Como a ditadura militar monitorava Chico e Caetano
Horas depois, os dois apareceram: Chico Buarque de Hollanda e Marieta Severo vinham escoltados por policiais dentro de uma Kombi cinza. Coincidentemente, o compositor e a atriz, vindos de Lisboa num voo da TAP, chegaram ao Rio pouco depois de Callado e a mulher.
Os casais se encontraram no subsolo do terminal. Estavam presos, “para averiguações”, sob suspeita de subversão. “Marieta, sempre despreocupada, olhou para a minha cara e disse: ‘Logo você, que nem viajou para Cuba!’“, recorda Ana.
Marieta conta que a detenção era previsível. “Sabíamos que isso ia acontecer, já esperávamos pela polícia.” O depoimento à Polícia Federal, ainda no aeroporto, durou mais de três horas. Chico e Callado tinham estado na ilha de Fidel Castro no mês anterior, em janeiro de 1978.
As bagagens de ambos foram meticulosamente revistadas. Callado teve a bainha do blazer rasgada — os agentes suspeitavam de eventuais mensagens ocultas no tecido. “Os charutos que ele ganhou de Fidel foram todos picotados, um absurdo”, lembra a viúva do escritor. Chico trazia discos italianos e portugueses, livros e uma correia de violão com a inscrição “Cuba”.
“Confiscaram praticamente toda a nossa bagagem”, confirmou o compositor. Em busca de coisas escondidas, os policiais quebraram o braço da boneca da pequena Kadi, de quatro anos, que Ana e Callado conduziam de volta para o pai, o percussionista baiano Tutti Moreno.
Após responderem a um questionário com mais de 70 itens, geralmente aplicado aos exilados (que já começavam a voltar com os primeiros ventos da abertura política), Chico e Callado foram liberados. Não sem mais uma convocação. “Fomos intimados para novo depoimento na semana seguinte, o Callado e eu, separadamente”, recorda o compositor.
Francisco Buarque de Hollanda perdeu as contas de quantas “intimações ou convites” recebeu na ditadura para prestar esclarecimentos. Ele garantiu, em antiga entrevista, terem sido bem mais de 20. A convocação ao Dops (Departamento de Ordem Política e Social) do Rio, em dia 27 de fevereiro de 1978, uma semana depois do desembarque no Galeão, para dar mais “esclarecimentos” sobre a viagem a Cuba, tinha ares de guerra psicológica.
“Fui recebido por uns sujeitos esquisitos, à paisana, todos com umas pastas do Clube dos Diretores Lojistas”, recorda. “Ao contrário de tantas detenções anteriores, onde o que eu mais fazia era tomar esporro de militares ou agentes da Polícia Federal, desta vez o tom era de provocação ideológica.”
Seu depoimento permaneceu inédito por 34 anos. Nele, Chico reage de maneira desafiadora. “Estou sendo obrigado a prestar essas declarações em lugar de trabalhar. Trabalho dez horas por dia e estou perdendo um tempo precioso vindo à polícia”, disse o cantor no interrogatório, ressaltando não saber “se seus interrogadores trabalhavam e o que eles produziam.”
Chico, no Dops, afirmou que não estava “realizado politicamente” no Brasil, onde “falta liberdade”. “Em Cuba sim”, disse à época, “há liberdade”. “Lá todos pensam da mesma maneira, pois todo o povo está integrado ao processo revolucionário. O Brasil, para atingir o socialismo, deveria passar por um processo revolucionário idêntico ao cubano”.
“O mundo todo caminha para o socialismo. Inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde, todos os países serão socialistas”, disse. Sobre a ditadura, que naquele mês de março completaria 14 anos, Chico afirmou aos interrogadores que o “governo brasileiro mete os pés pelas mãos”. E mostrou-se favorável à aprovação da Lei da Anistia.
Antes de deixar a sala, o compositor assinou duas folhas em branco. Numa delas, rabiscou: “não vou responder mais nada” e assinou logo abaixo. Noutra, foi mais formal: “No dia 27 de fevereiro de 1978, nas dependências do D.P.P.S., quando estava sendo ouvido, neguei-me a responder às perguntas que me eram formuladas”.
Chico Buarque explica o motivo do estouro: “Resolvi responder no mesmo tom, mesmo porque já não estávamos no início dos anos 70. As pessoas sabiam onde eu estava depondo, a história toda tinha sido noticiada. O interrogatório foi exaustivo, e a certa altura eu disse que não falaria mais nada. Eles me mandaram afirmar isso por escrito. Foi o que fiz.”
Dos quatro brasileiros que viajaram para Havana, só o escritor Ignácio de Loyola Brandão não enfrentou a polícia política. “Pediram para eu antecipar minha passagem de volta. Tive de trocar com um embaixador a pedido do governo cubano. Cheguei um dia antes do previsto e passei direto”, disse Loyola.
