma pedra angular, um elo perdido, não apenas para o pensamento estratégico do PCdoB como também para o debate acerca da concepção do socialismo. É uma de suas mais importantes contribuições teóricas e políticas.

Para ele, a obra de Lênin sobre a transição do capitalismo ao socialismo não fora tratada com rigor científico. A transição devia ser apreendida como um processo objetivo e subjetivo evolutivo, sujeito também a saltos, não espontâneo. Resgata Engels, para quem essa era “a questão mais difícil”.

Faz a crítica do “Manual de Economia Política”, do PCUS sob direção de Stálin: aí havia grave omissão das etapas, expressando que os soviéticos abordaram inadequadamente a questão. Pela apreensão de Amazonas, não é o Estado que determina tais etapas, mas sim as leis econômicas objetivas em ação.

E, ainda segundo ele, o voluntarismo subjetivista que caracterizou Stálin nessa matéria, podia ser vislumbrado já no 18º Congresso, em 1939, quando se dizia já estar concluída a etapa socialista e se estar ingressando numa época nova, a transição ao comunismo.

Para Amazonas, na URSS a técnica e o aumento da produtividade atrasaram-se, não tendo transitado de uma economia fortemente extensiva, apesar dos imensos avanços alcançados, para uma economia de caráter intensivo, exigência do progresso econômico.

O fim dos anos 1950 exigia passar a outra etapa econômica do socialismo – os soviéticos não identificaram essa necessidade, perderam-se em abstrações. Tratava-se, segundo Amazonas, de definir de modo rigorosamente científico as diversas etapas da construção socialista, que têm prazos bem mais longos.

A teoria da transição em Lênin foi resgatada como uma teoria de valor universal, envolvendo questões de tempo, método, lugar e dinâmica revolucionária, ditadas por leis objetivas, envolvendo política e economia. Implicava caminhos, métodos, recursos e instrumentos intermediários para a passagem do capitalismo ao socialismo.

Particularmente as formas de Capitalismo de Estado eram centrais para a transição: sob o capitalismo e sob o socialismo tais formas têm sentidos diferentes. Assegurado o poder proletário, trata-se de incrementar as forças produtivas, porque socialismo tem que ser superior em produtividade ao capitalismo, mas em suas formas iniciais não tem as condições para tanto nos países atrasados em seu desenvolvimento.

Devem ser utilizadas concessões, formas de cooperativismo, inversões de capitais, de modo regulado, acessório, com prazos e limites delimitados. A luta de classes persiste na transição, sob outras formas. Para Amazonas, as etapas são exigências objetivas, fruto de acumulação e não de voluntarismo; e não se sabe quantas haverá. Na URSS se foi rígido e esquemático. Hoje, a experiência chinesa dá outros elementos a essa reflexão.

Por outro lado, as bases econômicas deviam se refletir na superestrutura. Aqui os erros eram flagrantes. Não se apreendera, na prática, a questão do caráter contraditório do Estado socialista, em suas funções simultaneamente de Estado e não-Estado, implicando em efetiva democracia e participação dos trabalhadores como essenciais à função da construção socialista.

Essas reflexões serviram de base para a perspectiva de retomada de uma nova luta por um novo ideário socialista. Com ela se abriu caminho para uma reformulação do pensamento estratégico dos comunistas no Brasil, afirmando o caráter socialista do programa do PCdoB para o país, base para que em 1995, na 8ª Conferência Nacional, esse Programa fosse aprovado.

Amazonas foi a alma dessa elaboração. O Programa Socialista do PCdoB, partindo da nova consequência estratégica – caráter socialista do Programa para o Brasil, superando o mecanicismo das duas etapas –, reelabora a análise da sociedade brasileira e aponta para o entrelaçamento da luta pela soberania nacional e socialismo: “conquista do socialismo é inseparável do combate firme e decidido por uma pátria livre, soberana e independente.

Em última instância o internacionalismo proletário, na situação atual, é também a defesa da soberania nacional em todos os países”. Amazonas faz essa fundamentação em artigo de 1994, “Não há nação soberana sem Estado Nacional”, que esteve na gênese dos esforços recentes por ligar mais profundamente o estudo do marxismo à realidade brasileira, e da identidade patriótica e socialista do PCdoB.

Partido Comunista – indispensável à luta

O último ponto das investigações de Amazonas foi sobre a questão do Partido. Em artigo de 1996, “Força decisiva da revolução e da construção do socialismo”, ele chama a atenção para a necessidade de maior dedicação aos desvios de concepção de Partido.

