Margaret Thatcher foi a grande apóstola da guerra fria
Nunca houve uma mulher como Margareth Thatcher. A paráfrase da propaganda do célebre filme “Gilda”, dirigido por Charles Vidor e estrelado por Rita Hayworth, não se refere, evidentemente, a qualquer comparação com a beleza, o charme e a picardia da personagem encarnada pela fascinante atriz hispano-irlandesa. Mas é fato que o movimento operário e socialista jamais teve uma inimiga tão dura e implacável como a falecida primeira-ministra britânica.
Seu papel foi decisivo para a rearticulação da contraofensiva conservadora dos anos 80. Ela irrompe na cena política de seu país e no teatro internacional em um momento no qual o capitalismo vivia novo ciclo de crise e uma onda revolucionária havia, na década anterior, fortalecido posições da União Soviética e seus aliados. A revolução portuguesa (1974), a vitória comunista no Vietnã (1975), a derrubada do xá no Irã e o triunfo sandinista, ambos em 1979, são os principais fatos da última escalada progressista do período histórico aberto com a revolução russa de 1917.
Os efeitos desse avanço do campo socialista foram sentidos, desde o final da Segunda Guerra Mundial, também nos países capitalistas. Os trabalhadores dessas nações obtiveram significativas conquistas salariais e amplos direitos sociais, apoderando-se de um naco expressivo dos gastos públicos e das receitas dos grandes conglomerados. O temor da burguesia mundial, de que a revolução se irradiasse para suas cidadelas mais importantes, animou uma etapa de reformas que alteraram profundamente as condições de vida e labuta da classe operária ocidental.
No curso destas três décadas de recuo do capital, também foram forjadas ou consolidadas poderosas organizações sindicais e populares. Os setores conservadores foram perdendo espaços para o tripé formado por esse movimento, a ampliação do bloco soviético e as lutas de libertação nacional na África e América Latina. Coube a Margaret Thatcher liderar a reação da direita, dotá-la de um novo programa para a acumulação capitalista e romper o cerco que parecia condenar o imperialismo à decadência.
A dama de ferro jogou-se com fúria de guerra para rebaixar os custos de produção e aumentar a taxa de lucro do capital britânico, golpeando duramente os trabalhadores e seus sindicatos, reduzindo drasticamente as despesas estatais com serviços públicos, privatizando companhias e desregulamentando tanto os fluxos comerciais quanto os financeiros. Mais que Ronald Reagan, foi a principal ponta-de-lança do neoliberalismo.
Sua lógica levou à ruptura com a estratégia de concessões dentro e fora de casa. Ao lado do presidente norte-americano e do papa João Paulo II, comandou os ataques que levariam à derrocada da URSS e do projeto socialista internacional fundado pelos bolcheviques, quebrando a coluna vertebral do próprio movimento operário europeu. O trio soube compreender que a exasperação da situação internacional, com o recrudescimento da corrida armamentista, forçaria ao limite as fragilidades da economia soviética e colocaria em xeque sua direção política.
Thatcher foi o buldogue da contra-revolução, aproveitando-se com vigor e inteligência dos erros de seus inimigos, convertidos em poodles do socialismo e convencidos, como Mikhail Gorbatchev, de que a política de pactuação e retirada salvaria o sistema do colapso.
Na hora de sua morte, as forças conservadoras de todo o mundo prestam justa homenagem à grande apóstola da guerra fria. À esquerda, cabe aprender a lição deixada por uma inimiga impiedosa, que não poupou esforços em sua crença de que ideias claras e sem concessões, associadas às condições materiais adequadas e à disposição para o enfrentamento, são o único caminho para a hegemonia.
Breno Altman é jornalista, diretor editorial do site Opera Mundi e da revista Samuel
Publicado no Opera Mundi