Além de Chico e Callado, o jornalista Fernando Morais, outro integrante da comitiva, também tinha sido detido ao desembarcar, dois dias antes. Eles foram a Cuba a convite do governo local, para integrar o júri do então prestigioso prêmio Casa de Las Américas. Entre os jurados, estavam ainda o poeta uruguaio Mario Benedetti e o escritor colombiano Gabriel García Márquez.
Ir a Cuba, naqueles tempos, significava uma grave transgressão. O Brasil não mantinha relações diplomáticas com o regime de Fidel Castro e muitos brasileiros envolvidos na luta armada estavam exilados na ilha -ou pelo menos passaram por lá para treinar técnicas de guerrilha. Para evitar suspeitas, eles voltaram ao Brasil por diferentes caminhos.
Callado, que estava em Cuba sem a mulher, foi encontrá-la nos Estados Unidos. Chico e Marieta passaram pela Europa. Fernando Morais e sua mulher à época, a psicanalista Rubia Delorenzo, passaram por Kingston, na Jamaica, e Cidade do México. Desembarcaram no aeroporto de Congonhas.
“Assim que o avião pousou, a aeromoça chamou meu nome, dizendo para me apresentar na cabine de comando”, conta Morais. “Da janela, vi um camburão do Dops parado na pista. O delegado Romeu Tuma [chefe do Dops] nos esperava lá embaixo. Fomos tratados como subversivos VIP.”
Na delegacia, para não entregar ninguém, Morais engoliu a minifita cassete em que gravara, de forma amadora, uma apresentação de Chico no teatro Karl Marx, em Havana, ao lado dos cubanos Silvio Rodríguez e Pablo Milanés. Muitos exilados brasileiros assistiram ao show. O jornalista nunca mais conseguiu recuperar o material. “Foi parar no rio Tietê”, brinca.
Em junho, o Arquivo Nacional, em Brasília, abriu alguns dos papéis da ditadura para o público, no bojo da Lei de Acesso à Informação, em vigor desde maio. Os documentos mostram que todos os grandes nomes da cultura brasileira das décadas de 60 ou 70, em algum momento, foram acompanhados de perto pelos órgãos de segurança.
É o caso de Chico Buarque. Da tentativa de se eleger presidente do grêmio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, em 1966 (que ele diz ter sido uma brincadeira de amigos, pois nem estudava mais lá), até a sua atuação na campanha das Diretas-Já, quase 20 anos depois, Chico foi, de longe, o artista brasileiro mais monitorado pelos órgãos da repressão.
Sua carreira artística está toda inventariada, documentada e escarafunchada em relatórios produzidos por órgãos de Marinha, Exército e Aeronáutica, além das Polícias Civil e Federal – sempre na peculiar linguagem dos escrivães da época e ornados com uma profusão de carimbos de “sigiloso”, “confidencial”, “secreto”, etc.
As mais de 700 fichas com referências ao compositor contêm ainda os “dossiês pessoais”, com todos os dados disponíveis sobre o alvo. Amigos e especialistas na vida e obra do compositor confirmaram o ineditismo dos documentos. Eles corroboram histórias já conhecidas e trazem à tona a versão do regime sobre episódios narrados em biografias e na imprensa.
Os papéis do Arquivo Nacional mostram que, além de censurar previamente, a ditadura infiltrava agentes em peças, shows e espetáculos. Relatório interno do SNI (Serviço Nacional de Informação), de 1972, tenta descrever a articulação política que enxergava nas manifestações culturais: “Campanhas movidas por vários grupos contrários ao regime possuem correlação entre si. As ações desenvolvidas pelos elementos infiltrados nos meios de comunicação social, clero e meio artístico, continuam obedecendo à ditadura dos temas coincidentes”.
Isso significava, por exemplo, especular sobre a sexualidade dos artistas e até mesmo interpretar eventuais safadezas em canções e danças folclóricas. É o caso de um samba de roda cantado num show do Caetano, com uma dança típica do recôncavo baiano, “no qual fazia referência aos olhos e os artistas presentes colocavam as mãos nos olhos, boca, idem, as mãos na boca, e finalmente dizia no ‘lelê, lalá’ e os artistas colocavam as mãos no sexo”, registrou um araponga.
Caetano Veloso, frequentemente chamado de “homossexual” nos relatos da repressão, foi monitorado até no exílio em Londres. Um agente da ditadura relata uma apresentação dele, em novembro de 71, no Queen Elizabeth Hall, em que “80% dos espectadores eram brasileiros”. Ele registra forte discurso do cantor “contra a Revolução”. Caetano afirma: “Nunca imaginei que houvesse alguém da repressão no show do Queen Elizabeth Hall”.
Um dos relatórios mais detalhados da repressão diz respeito à histórica apresentação de Chico e Caetano no teatro Castro Alves, em Salvador, nos dias 10 e 11 de novembro de 1972. Caetano acabava de voltar do exílio e juntou-se a Chico num reencontro que serviu também para encerrar as especulações sobre uma suposta briga entre eles, ainda no final da década de 60. O show viraria o álbum “Caetano e Chico Juntos e ao Vivo”.