O PCUS degenerara e aí foi iniciada a derrota do socialismo. Já no período sob direção de Stalin, burocratizou-se, desligou-se da massa, caiu na rotina, endeusando dirigentes e o carreirismo. Abriu terreno à capitulação no campo socialista e nos partidos comunistas para desarmar ideologicamente o proletariado.

A degenerescência se dera também em outros períodos, como no da 2ª Internacional. Ocorrera tanto antes como após a revolução. Por quê? Ele generalizou uma resposta, lembrando sempre que os partidos revolucionários começaram a apodrecer “pela cabeça”. Segundo ele, em última instância fracasso é por conciliação de classes.

O Partido Comunista é o partido da luta de classes, exigindo sempre se situar no campo do proletariado. Apontou as distorções na aplicação do conceito de partido de vanguarda na experiência oriunda do PCUS. A derrota significara a vitória do liberalismo, como tendência burguesa no interior do movimento comunista. Tratava-se, para Amazonas, de fenômeno que começa nas direções e exige educação permanente das bases – incluindo a preocupação com a composição orgânica do PCdoB –, na qual os operários são os mais consequentes.

Ou seja, Amazonas centrou a necessidade de se manter os fundamentos de tal tipo de partido: a luta de classes, o caráter de classe da luta pelo socialismo, a exigência de ruptura para um novo poder político de Estado, o PC como direção estratégica da luta, a característica central da unidade ideológica marxista e revolucionária como fator fundante do PC. Deixou patente o componente de permanência na concepção e prática do PCdoB, a exigência de manter a identidade e princípios do Partido, não retroceder dos fundamentos.

Essas reflexões se somaram a outros importantes esforços antidogmáticos, ainda em curso no PCdoB, que redundam na renovação de concepções e práticas, à base de recusa de um modelo único organizativo de partido, apreendendo mais e melhor as originalidades de feições, formas e funções do PCdoB em funcionalidade com seu projeto político estratégico de luta pela hegemonia no processo político real em curso. E deram ensejo ao novo Estatuto partidário aprovado no 11º Congresso.

Legado e perspectiva

O pensamento de João Amazonas, como vimos, entrelaça-se profundamente com o tema da crise da teoria revolucionária. É preciso superar a crise no campo da teoria, desenvolvê-la, renovar o marxismo, superar o dogmatismo que empobrece a criatividade e a dialética, superar enfim a compreensão idealista do próprio conhecimento teórico.

Isso significa não ser possível considerar que superar a crise no campo teórico leve em conta apenas a prática passada, seus ensinamentos, sem cuidar da outra parte, até mais importante: a prática atual contemporânea, por isso mesmo nova, ainda a percorrer, que atenta para novas situações para o próprio desenvolvimento teórico.

Trata-se, então, de um enfrentamento que não se resolve puramente no campo teórico, envolve também o leito de uma práxis política transformadora contemporânea que possa desenvolver a teoria marxista à altura das exigências do período histórico presente.

Isso abarca, ao lado da dimensão teórica propriamente dita, a ação política, de massas, organizativa, em resistência ativa e acumulação de forças para retomar um novo ciclo de luta por um ideal socialista renovado. Até porque, ao lado da resistência que avança, são notórias algumas vitórias importantes da esquerda neste início de século 21, a pôr na ordem do dia o debate das alternativas políticas, no seio das quais a perspectiva de abrir caminho ao socialismo se faz presente.

O panorama que emerge dessas reflexões é de que a luta pelo socialismo não se firmará num golpe só – o caminho é mais difícil e complexo, não se dá em linha reta. Trata-se de compreendê-la como toda uma época de transição do capitalismo ao socialismo, com diversas etapas e fases intermediárias.

Socialismo não é perspectiva longínqua e inacessível, nem tampouco um ideal romântico ou messiânico. É mais propriamente uma exigência do desenvolvimento histórico, que não prescinde de uma teoria que, por sua vez, deve estar em permanente desenvolvimento, e de uma práxis política profundamente inserida no curso real da luta de classes, em ligação com as forças sociais decisivas do processo transformador. Sua realização vitoriosa depende de uma justa direção da luta política concreta e resulta da luta tenaz e consciente das massas.

É uma perspectiva política a ser construída no leito concreto da luta de classes, nas condições próprias de cada país.

