O tipiti e os gados do rio

 


São diversas as regiões culturais do país do Cruzeiro do Sul, gigante Brasil filho natural da América do Sol; dito antigamente o Arapari entre velhos tapuios aqui no extremo-norte brasileiro, com referência à constelação limite que demarcava a fronteira extremo-sul para as migrações indígenas do circum-Caribe. Somos nós amazônicos um outro Brasil de segunda ou terceira categoria? Não, na verdade somos filhos do Brasil único e diverso ao mesmo tempo no espaço pan-americano e latino. Posto que a cultura amazônica, apesar de maltratada e dilapidada, é a mais antiga do arquipélago civilizacional brasileiro.
Agora que o fim da História está fazendo água, que nem o naufrágio do “Titanic”; trazendo a reboque o fim do mundo de toda procedência imperial ou virtual, eis que vem à tona a esperada renascença da ancestralidade e diversidade dos povos da Terra. Dentre estes o fundamento pré-colonial do Povo Brasileiro – três vezes mais velho que o ‘descobrimento’ oficial do país inaugurado por Cabral, conforme atesta a quem tiver olhos de ver o peso do tempo e ciência dos trópicos para saber da primeira cultura brasileira complexa nos tesos arqueológicos da ilha do Marajó –, o qual Brasil primeiro esboçado em sonhos nas alturas do céu da terra Tapuia jazia no fundo da memória coletiva da brava gente: podendo por vezes se vislumbrar através de mitos, ritos, usos e costumes populares marginalizados e disparatados, como se esta babel incrível dos cinco sentidos brasílicos fossem “cacos de índio” (fragmentos arqueológicos) de ideias e modos de vida mil espalhados, aqui e acolá, paresque canga bruta em vias de vir a ser mina ou garimpo.
Claro está que por todas as partes da mãe Terra um novo Novo Mundo está nascendo sobre escombros do velho, a cidadania planetária que se espera não há de ser o parto da montanha… Que nem, no passado, conquistadores espanhóis edificaram catedrais em riba de ruínas pré-colombianas. E portugueses de corda e baraço atormentados pela febre do ouro caçaram tesouros a custa de índios e negros escravos fazendo terra rasa para plantio de canaviais e infinitas pastagens de gado. A pergunta é: para onde estamos indo agora depois de 500 anos e tontos (sic) anos? Dado que a história só se repete como farsa, o futuro já chegou sob forma de democracia: todavia, esta esperança que venceu o medo há de ser construção solidária de um novo mundo para todos povos e nações do globo pela espiral evolutiva da humanidade filha da animalidade, ou iremos todos dar com os burros n’água mais uma vez… O espírito santo ou de porco, para o bem e para o mal; carece de alimentação seja ela pela fé ou através da lógica. Mas não pode em nenhum caso dispensar o pão nosso de cada dia plantado, colhido, ralado ou moído, cozido e posto à mesa pela força coletiva do trabalho organizado.
Aí que a porca torce o rabo: quem faz a necessária comida e quem de fato a come? Que mágica é esta que transforma matéria bruta em mercadoria e capital; que mistério faz mais valia virar lucro dum sistema caduco? Já foi dito que o melhor bocado não é pra quem o prepara… Não existe almoço nem petisco de graça: cada boca depende de dois braços, desde o baixo mata fome local até a alta economia global. Na Amazônia o estado precedeu a sociedade, virgula, explique-se: o estado colonial do Maranhão e Grão-Pará e a sociedade colonizadora com os pobres portugueses dos Açores, da ilha da Madeira ou norte de Portugal com vizinhos e parentes da Galiza confundidos. Antes destes últimos 400 anos tínhamos diversas sociedades indígenas e cacicados, que são na verdade o estado original das regiões da Amerika (“país do vento”, conforme se dizia nas montanhas em torno do lago Nicarágua). Com certeza a Universidade e a Ciência Política aplicada à criaturada grande amazônida não trata disto nem por castigo. Os primeiros rebeldes da Amazônia cedo se manifestaram, notadamente o cacique Pacamão, da aldeia do Cumu no Maranhão; Guamiaba (dito Cabelo de Velha) no Pará; ambos no século XVII; Guamá, cacique dos Aruãs e Mexianas, no Marajó e Ajuricaba, tuxaua dos Manaus, no Amazonas.
Já faz tempo que Belém e Manaus brigam para ser a metrópole da Amazônia. Deveriam saber que de fato a peleja não é nossa aqui: dantes a porrada global era pra atrelar o resto do mundo ao império de Sua Majestade ou a Napoleão Bonaparte: deu-se a vinda da Família Real e terminou com o império do Rio de Janeiro a cavalo com o Grito do Ipiranga, mas a independência das letras nacionais chegou cem anos depois na Pauliceia desvairada, Semana de Arte Moderna de 1922. Dez anos mais tarde, pelo Ita do Norte, Raul Bopp bordejou no Ver O Peso com os ictiófagos da Academia do Peixe Frito; Mario de Andrade passou ao largo… Bruno de Menezes subiu o curso do Amazonas e fez a ponte Belém-Manaus: era (sem que a gente percebesse ainda) o ajuri cabano: altas costuras das línguas e culturas amazônicas. Que hoje em dia apenas um catedrático do porte de José Ribamar Bessa Freire poderia discorrer com apuro seguro. Qual seja, a união (ajuri) dos sumanos cabanos que nem as cabas do Rio Negro contra intrusos aloprados, na resistência de Ajuricaba a favor das regiões amazônicas, ora recolonizadas por cegos do desenvolvimento custe o que custar. Mais devagar, esta gente!
O carimbó de Marapanim, com mestre Lucindo, cantou primeiro talvez a inteligência linguística do papagaio parauara falante até da língua paraense. Não importa se foi primeiro o papagaio manauara a falar a língua amazonense. O que interessa é o nosso Brasil se empoderar do rio Babel com o tipiti e os gados do rio sendo principal atração da gastronomia amazônica, seja ele no Ver O Peso com a academia do peixe frito ou no Galo Carijó, com o Clube da Madrugada, em Manaus. Estamos lembrando que o antropólogo Nunes Pereira, do Maranhão, descobriu o reino da encantaria na Amazônia e que o doutor Ritacínio Pereira seguindo as trilhas de Nunes Pereira em busca do hábitos do de comer da Criaturada grande de Dalcídio fez inventário da gastronomia popular amazônica e, infelizmente, apesar de parecer altamente favorável do Conselho Estadual de Cultura do Pará, com Anunciada Chaves e aprovação unânime do colegiado presidido pelo arcebispo dom Alberto Ramos; jamais foi publicado. Obras desta classe não se acham pelos cursos de turismo e similares. A gente do Marajó quer que o MEC lhe faça uma universidade com a cara da antiga universidade pés descalços que inventou aldeias suspensas e aquicultura com gados do rio. O mundo está clamando contra a sede e a fome. E nós aqui estamos cansados de pregar aos peixes, que nem o padre Antônio Vieira, emprestando do peixinho do mar, o quatro-olhos (tralhoto); sua metáfora até hoje não entendida nos chamados planos de desenvolvimento da Amazônia. Haja, no ajuricabano, reunindo intelectuais e pesquisadores do Brasil a resistência fora de série do bodó e do tamuatá até Chico chegar da roça (pra não dizer o doutor José Graziano da Silva, da FAO).

 

 

  José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica”, “Amazônia Latina e a terra sem mal” e “Breve história da amazônia marajoara”.

autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica” e “Amazônia latina e a terra sem mal”, blog http://gentemarajoara.blogspot.com