A repressão esteve presente nos dois dias, atestam os documentos, feitos a pedido do Exército e da Aeronáutica e assinados por inspetores da PF baiana. “A referida apresentação [tem] cenas que feriam a moral das famílias ali presentes, bem como atitudes do sr. Caetano Veloso, que, de certa forma, indispôs o público contra as autoridades presentes”, chiou o araponga.
“Podemos observar quanto a Caetano Veloso: pintado de batom e com trejeitos homossexuais; […] cabe-me salientar que Caetano, embora usando de uma afetação um tanto exagerada, muito mais apropriada para uma pessoa do sexo feminino, provocando até algumas vaias do auditório, tendo cantado músicas que, ao meu entender, nada apresentam de anormal.”
Chico é descrito como um sujeito de “postura masculina normal”, que “desrespeita as determinações da censura” cantando músicas proibidas. Sobre a audiência, o inspetor que assina o documento, Eduardo Henrique de Almeida, diz: “Junto ao palco estava um grupo de homossexuais, hippies e cabeludos que pareciam contratados do grupo de artistas. Foram exatamente eles que invadiram o palco e cantaram ‘Apesar de Você’“.
Liberada por falha dos censores, a canção virou hino de resistência e bateu recordes de vendagem do álbum compacto. Ao perceber o equívoco, o regime a censurou e recolheu os discos das lojas. Apesar da “pregação ideológica” da música, um agente reconheceu nela, segundo documento do SNI de junho de 1971, uma “letra incontestavelmente inteligente”.
Almeida conclui o formulário com um alerta: “Já em Belo Horizonte, onde estive lotado, acompanhava as provocações de Chico Buarque de Holanda, sempre desrespeitando as determinações da censura. É necessário que se coloque um fim nestes episódios que somente desgastam as autoridades.”
Segundo inúmeros documentos da repressão, Chico e Caetano e dez outros artistas realizavam apresentações cuja renda era revertida a partidos ou organizações da esquerda armada, como o PCB. Um dos elos da guerrilha com o mundo artístico, segundo os militares, seria David Capistrano, comunista assassinado pela ditadura em 1974.
“Não conheci nenhum Capistrano, não que eu me lembre”, afirmou Caetano. “Nunca financiei o Partido Comunista. Nunca fui do partido. Tive simpatia por Marighella [ex-deputado Carlos Marighella, um dos principais líderes da luta armada]. Tenho ainda. Eu achava o PC careta e seguindo interesses de Moscou.”
Chico afirmou que jamais deu dinheiro a partidos. “Posso ter ajudado um ou outro membro de partido ou organização de esquerda, mas naquele tempo a gente não pedia a ficha de ninguém. Posso ter repassado cachês ou prêmios em dinheiro, mas geralmente eu contribuía com a renda de shows beneficentes”, disse o compositor. “Fiz isso durante anos, de meados dos 70 até fins dos 80, e não era segredo para ninguém.”
Caetano quase foi mais longe na oposição à ditadura: “Comecei a combinar com uma amiga dar apoio logístico à guerrilha. Eu admirava a aventura de lutar diretamente contra as forças da ditadura. E os militares nunca souberam desse esboço de ligação”, diz. “Sentia um medo remoto do que poderia vir a ser a luta clandestina. Suponho que, se me aproximasse, teria medo e problemas de consciência diante de alguns fatos e métodos.”
Em dezembro de 1968, dias após a edição do AI-5, agentes da ditadura invadiram a casa de Chico e quase o prenderam. “A gente sabia e se sentia monitorado”, admite Marieta Severo. “Tenho uma lembrança nítida desse dia, da truculência da invasão da nossa casa, da tentativa de invasão de nosso quarto. Nunca sabíamos do limite, até aonde eles iriam. Esse episódio, para mim, foi traumatizante.”
O jornalista e escritor Eric Nepomuceno, amigo de Chico há mais de 40 anos, lembra que no começo dos anos 1970 a pressão sobre o artista era “tremenda”. “Ele vivia angustiado com aquilo tudo. Volta e meia perdia a paciência e respondia de maneira dura”, conta.
Um informe do Cenimar (serviço de inteligência da Marinha) atesta a presença do compositor no 1º Encontro Nacional dos Estudantes de Comunicações, em Goiânia, entre 1º e 4 de novembro de 1972. “Foram anotadas, para controle, as chapas dos carros de outros Estados que comparecem ao Encontro. Dentre os anotados, registra-se o Volks, tipo Bugre [sic], Placa EC 9199, em nome de Francisco Buarque de Holanda, com endereço à rua Borges de Medeiros, 2513, casa 1/GB.”
O carro, de fato, pertencia a Chico e Marieta. “Não me lembro da gente ter emprestado esse carro”, comenta ela. Chico duvida que tenha guiado do Rio até Goiás. “Pode ser que eu tenha emprestado o carro. Pode ser que tenham anotado a placa do bugue aqui na praia, e algum agente dos serviços tenha inventado que o carro estava em Goiânia. Pode ser qualquer coisa, menos eu estar em Goiânia de bugue.”
Fonte: Folha de S.Paulo