Não há modelo único de revolução e edificação do socialismo, mas sim uma diversidade de caminhos e modos na conquista do objetivo. Modelo único de socialismo é uma deturpação da teoria revolucionária. Para abrir caminho ao socialismo e sua edificação só se pode partir da realidade concreta de tempo e lugar, das características próprias do processo político das diferentes nações, das características da luta de todas as classes envolvidas.

Nessa luta, o espaço nacional segue sendo indispensável à reflexão e ao fazer estratégicos em ligação com a luta mundial dos trabalhadores e povos contra o imperialismo e o capitalismo. Não há nação soberana sem Estado nacional soberano. Nos países subordinados e dependentes, patriotismo e internacionalismo proletário se coadunam na busca de abrir caminho ao desenvolvimento autônomo e soberano.

A saída para o Brasil é o socialismo, abordado em cada aproximação, não apenas como bandeira de propaganda, mas sim assentado no terreno do real, das características da formação econômico-social brasileira e originalidades das suas tradições políticas, das situações herdadas. Isso impõe atuar no curso dos acontecimentos políticos concretos, lutando pela hegemonia política das forças avançadas, forjando a luta e unidade do povo e fortalecendo seu partido, o PCdoB.

Esses são alguns dos ricos legados do pensamento de Amazonas, que se confundem com o próprio pensamento do PCdoB. Como ele mesmo disse, em dois pequenos e preciosos artigos, “O socialismo no século 21”, de 1997, e “Caminhos novos à luta emancipadora”, de 1998 (por ocasião dos 150 anos do Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels): “A batalha histórica entre a burguesia e o proletariado vai durar ainda muito tempo. A perspectiva, porém, é a da vitória do socialismo florescente e derrota definitiva do capitalismo selvagem”. “Assim será o século 21. Em seus começos, haverá sombras e luzes, mais sombras que luzes. Depois, o quadro se inverterá. A humanidade viverá tempos de grandes esperanças”.

O ideário e a perspectiva política do socialismo vivem, assim, à base dos esforços que forem capazes de desenvolver os marxistas revolucionários de todo o mundo para enfrentar os desafios contemporâneos, no plano teórico e no das convicções, no plano das reformulações programáticas e estratégicas e nas concepções e prática de Partido, na ação política e pedagógica junto aos trabalhadores.

No plano teórico, entre outros temas, demanda hoje capacidade de desenvolver a análise crítica renovada da reprodução ampliada do capital e da dominação imperialista, o papel hegemônico da esfera financeira nesse processo. Apreender os efeitos da reestruturação produtiva do capital e formação de novo proletariado, mais heterogêneo e disperso que no passado.

Enfim, caracterizar com justeza nossa época. Ademais, atualizar a teoria de Partido. Até mesmo reelaborar sobre os profundos impactos na filosofia advindos do formidável desenvolvimento da ciência, exigindo um pensamento dialético superior, em tudo demarcado com o pensamento esquemático e mecanicista. Nesses desafios, não se deve temer a investigação crítica da própria crise da teoria do socialismo.

Esses são os tempos atuais a exigir dos contemporâneos sua própria cota de contribuição teórica inovadora, capaz de interpretar em profundidade a época corrente. Mas sempre haverá de se partir de fundamentos sólidos – e o marxismo segue sendo o manancial mais poderoso capaz de fornecer o instrumental teórico de sua própria crítica. Este é certamente o núcleo do maior dos legados de João Amazonas.


Walter Sorrentino é secretário de Organização do PCdoB.

Referências

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MARX, C. & ENGELS, F. “Manifiesto del Partido Comunista”, in: Obras Escogidas, tomo I, pp. 110-140, Progresso, 1980, Moscou.

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AMAZONAS, J. e GRABOIS, M., 50 Anos de Luta (50º aniversário de fundação do Partido Comunista do Brasil), 1972, disponível em http://www.vermelho.org.br/pcdob/80anos/docshists/1972.asp

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Informe Político ao 8º Congresso do Partido Comunista do Brasil, 1992, disponível em http://www.vermelho.org.br/pcdob/80anos/docshists/1992.asp

Programa Socialista do Brasil, in: Construindo o Futuro do Brasil (Documentos da 8ª Conferência Nacional do PCdoB), Anita Garibaldi, São Paulo, 1995.

Partido renovado, Brasil soberano, futuro socialista: Resolução Política, Estatuto e Documentos do 11º Congresso do PCdoB, Anita Garibaldi, São Paulo, 2006.


Publicado inicialmente em Princípios, nº 85, junho de 2006